segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Quando reter não é inverter a posse OU reflexões sobre a superficialidade analítica no crime de apropriação indébita...

Diante de tanta asneira que tenho lido por aí, fruto de um automatismo ímpar com que, por esteira produtiva industrial se fabricam condenações, tirei do baú uma pérola aqui, a módica compreensão do tipo penal na apropriação indébita...

O art. 168 é bem claro: “Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção (...)”. Diante da redação, pode-se observar que o tipo penal não descreve lapso temporal para demarcação do elemento subjetivo do tipo, deixando para o intérprete – com as ressalvas que a legalidade traz – a tarefa de depreender a situação consumativa do delito.

Penso com meus botões que é na análise do conteúdo da “apropriação”, e não no tempo que leva para se firmar a devolução, que reside o ilícito, pois a tradução de "apropriar" como tornar próprio é bem razoável. Qualquer raciocínio fora disso seria, para mim, uma legiferância além da atividade hermenêutica do magistrado ou da magistrada, dissociando-se do estado democrático de regras de imputação lastreadas na legalidade.

Não sei se cabe ao órgão judicante interpretar o vazio semântico do tipo penal em relação à inexistência de parâmetro temporal para se deflagrar o ilícito, tendo em vista que surge como obstáculo à interpretação no direito penal o princípio da legalidade, que se posiciona como irradiação normativa contida no conceito tipo e tipicidade. Afinal, em matéria penal, o tipo é corolário do princípio da legalidade, por defluência lógica e, com isso, submetido às limitações de criação de tipos penais por hermenêutica.

O tipo penal contido no art. 168 não descreve quando seria o momento tido como razoável de fixar um limite para entrega ou devolução do que estaria na posse do agente. E não cabe ao intérprete – sob pena de se fazer um legislador negativo usurpador de especialização de poder – e arbitrário – designar ou depreender qual seria o lapso temporal para se firmar o propósito de não devolver a coisa.

Daí a consumação do crime se dar ante a negativa de restituição, acrescida à intenção de “ter a coisa para si”. Isso porque, ainda que se admita, por absurdo, uma pretensão condenatória vazia quanto à demonstração do estado anímico, essa não pode apenas se vincular à precária narrativa de emaranhados comportamentais, sem que sejam, NO MÍNIMO, apontados comportamentos especificados em termos de demonstração indiciária de ânimo, e não o mero apontar AUTÔMATO de CAUSAÇÃO DE ATOS.

É corriqueiro em minha experiência ler sentenças calcadas em um nó de contextos de causações que não acenam para o animus, ao mesmo tempo em que cospem, agridem, violentam e soterram o finalismo, esse pobre que aparentemente está caminhando mesmo para a sepultura, tamanha a ignorância dos operadores do direito em não saberem o que é um "estado mental". Sugiro uma boa leitura de obras no Budismo ou na neurociência, hahahaha.

E o mais interessante em tudo isso diz respeito a como a decisão se constrói: à fórceps, num parto anal à vácuo (ui! Inventei agora), num arremedo de ctrl c + crtl v que faz um chato, enfadonho e inútil “passeio jurisprudencial” que nos faz desistir até mesmo de apelar, tamanho o cansaço na leitura, quase sempre, no caso do art. 168, confundindo-se “retenção” como ato mecânico-causal, e o animus rem sibi habendi, pretendendo punir sob a égide de trazer para o comportamento da retenção a inserção do elemento volitivo de “ter a coisa para si e não restaurá-la”. Sinceramente? Eu não sabia que nosso português era tão rico de sinonimias...

Existe um profundo e grave equívoco, pois para deflagração do tipo não basta apenas a “simples negativa de retenção”, mas, no caso em tela, o animus rem sibi habendi, que é reconhecido mansamente na jurisprudência do STJ. É, tive que citar o STJ da vida, pois, sabem como é, minha verborreia lá em cima não tem o pedigree do tribunal... Mas, ainda que eu seja um cãozinho maroto, também posso latir. Por isso estou latindo agora em relação ao art. 168: au, au, au.

Parece que todo mundo está na gelatina cor-de-rosa da Matrix, reproduzindo, como vespeiro, um bando de abobrinha, adotando um mero critério causal mecanicista, gravado no ato em si – “não repassar, reter etc.” – como se este, isoladamente, fosse condição necessária e suficiente para a deflagração do ilícito.

Convenhamos... atraso na devolução é desídia, desleixo, mas não má-fé configurada como crime, porque este – crime de apropriação indébita - não se deflagra pela não devolução, mas pela demonstração INEQUÍVOCA de se assenhorear e inverter o domínio irrestrito da titularidade do bem jurídico (RT 624/315). Enveredar pela seara da punição é, grosso modo, condenar fatos, quando o direito penal finalista e democrático condena condutas. Pelo menos é nisso em que acredito...ainda! Mas, de repente, estou mudando tanto que, talvez, quem sabe, amanhã já pense diferente.

O que não dá para engolir é a condenação foi que se baseia em mero DADO OBJETIVO sem que a delimitação da CONDUTA imputada em relação ao estado de alma do cidadão retentor. Mas acho melhor fazer meu tomate seco, ler os livros da tese e ver estrelas saboreando amoras...

O grande drama da verdade: real, formal, processual e...SURREAL!

Ó, Themis, quanta caricatura pode residir no hercúleo esforço da defesa?

Na ilusão de objetividade do testemunho – levantada por Aury Lopes (2008. P. 608) – seguimos, desprestigiando a interioridade neuropsíquica, porque, afinal, somos juristas, não é mesmo?

O mundo contido no universo da mente e da psique não é jurídico e, não se processa apenas no que se deseja enxergar, mas como se deseja ver...

Mas, não sendo o “fato” – bem como seu recorte, aquele que vai para os autos - tangido pelo toque de ouro de Midas, não se torna jurídico e não faz parte do processo. A visão do todo, então, passa a ser precariamente representada por um enunciado deôntico pobre, onde o crime é, nada mais, nada menos, do que um retrato parcial e fragmentado de um mundo muito maior do que a dimensão unipessoal de cada um de nós. Que batalha quixotesca já perdida!

Daí, a rigor, não queremos ouvir – e, mais do que isso, ESCUTAR, que é bem diferente, pois engloba o significado que se dá às palavras - o que o acusado fala no processo... mais do que isso, não nos importamos em entrar na compreensão do sentido que ele - somente ele - atribui ao que aconteceu, pois, senhoras e senhores da razão iluminada, produzimos, sim, nós, a NOSSA curial verdade... Afinal, em nossos escritórios e gabinetes já passaram tantos e tantos acusados...

Faltam-nos percepção e sensibilidade jurídica para admitir no processo penal que nós carecemos do que Merleau-Ponty chama de “condições de ver o mundo”, bem como de aflorar a verdade do que “representamos do mundo”.

O direito (sim, escrito com letra maiúscula pela compreensão de não ser – ou nunca ter sido – ciência) formata a vida – uma vida que ebule, pulsa e se dimensiona, em muitos momentos, na singeleza da “arbitrariedade dos fatos culturais”, trazendo a necessidade de desnaturalização do que tomado como modelo e verdade, como bem aponta Roberto Kant de Lima (2002, p.03).

A ideia de “objetividade” ou “clareza” é de um dualismo cartesiano tosco, que finda por segregar o mundo – e a nós, reles pedaços de poeira cósmica e carbono compartimentado – em que nos posicionamos a valorar o outro sem a percepção do sentido que esse outro nos oferece como sua versão do relato.

Segundo Laplantine (2003, p. 169 e SS.): “uma testemunha, quando pretende uma neutralidade absoluta, pensa ter recolhido fatos objetivos, elimina dos resultados de sua pesquisa tudo o que contribui para sua realização e apaga cuidadosamente as marcas de sua implicação pessoal no objeto de seu estudo, é que ele corre o maior risco de afastar-se do tipo de objetividade (necessariamente aproximada) e o modo de conhecimento específico de sua disciplina”.

Com esse afã de provar e recriar o que não existe no mundo vai a advertência de Aury: “uma boa mentira, repetida centenas de vezes, acaba se tornando uma verdade”, chamando a atenção para a postura de alguns órgãos estatais, numa luta para montar e juntar peças que, a rigor, não se encaixam, colocando os acusados, quase sempre, na contramão da observância de seus direitos enquanto cidadãos.

O primeiro desses direitos é o de ser interpretado segundo seu olhar dentro da dinâmica dos fatos, e não como um objeto de laboratório, que recebe o crivo valorativo dos “cientistas” em seu arremedo de razão. Que razão?

Diante disso, a construção da verdade, segundo Aury, dentro do processo, estaria inserida, desde seu nascedouro, num “labirinto de subjetividade e contaminações, que não permite atribuir ao processo a função de, através da sentença, revelar a verdade” (p. 528).

Não se pode, assim, desconsiderar, para fins de produção de UMA verdade - a tal processual - UM “modelo” do que poderia ter sido UMA dinâmica de verdade sem captar sentidos de todos e todas que se posicionam nos lugares de fala, implicados ou não, por vínculos de afetividade ou anonimato.

Ai, ai...quanta mesmice planificadora da alma a sensibilidade pode suportar?

Falando sério sobre direitos humanos...

A apresentação do tema “direitos humanos” não esgota o tema, muito menos pretende ser A MANEIRA UNÍVOCA de focar o assunto: antes, trata-se de um paradigma de enfoque, uma lente que se coloca à disposição do observador para contemplar o mundo!

Isso não a torna menos ou mais científica, menos ou mais rigorosa, ou, ainda, menos ou mais séria do que a “ciência” que “se proclama correta”, porque, no fundo, a ciência que se diz inexorável e excludente das demais pode representar um mero e arbitrário exercício de poder: um cidadão fala e outros, sem avaliar, pensar, refletir ou criticar, apenas aceitam.

Isso não é ciência, é fanatismo. Por certo não será o caminho que desejo compartilhar.

Ao invés de revelar “A” fórmula mágica para definir, conceituar e catalogar “direitos humanos” gosto de dialogar com a ideia, percepção e, sobretudo, vivência sobre direitos humanos, a partir da idéia de paradigma.

Ou seja, longe de representar uma fórmula fechada, inquestionável e inexorável, um paradigma representa uma proposta, nada mais que isso. O que torna um pensamento, uma doutrina, uma teoria ou hipótese um paradigma?

Importante responder a tal indagação, já que a proposta de mudança aqui é revelada e anunciada como sendo paradigmática. Um paradigma surge como uma ideia consensuada por uma comunidade - quer seja científica e acadêmica - uma resposta possível para explicação de um fenômeno, não constituindo um modelo fechado de induvidosa certeza.

Uma revolução científica viria a existir, para Thomas Kuhn, a partir do momento em que um novo paradigma ocupasse espaço, coexistindo com outro, até que esse não mais fizesse sentido. Mas, até a superação do modelo antigo, os paradigmas coexistiriam, cada qual, em sua proposta descritiva e causal do fenômeno científico, num movimento de repulsa recíproca – já que são antagônicos.

Mas, no caso do estudo de direitos humanos, qual seria o paradigma a ser superado, o qual seria o paradigma emergente?

Penso que a compreensão da amplitude da contextualização dos direitos humanos no panorama mundial, bem como seus reflexos no Brasil e na maneira como cada um ou uma de nós, no dia-a-dia de nossas atividades, passa pela substituição do paradigma isolacionista (no qual me coloco como foco e vetor de toda a expressão de mundo) para a percepção globalizada de apreensão do outro inserto em um ambiente de maior amplitude.

Essa ampliação de cenários, atores e comportamentos, acessível a nós a partir do encurtamento de fronteiras, muito se deve ao fenômeno chamado globalização, complexo em seus contornos, inegável em modificar nossos comportamentos e valores.

Em Globalização e exclusão social: fenômenos de uma nova crise da Modernidade? (1999), Nascimento compreende o processo globalizante à luz da superação da modernidade nos anos 80-90 sob o foco de “dissolução ou o questionamento da racionalidade instrumental e o fechamento das comunidades sobre suas próprias diferenças” (p. 80), razão pela qual depreende da globalização, ou mundialização, como prefere denominar, um fenômeno heterogêneo, que não se esgota numa percepção única do mundo.

Fenómeno multifacetado com dimensões económicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo” – eis a observação de Santos (2002, p. 26) sobre a uma tendência mundial de relativização fronteiriça: globalização de hegemonia, homogenia e exclusão? Ou globalização de pluralismos, diversidade e heterogenia? Importante sabermos das implicações contidas em cada esboço de interpretação relacionada ao que é a globalização, pois o tema direitos humanos guarda estreita relação com o fenômeno...

Sposati entende na globalização “um processo de reforço do mecanismo de elitização de um lado e de apartação de outro”, na medida em que se reveste num mecanismo de “horizontalização de valores, perspectivas, éticas” (1997, p. 43), concomitante à lógica de apartação e exclusão social, fomentadas pela preponderância da dominação suscitada por determinados grupos que se alternam no poder.

Daí a importância da compreensão do processo a partir, de um lado, da horizontalização de valores, éticas e perspectivas, o que representa uma compreensão positiva do fenômeno; e de outro, da concretização de uma nova “forma de hierarquização de cidadãos e dominação da elite.” (1999, p. 44)

A globalização – em suas várias dimensões – trouxe um pulsar novo para a compreensão dos direitos humanos, por projetar percepções sobre como se lida com a diferença, ao mesmo tempo em que se discutem – no plano interno e externo – políticas em relação à pluralidade de comportamentos que atingem e lesionam (em sentido amplo), coletividades, grupos e indivíduos, tomados a partir da compreensão do homem como ser titular de plenitude na sua potencialidade de realização.

Por isso, muito antes de começarmos de UM início (por exemplo, definindo, citando, conceituando e catalogando os “direitos humanos”), que parte do modelo ideal de contemplação conceitual do que está abrangido nessa categoria, interessante (des)construir compreensões metodológicas pautadas numa agenda especulativa, bem como a partir da experienciação (que não é meramente a vivência de cada um, mas a essência do que pode se alcançar especulando) do que cerca o tema.

Necessitamos observar o desvendar, a revelação e a desconstrução de valores que se delineiam numa herança eurocêntrica, etnocêntrica e colonialista, que “naturaliza” as diferenças do outro como sendo fruto de uma superioridade, um falso evolucionismo social que, segundo Kant de Lima, trazem valorações do outro apenas a partir do “eu” (2006, p. 23), numa compreensão acrítica da realidade.

Direitos humanos é (sic) para humano direito” - Estava na cidade de Natal na época de propaganda eleitoral e, de súbito, deparei-me com um candidato fazendo essa afirmação, usando um trocadilho que achei muito interessante para provocar discussões e reflexões.

Como sempre, observando sem julgamento aprioristicamente pejorativo (claro, é uma tendência da mente julgadora atribuir predicativos ao sujeito sem, contudo, muitas vezes, acautelar-se em estudar o sujeito) – desmontei meus preconceitos e pré-conceitos, concentrando-me na apreensão do que essa frase significava. Ela é extremamente rica...

Sugeriria começar pela apreensão do conteúdo do que semanticamente está expresso na frase. Pensemos, dentro disso, no que seria a apreensão do que é “um ser humano direito”. Sem elaborar mentalmente muito raciocínio, mas apenas deixando sair o que vem à sua mente, o que poderia ser relacionado ao predicativo “direito” contido na frase?

O que vem à mente quando, de súbito, mencionamos: SER + HUMANO + DIREITO?

Ora, não falamos em globalização e encurtamento de fronteiras? Não são somente as fronteiras naturais, simbólicas que se encurtam, o outro, o diferente, ficou mais próximo. Como eu vejo o outro? Como eu me vejo vendo o outro?

Começa aqui um diálogo a partir de um dimensionamento plurifacetado: expressar o que vem a ser direitos humanos dentro de um enfoque que se ocupa de sua justificativa filosófica (lida, refletida e criticada pela dimensão antropológica, sociológica e política), bem como a abordagem jurídica (nacional e internacional) em relação ao tema.

Uma doutrinadora que se dedica bastante ao estudo dos direitos humanos é Flávia Piovesan, que sempre espelha a preocupação em trazer para um campo de esclarecimento conceitual feito pelo artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação aos outros com espírito de fraternidade.

Achei interessante deixar aqui link contendo uma interessante entrevista a André Deak e João Rodrigues, disponível em http://www.andredeak.com.br/emcrise/entrevistas/entpiovesan.htm.

Nela, a Piovesan contextualiza o tema a partir da exposição do que entende ser a maneira como lidamos, no Brasil, com o assunto.

Aliás, é dela a lembrança sobre a necessidade de redimensionamento do que se concebem como direitos humanos: "No momento em que os seres humanos se tornam supérfluos e descartáveis, no momento em que vige a lógica da destruição, em que cruelmente se abole o valor da pessoa humana, torna-se necessário a reconstrução dos direitos humanos, como paradigma ético de restaurar a lógica do razoável." (PIOVESAN, 2006, p.13) [g.n.]

Lembrando, portanto, do mencionado paradigma...

A pauta de direitos humanos insere-se na proposta de paradigma, ou seja, num modelo proposto como foco ou olhar sobre a realidade, um redimensionamento valorativo em relação ao conjunto de direitos que integram o patrimônio moral, bem como o acervo de dignidade que atribuído a todos os homens e todas as mulheres, em virtude de um estado fático: somos seres dotados de racionalidade para a reflexão e projeção de ideais de respeito, consideração, aceitação e confraternização.

Qual o fundamento ético disso?

Talvez, quem sabe, uma agenda – ou melhor – um deslocamento de valoração – em dois níveis: a) uma compreensão do olhar despojado para a alteridade, a partir do ser (estar), no aqui e agora, situando o sujeito na sua contextualização social, política e cultural (o ser, como ele é, sujeito de direitos, não porque os exerça, mas porque definimos a igualdade enquanto cidadãos e cidadãs da polis; b) um projeto ainda em construção de um modelo cosmogônico de tutela em relação à plenitude do exercício de tais direitos.

Ou, sei lá...são apenas reflexões...

O cansaço jurídico e o réquiem para os debates sobre o RJ

Hoje acordei muito cansada. Sei que daqui a pouco recuperarei meu fôlego, mas, por agora, queria apenas postar aqui o cansaço, materializado naquele suspiro com o qual nos despojamos da obstinação e, vendo o fluxo, ajoelham-nos e nos prostramos diante de algo maior do que a expressão de nossos próprios egos.

Estou cansada - nesse momento - de argumentar, tentar estabelecer diálogo. Cansei de falar e, por já ter aberto muito a boca e a mente, penso que o derradeiro momento pode-se ser melhor aproveitado em um não falar. Afinal, de que valem as "guerras pela paz"? qual o sentido de "lutar pela paz" se, na luta, toda luta, há conflito?

Paradoxal lutar por paz, ainda mais quando se trata de luta ideólógica, argumentativa, retórica e, sobretudo, egóica. Sim, acredito que estou cansada hoje, apenas por hoje, do meu ego e, achando que ele está disperso nos interlocutores, penso que são eles os monstros autoritários que habitam o universo que diz respeito a mim...

Enquanto o fluxo do mundo comemora uma bandeira hasteada num morro, tal qual uma cópia mal enjambrada do filme estadunidense, fico pensando aqui até que ponto queremos e observamos tudo ao nosso redor com os olhos da aparência... Penso se, por ventua, tenho visto no outro a aparência e, dentro disso, se ajo com o mesmo sentido apartador com que pleito, com sofreguidão, pelo olhar da sociedade para a demanda do tráfico, por achar que ela é mais séria do que um senso midiático impressionista e sensacionalista, que rega nossos lares com pipoca e refrigerante, produzindo a cárie em nossa alma, dia após dia.

A discussão sobre a ocupação no Rio me cansou, pela ignorância travestida em democracia que assoberbadamente veio à lume em intensos e infecundos debates no cyber espaço, que mais parecem monólogos, pois, se de um lado, abrimo-nos para ouvir o outro, o reacionarismo tosco fecha-se para o olhar da alteridade.

Nunca vi e li tanta aberração, tanto pedido lastimoso de "mata, degola", numa miopia que, ao que parece, estabeleceu-se como um senso comum, geralmente emitido por quem, no auge de seu egoísmo e ignorância, permite-se apenas analisar segurança pública como quem escolhe um suco de fruta para matar uma sede, ou, então, com o mesmo crivo com que seleciona uma cueca ou calcinha: na mais profunda leviandade diante da necessária reflexão. Pessoas são importantes, quaisquer que sejam elas. Aliás, não tem o menor sentido até falar em 'quaisquer que sejam' porque pessoas são importantes. São almas...

Falta nesse panis et circensis uma honesta reflexão, que não passa pelo pragmatismo em simplesmente se extirpar alguém, mas pela tomada de consciência em relação ao papel que cabe a cada um e uma de nós na elaboração de um projeto democrático.

Falta-nos sensibilidade de apenas olhar para o lado, não com crivo etnocêntrico de desqualificação do diferente, mas com o reconhecimento da importância que todos e todas nós temos em sociedade pelo simples fato de... sermos humanos e humanas! Isso já deveria bastar, mas, para uma sociedade acéfala, a-crítica, preconceituosa e condicionada, desde o útero materno, com o "chip" do automatismo, pouco espaço comporta para a tomada de um debate honesto...

Importante reafirmar aqui que não se trata de legitimar o tráfico de drogas. Não, não tem sido esse o ponto de argumentação. É a maneira escolhida para se enfrentar um problema cujo vórtice não está no morro, como é cediço e notório. Para quem se debruça, estuda de verdade o tema, é sabido que o tráfico segue uma logística de célula e hidra.

Um eixo de poder no topo, inacessível para os demais ocupantes da cadeia que, em escala exponencial, reproduz-se, em larga escala, toda vez que um dos braços é extirpado. Ou seja, no "esquema" ou na carreira "profissional" do tráfico, quem está no Morro, ocupando uma posição de "chefe" de boca nunca foi ou será o cabeça da organização...

Por isso, seguindo farta análise de criminólogos renomados, como Wacquant Baratta, Nilo Batista etc., importante dialogar com a ideia de criminalização e repressão da pobreza, já que se trata do que é visível e punível em termos desse tipo, em especial, de criminalidade. A criminalidade do colarinho branco, ou seja, a que encabeça a hidra central do movimento, essa, por certo, ficou de fora das operações realizadas no Rio, por motivos bem óbvios: não estavam lá no Morro. Talvez estejam bem mais perto de mim - de nós - do que supomos. Mas, de tanta invencibilidade, ela passa incólume aos olhos da mídia...e de todos e todas porque desejamos enxergar o que está preconcebido no tubo da TV.

Toda essa farsa estrutural ainda conta com o pensamento cristalizado - e bem conveniente - daqueles que ora se voltam contra a coexistência de classes - porque não suportam a convivência com o morro -, ora estão acometidos pela síndrome estrutural de vitimização, em virtude de se posicionarem como titulares de bens de consumo que, não acessíveis pela massa alijada de recursos, tenta se municiar de todo o tipo de mecanismo para evitar o acesso...

É o contra-fluxo da percepção de que nós, brasileiros e brasileiras, convivemos numa democracia racial, de classes, grupos ou minorias. Utilizamos o mais perverso sentimento de exclusão para aniquilar a diferença, sob o maniqueísmo de um signo de bondade...

Cansei de postar no facebook, cansei de conversar, porque, realmente, torna-se difícil argumentar ante o preconceito engessado sob a veste de "argumento", principalmente quando se trata de uma classe média alta falando de algo que não sabe, porque insiste em não sair de seu vazio existencial diante da vida, para olhar o outro em horizonte partilhado ao seu.

Volto para o diálogo com meus alunos e alunas, pois, com eles e elas eu aprendo a ouvir mais, a escutar mais, a prestar mais atenção e, sobretudo, aprendo a nutrir em mim mais esperança que dias melhores virão...

sábado, 27 de novembro de 2010

Direitos humanos e Rio de Janeiro: reflexões abolicionistas OU pela reflexão ante a miopia estrutural de uma sociedade falida

Mais uma vez o Rio de Janeiro é o centro das atenções, pois de cartão postal e título de "cidade maravilhosa" passou para a manchete internacional em virtude das "operações bélicas" que estão sendo engendradas sob os auspícios de "combate" ao crime, em cima de uma narrativa mítica de alocação do exército para a demanda de "contenção da desordem".

Acho importante situar o tema dentro do seu locus - criminologia, política criminal, direito penal, constitucional e direitos humanos - sob pena de quedar superficial em relação à crítica que farei a todo um pensamento "lei e ordem" que acomete alguma parte da opinião pública brasileira.

Razoável, em meu "sentir", antes de COMEÇAR a falar qualquer coisa, posicionar-me diante da maneira como percebo serem o direito e o sistema penal alocados em um perverso discurso aparetemente cativante, para que não soe esse post como mais uma colcha de preconceito e ingenuidade.

Indiscutível que a criminalidade volta a fazer parte da agenda de discussões nos mais distintos nichos. Qualquer que seja o ponto de discussão - tópico-retórico, jurídico-positivo ou analítico -opiniões parecem convergir para o reconhecimento de falência dos institutos jurídico-repressivos como via interventiva de "prevenção" (bandeira lastreada no influxo burguês de utilitarismo da pena em face da transposição do controle do corpo [tortura, galés] para o controle da mente [proposta higienista do panóptico foucaultiano].

Parecemos concordar também que a pena privativa de liberdade que, longe de representar a possibilidade hipotética de ressocialização e reinserção do delinqüente, degenera e esfacela o restante da dignidade do ser humano que à constrição é submetido.

Essa conclusão, contudo, parece coexistir paradoxalmente com uma indiferença com a qual o tema é abordado pela opinião pública leiga, eivada por juízos de parcialidade preconceituosa, estereotipada e discrininatória, característica de uma “síndrome de vitimização” socialmente repartida e que se propaga, numa velocidade quântica, pela mídia comprometida com interesses expropriatórios.

Tal proposta de desconstrução teórica eclode na avaliação qualitativa da realidade carcerária brasileira, refletindo o caráter seletivo do sistema penal, que atinge determinadas pessoas, e se antagoniza à proposta igualitária que a dogmática jurídica apregoa, marginalizando e estigmatizando determinados setores sociais, por meio do condicionamento das denominadas “carreiras criminosas”, com a expectativa do cumprimento, por parte do indivíduo, de seu papel de delinqüente (CERVINI, 1995, p. 64).

Basta ver o farto rol de dados estatísticos: encarceramos a pobreza, taxamos e rotulamos os "elementos suspeitos" de acordo com estereótipos de classe, raça, grupo e fenótipo, enviamos para as galés o rescaldo do que o sistema capitalista não favorece, pois, a bem da verdade, os crimes relacionados a patrimônio colorem o contingente carcerário à guisa de fartura.

Como resultado mais direto essa mecânica de um sistema que nos "enquadra" desde o berço, não poderia o sistema penal hábil a cumprir com suas metas esquadrinhadas teoricamente. Penso que o primeiro problema reside aí: que metas?

Quais as metas que realmente queremos, desejamos e, sobretudo, discutimos equaninamente no Brasil? Nós, opinião pública, sociedade civil organizada, povo, titular de soberania? Que discussão séria pode ser provida quando nos posicionamos como espectadores omissos, municiando-nos de um reles controle remoto e emitindo juízos a-críticos de mera reprodução do que a mídia elitizada produz?

Com isso qualquer alocação do direito penal e do sistema penal acaba por reproduzir a mesma dialógica de anestesiamento de nosso juízo perante a vida, o mundo, as pessoas e, sobretudo, a nós, antagonizando-se ao prestígio à dignidade do ser humano para, ao contrário, transformar-se em fonte de degradação e aviltamento de direitos, como bem explicita o Professor Nilo Batista em sua obra (1996, p. 25-26): “Assim, o sistema penal é apresentado como igualitário, atingindo igualmente as pessoas em função de suas condutas, quando na verdade seu funcionamento é seletivo, atingindo apenas determinadas pessoas, integrantes de determinados grupos sociais, a pretexto de suas condutas “ . Essa é a primeira perspectiva: olhar para o sistema penal no aqui e no agora, como é, e não em cima de uma burla quixostesca de um devenir que não existe porque beiram múltiplas dimensões de escolhas que não estão - nunca estarão - sob qualquer crivo de controle.

Ousamos dimensionar, assim, na compreensão do âmbito de abrangência do sistema penal a reprodução de relações desiguais de distribuição da criminalidade, sendo o controle social punitivo, um mecanismo operacional de sustentação da estrutura punitiva iníqua, assentada a partir de três mecanismos conjugados: um primeiro mecanismo de produção das normas criminalizadoras, conduzindo à formulação de uma criminalização primária; um segundo mecanismo de aplicação das normas elaboradas para a catalogação das condutas consideradas transgressoras, conduzindo à criminalização secundária; por fim, um terceiro mecanismo de execução da pena como resposta e conseqüência destes mecanismos.

Encontra-se um sistema penal pulsante, que define autofagicamente a criminalidade, na medida em que a constrói, fruto de um monopólio de dicção das leis penais, em função do interesse de grupos legitimados à instituição de normas, evidenciando-se, pois, o caráter de seletividade que forçosamente compõe a atividade legiferante.

O sistema penal e, mais precisamente, o sistema carcerário brasileiro e as políticas públicas de segurança no Rio de Janeiro, longe de representarem uma utopia de dignificação do humano, aproximar-se-ia de uma dimensão desagregadora, destinada a açambarcar toda a parcela de homens “maus” – criminosos - contra os quais deve se voltar toda a severidade do sistema penal, por meio de uma “guerra” declarada contra o crime, na qual inexiste possibilidade de sucesso, uma vez o fenômeno delituoso sempre se fazer presente no passado histórico do homem.

É isso que a mídia está reiteradamente expondo em manchete. É esse o espetáculo circense que parece atrair a atenção de quem se identifica com a perversidade. É isso, enfim, que alimenta o sistema, em nível radial...

Para aqueles e aquelas que procuram um sentido, a legitimidade do cárcere e do despojamento ético da polícia, do Exército e demais estruturas coorporativistas de exceção encontraria assento na premissa de reforço das relações interpessoais, onde a pena, sentido último de uma simbólica vingança privada paulatinamente convertida em ideário comum, respondendo aos auspícios coletivos de reação à conduta delituosa, a ser extirpada do meio comum, num esforço de redução dos conflitos ao estado entrópico nulo.

Neste sentido, a agressão sofrida e repartida socialmente reverter-se-ia em uma contra-reação, manifestada na predileção pelo cárcere que, longe de ser uma solução de extirpação do indivíduo, finda por representar, por si só, expressão de violência.

Para GALTUNG (1990, p. 332), existe violência quando a realização atual, somática e mental do indivíduo é inferior à sua realização potencial, acarretando, desta maneira, um nível insatisfatório de acesso a determinado nível de conhecimentos e de recursos, apanágio do bem estar comum.

Por não haver identificação da latência e do foco de emanação desta modalidade de violência, meramente institucionalizada, tem-se no aspecto punitivo da pena um controle velado, imperceptível aos olhos, mas atuante segundo o propósito de esfacelamento da dignidade humana, na medida em que o indivíduo que ao cárcere é submetido não apresenta condições de se desenvolver em suas potencialidades.

Assim sendo, ante a existência de violência física sofrida no ambiente carcerário e nas abordagens "sutis como pata de elefante" das polícias (sim, todas elas, sem medo de cometer gafes), acrescenta-se a psicológica, ambas manifestas - quando, por exemplo, de uma rebelião ou de um assassínio – ou latentes, potencialmente aptas a exsurgir, não se sabendo, ao certo, precisar a fonte, daí a dificuldade em encontrar o foco producente, razão pela qual a prisão assenta sua natureza na violência estrutural, consectário de um sistema hierarquizado de poder (BRAILLARD, 1990, p. 345), onde a vigilância é a tônica do sistema.

O cárcere e, precisamente, a percepção de política pública "lei e ordem", desta feita, concentrariam uma grande gama de micropoderes, que segundo FOUCAULT (1996, p. 159), centra-se na existência de “uma rede de aparelhos difusos”, onde não há epicentro ou foco central de poder de violência, motivo pelo qual a identificação se torna difícil, ao mesmo tempo em que tal funcionalismo é legitimado pelo poder punitivo reconhecido ao Estado.

Num diálogo com Paulo Sérgio Pinheiro (1991, p. 47) ousamos compreender a dinâmica da construção difusa de vitimização a partir do reforço simbólico dado pela mídia aos recortes dispostos nos editoriais e nas manchetes aos "fenômenos sociais" que ameaçam a “pax social”, cujo contéudo, tão vazio semanticamente, pode acenar para o preenchimento de várias propostas quixotescas de "neutralização de inimigos".

O despojamento ético com que a articulação das polícias e do Exército é aplaudido apenas reforça e reflete o legado de um autoritarismo consolidado (PINHEIRO, 1991, p. 47), transmitido até o presente e consubstanciado em estruturas administrativas, institucionais e legais advindas, insertando-se nos elementos ideológicos presentes nos discursos políticos do Estado, estabelcendo-se um verdadeiro “regime de exceção paralelo” (PINHEIRO, 1991, p. 48), onde a grande gama dos destinatários é a população carente, vítima do excesso e da coibição.

Nunca uma compreensão de criminalização de pobreza esteve tão atual...sob as vestes talares de uma pretensa autonomia democrática que mascara e dissimula os aparelhos repressivos do Estado, acometendo a todos e todas do compartilhamento quanto ao "ataque ao inimigo", ora explícito, ora marcado sensivelmente por uma “violência simbólica” (PINHEIRO, 1991, p. 53) que se replica como um processo viral.

Basta constarmos o quanto nos identificamos, por exemplo, com figuras "cativantes" como o arquétipo do Capitão-depois-coronel Nascimento em Tropa de Elite, rindo e festejando, em plena sala de cinema, com a barbárie estabelecida pela antológica cena do saco plástico no rosto, acenando para a reprodução (até mesmo em nível psicanalítico) e perpetuação das relações fenomenológicas de poder, que passam a ser culturalmente inseridas e sustentadas, dentro disso, por nós, em virtude de uma socialização que reflete a tolerância diante das práticas repressivas.

Nessa seara perfida microcapilarizada, pois, em estruturas poder centradas na família, em coletividades, associações e demais formas de integração interpessoal, sentimo-nos "ativos e ativas participantes da questões da polis", autorizando, assim, por via oblíqua, o extermínio e a exceção.

O que resta? Olhar, num segundo momento,a dinâmica da política de segurança pública, o sistema penal, bem como nossos próprios umbigos, não como mero supedâneo do maniqueísmo entre pessoas “boas” ou “más”, mas, sim, fruto de uma construção simbólica de estereótipos engendrados a partir de valorações preconcebidas pelo legislador, dinamizadas e reforçadas socialmente e legitimadas capilarizadamente em face do "terror midiático" que prestigia uma versão de verdade...

Mais uma vez, vale a utopia como proposta de alcance de uma articulação em torno do debate fecundo que, segundo HULSMAN, deve ser encabeçado pela própria sociedade e seus grupos componentes (1999, p. 46), não cabendo espaço, neste diapasão, para a superficial abordagem midiática, tida como expressão de formatação de massa.

Somente um enfrentamento sério do tema, por meio do debate que envolva sociedade, grupos, magistrados, agentes de polícia, agentes carcerários, psicólogos, promotores etc. evitaria o fracionamento da visão reducionista com a qual insistimos em observar o fenômeno, encetando, quem sabe, uma proposta de olhar de mundo comprometida seriamente com a intervenção mínima do direito penal e, a longo prazo, em longo alcance, sua supressão em face ao enfretamento do tema por outros setores de controle social (um controle emancipatório, e não uma política de controle de classes) que privilegie o humano, e não o esfacelamento do que resta de sua dignidade.

Freixo: segurança pública reforça criminalização da pobreza

Fonte: Bruno Domingos, Reuters, quinta-feira, dia 26/11

Em entrevista a Terra Magazine, o deputado estadual Marcelo Freixo (Psol-RJ), conhecido pelo combate às milícias, afirma que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não fez "a escolha política" de ir "à fonte do financiamento do tráfico". Segundo ele, a ação da polícia carioca nas favelas reforça "a criminalização da pobreza" e não enfrenta o crime organizado. Ele será enfrentado, diz Freixo, "onde há o lucro (com a ilegalidade), que não é na favela".

- A favela é a mão de obra barata. É a barbárie - diz o deputado, elencando a Baia da Guanabara e o Porto como locais onde há o tráfico de armas e onde lucra o crime organizado.

Crítico da política de segurança pública do Rio, Freixo afirma que as reclamações dos moradores dos morros questionam a presença da polícia, comparando à ausência de políticas sociais, postos de saúde e escolas. Para o deputado, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) visam atender as necessidades de uma cidade que será Olímpica em 2016:

- As UPPs representam um projeto de cidade e não de segurança pública. O mapa das UPPs é muito revelador: é o corredor da Zona Sul, os arredores do Maracanã, a zona portuária e Jacarepaguá, região de grande investimento imobiliário. Então, são áreas de muito interesses para o investidor privado. (...) A retomada é militar para permitir um projeto de cidade, que é a cidade Olímpica de 2016. Para toda cidade Olímpica tem cidades não-Olímpicas ao redor - afirma.

Freixo foi presidente da CPI das Milícias, que investiga a ligação de parlamentares com grupos paramilitares. Por conta disto, o deputado chegou a ser ameaçado de morte. Leia abaixo a íntegra da entrevista:

Terra Magazine - O senhor é conhecido pelo combate às milícias. Em alguma medida, esses ataques podem interferir no comportamento delas?
Marcelo Freixo - Esses ataques não tem nada a ver com milícias, são reações às UPPs, que não atingiram as milícias em nada. Não há nenhuma área atingida pelas milícias que tenham sido ocupadas pelas UPPs. Pelo contrário.

Sobre esses ataques...
Esses ataques são do varejo da droga, que é muito menos organizado do que se imagina. Representam o crime da lógica da barbárie, da violência. Não são pessoas que têm referência com o crime organizado, porque a organização não faz parte de sua cultura de vida. É a barbárie pela barbárie. Então, os ataques não vêm do crime organizado, que deve ser enfrentado de uma outra forma.

Que forma?
Se quiser enfrentar o crime organizado tem que ir para a Baia da Guanabara que é por onde as armas entram. Aí, sim. Ali tem a operação financeira do crime organizado para o tráfico de armas. Isso não se enfrenta no Rio de Janeiro.

O senhor afirma que se trataram de atos bárbaros, sem uma organização. Mas esses ataques estavam sendo comandados pelo Comando Vermelho e pelo Amigo dos Amigos.
São facções da barbárie. É o crime organizado dentro das cadeias. São grupos que só são organizados de dentro das cadeias. Muito mais dentro do que fora. O crime organizado é onde tem dinheiro e poder, que não é o caso das favelas, onde fica a pobreza e a violência. A tradicional política de segurança do Rio, perpetuada há 11 anos, enfrenta as favelas com uma ação letal. Em 2007, o mesmo governo (Sérgio) Cabral entrou no Complexo do Alemão, matou 19 e saiu. Como está o Complexo do Alemão hoje? Igual. Esse tipo de ação é muito ineficaz. Se é para enfrentar o crime organizado, tem que ser onde ele lucra, que não é na favela. A favela é a mão de obra barata, e é a barbárie. É preciso ir à fonte do financiamento e aonde passam as armas. Essa é a escolha política que até hoje o governo Lula não fez.

Como o senhor avalia a implementação das UPPs?
As UPPs representam um projeto de cidade e não de segurança pública. O mapa das UPPs é muito revelador: é o corredor da Zona Sul, os arredores do Maracanã, a zona portuária e Jacarepaguá, região de grande investimento imobiliário. Então, são áreas de muito interesses para o investidor privado. O Estado, portanto, retoma - militarmente - este território. A retomada é militar para permitir um projeto de cidade, que é a cidade Olímpica de 2016. Para toda cidade Olímpica tem cidades não-Olímpicas ao redor.

No morro Dona Marta, por exemplo, moradores reclamaram bastante da truculência policial durante a ocupação das UPPs.
Em todas as áreas de UPPs existe muita reclamação, e hoje em dia isso vem aumentando. A maioria das queixas são causadas pela agressividade policial, não necessariamente agressão física, mas pela atitude, ou abuso de autoridade. Outra reclamação recorrente é que só polícia chegou a esses morros.

Como assim?
Só chegou polícia e não investimentos sociais. E é claro que não só de polícia a favela precisa. Uma coisa é enfrentar a barbárie, outra coisa é o fator que mantém aquela favela ali. As pessoas precisam de direitos. Não adianta levar a polícia e não levar a escola, o posto de saúde, o saneamento. Isso vai gerando um desgaste para a própria polícia também.

Dentro desse cenário que o senhor chama de "barbárie", e somando a ele esses ataques recentes, o senhor acredita que fica de ônus ao morador da favela?
Esses momentos reforçam o processo de criminalização da pobreza no Rio, o que é muito perigoso. Hoje, todas as operações policiais no Rio acontecem nas favelas. Todas. Não há nenhuma na Baia da Guanabara, nem no Porto, que é por onde entram as armas e onde funciona - verdadeiramente - o crime organizado. Então, reforça-se esse processo de criminalização das áreas pobres

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

O mundo é masculino e assim deve permanecer

Olá, pessoas!

Estou encaminhando, em rede, para disseminação (quem quiser, puder e achar que tem a ver) a notícia veiculada em relação ao afastamento do magistrado de Sete Lagoas que se pronunciou, no processo, por meio de desqualificação e descriminação de gênero.

Tenho na decisão do CNJ um importante passo (o primeiro, de muitos, no sentido de implosão institucional, mormente a jurídica e acadêmica) para a dinâmica de composição de simetria em relação às relações inter-pessoais, bem como, no campo jurídico, o embate em torno da equalização e composição de divergências, não mais por gêneros, mas, numa teoria de longo alcance, pela consolidação do humano em sua androginia...

Ainda há de se fazer muito, principalmente a partir da mudança de paradigma em relação ao papel que as instituições jurídicas, bem como a academia, reproduzem, para que a decisão do CNJ não seja compreendida como uma benesse, um beneplácito da potestade Judiciário que, enternecido pela "causa nobre", "sensibiliza-se" pela "fragilidade" da "frágil flor" e, "compadecendo-se", resplandece em uma decisão "incomum e de vanguarda", como um "salvador da dignidade da mulher".

Tudo com muitas aspas mesmo, chamando a atenção para os discursos aparentemente ingênuos que, por sua vez, encobrem a perversidade em relação ao tema.

Não se deve ler a questão a partir de complacência do super ego do Judiciário: isso seria reproduzir o mesmo paradigma patriarcal, patrimonialista, hierquizado e discriminatório que sempre foi o pano de fundo para a tomada de decisões.

O que aconteceu pode, e deve, ao menos, ser focado sob o espeque de um cenário de fluxos e influxos, na dinâmica do desvendamento da hipocrisia e da superficialidade com que se focou o tema "gênero" que, a bem da verdade, reflete, por sua vez, LUTA em face da ignorância, do romantismo byroniano da castidade em relação ao feminino, enfim, de uma série de mobilizações que começaram a partir das demandas feministas e de gênero.

No caso específico do nosso ambiente de pesquisa e trabalho, tenho na vanguarda do ocorrido um alerta para uma questão que está longe de ser meramente conjuntural, estabelecendo-se como estrutural: nosso paradigma científico ainda se cravar, fincar - em desespero, é bem verdade - numa compreensão de mundo mecanicista e reducionista, que enxerga o mundo como um rato de laboratório e nós, maravilhosos seres, como cientistas que se colocam fora do "objeto de análise" (não saberia dizer qual o local de onde observamos, já que estamos imersos no ambiente que definimos como sendo o laboratório), sectarizados e sectarizadas segundo composição de status e papéis.

Uma advertência para a necessidade de constante reflexão sobre as correlações entre "cientificidade" e patriarcado, que andam de mãos dadas e, sem saber (será?), pode estar sendo, ainda, reproduzido nos recortes ainda dicotomizados pela naturalização de papéis, dentro de fora da academia, dentro e fora do trabalho (e, com isso, dentro e dentro da própria VIDA!).

Aceno para a decisão. Aplaudo o CNJ. Mas, como sempre, ligada e desconfiada, pois, diante da possibilidade de injustiça, é sempre bom andar com o olho sempre aberto...


Fonte: http://www.jusbrasil.com.br/noticias/2460866/cnj-afasta-juiz-que-considerou-inconstitucional-a-lei-maria-da-penha


O mundo é masculino e assim deve permanecer

(10.11.10)
Por nove votos a seis, o CNJ decidiu afastar ontem (09) o juiz Edilson Rumbelsperger Rodrigues, da Comarca de Sete Lagoas (MG), com a pena de disponibilidade compulsória - por meio da qual o magistrado fica impossibilitado de judicar por dois anos, mas continua recebendo os salários. Rodrigues foi acusado de fazer declarações machistas em decisões que se tratavam de violência contra a mulher.

De acordo com informações do CNJ, em sentença proferida em 2007, o juiz deu declarações incitando que as mulheres seriam inferiores aos homens. "O mundo é masculino e assim deve permanecer", por exemplo, entre outras afirmações de discriminação de gênero.

Segundo o jornal Folha de S.Paulo, Edimilson Rodrigues, em julgamentos de diversas ações, considerou inconstitucional a Lei Maria da Penha, sob o argumento de que a norma é "um conjunto de regras diabólicas" e dizendo que "a desgraça humana começou por causa da mulher".

Ainda de acordo com o jornal, em uma das sentenças, o magistrado chama a lei de "monstrengo tinhoso" e afirma que "para não se ver eventualmente envolvido nas armadilhas dessa lei absurda, o homem terá de se manter tolo, mole, no sentido de se ver na contingência de ter de ceder facilmente às pressões".

Em seu blog, o juiz Edilson Rodrigues publicou uma nota de esclarecimento, na qual afirma não ter dito que a "proteção à mulher é diabólica"; ele alega que o termo "diabólica" foi utilizado em seu discurso para explicar que "diabólica é a discriminação que a lei enseja e que leva o feminismo às últimas conseqüências, tentando compensar um machismo que há muito já se foi".

O juiz ainda alega que foram veiculadas notícias com a "falsa e equivocada ideia de que somos contra a severa penalização do agressor no âmbito doméstico-familiar; na falsa e equivocada ideia de que temos uma visão machista da relação homem-mulher e na falsa e equivocada ideia de que somos contra o desenvolvimento da mulher enquanto ser social".

Decisão

No entanto, para a maioria dos conselheiros, esse tipo de conduta é incompatível com o exercício da magistratura e, portanto, o juiz deve ser afastado. Após o período de dois anos, Edimilson Rodrigues poderá solicitar, ao Conselho, o retorno à prática profissional.

Além dos nove conselheiros que decidiram pela disponibilidade, os outros seis votaram pela censura ao magistrado e pela realização de teste para aferir sua sanidade mental.

O processo corre em segredo de Justiça e ainda cabe recurso dessa decisão no STF. (Com informações do CNJ).
http://www.espacovital.com.br/noticia_ler.php?id=21551

Juiz afirma que “a desgraça humana começou no Éden por causa da mulher”

(22.10.07)


A Lei Maria da Penha, que foi sancionada em agosto de 2006, aumentou o rigor nas penas para agressões contra a mulher no lar. Um juiz de Sete Lagoas, em Minas Gerais, porém, considera-a inconstitucional e vem sistematicamente rejeitando pedidos de medidas contra homens que agrediram e ameaçaram suas companheiras.

Segundo o magistrado Edílson Rumbelsperger Rodrigues, da 1ª Vara Criminal de Sete Lagoas (MG), “a desgraça humana começou no Éden por causa da mulher”.

Conforme uma das sentenças proferidas - no dia 12 de fevereiro - o controle sobre a violência contra a mulher tornará o homem um tolo. “Para não se ver envolvido nas armadilhas dessa lei absurda, o homem terá de se manter tolo, mole, no sentido de se ver na contingência de ter de ceder facilmente às pressões”.

Na mesma sentença, o magistrado também demonstra receio com o futuro da família: "a vingar esse conjunto de regras diabólicas, a família estará em perigo, como inclusive já está: desfacelada, os filhos sem regras, porque sem pais; o homem subjugado".

O magistrado ainda critica a “mulher moderna, dita independente, que nem de pai para seus filhos precisa mais, a não ser de seus espermatozóides”. Em outro trecho, diz que "o juiz criminal tem como competência coibir a prática dos crimes a partir da condenação de seus autores, nunca fazer juízo de valor acerca da legislação, sobretudo quando tal juízo dissemina preconceito".

O juiz usa uma sentença padrão, repetindo alguns argumentos nos pedidos de autorização para adoção de medidas de proteção contra mulheres sob risco de violência por parte do marido.

Sancionada em agosto de 2006, a Lei Maria da Penha (nº 11.340) aumentou o rigor nas penas para agressões contra a mulher no lar, além de fornecer instrumentos para ajudar a coibir esse tipo de violência. Seu nome é uma homenagem à biofarmacêutica Maria da Penha Maia, agredida seguidamente pelo marido. Após duas tentativas de assassinato em 1983, ela ficou paraplégica. O marido, Marco Antonio Herredia, só foi preso após 19 anos de julgamento e passou apenas dois anos em regime fechado.

Em todos os casos em suas mãos, o juiz Rodrigues nega a vigência da lei em sua comarca, que abrange oito municípios da região metropolitana de Belo Horizonte, com cerca de 250 mil habitantes. O Ministério Público recorreu ao TJ, conseguiu reverter um caso e agora aguarda que os outros 26 sejam julgados.

O CNJ vai decidir nos próximos dias se instaurará processo administrativo ou disciplinar contra o juiz. A ministra Nilcéia Freire, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, enviou recentemente ao CNJ cópia da sentença.

Ela também encaminhou uma moção de repúdio da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Assembléia Legislativa de Pernambuco, que havia tomado conhecimento da primeira polêmica decisão. Conselheiros do CNJ admitem que buscam uma forma de adotar medida legal como abertura de processo disciplinar contra Rodrigues. É que o órgão administrativo não tem o poder de rever o teor de decisões judiciais.

A moção de repúdio da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, da Assembléia Legislativa de Pernambuco afirma que "ao recorrer a argumentos religiosos para justificar o arbítrio do homem sobre a mulher, o magistrado desconsidera o princípio da laicidade do Estado".

No caso Richarlyson, a corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo abriu procedimento para apurar a conduta do juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho, que disse ser o futebol "viril, varonil, não homossexual", ao arquivar uma queixa-crime em que o jogador do São Paulo Richarlyson contra José Cyrillo Júnior, diretor do Palmeiras.

O CNJ também recebeu uma reclamação contra esse juiz, mas desistiu de tomar qualquer providência após a iniciativa do TJ-SP.