domingo, 28 de agosto de 2011

Notas sobre o funcionalismo penal na era da globalização...

Partindo-se da premissa que o direito penal constitui um arcabouço técnico operacional de normas conectivas do fato definido pelo legislador como crime à resposta estatal manifestada na pena, não seria equivocado afirmar estar a base de operatividade jurídico-normativa indo-européia, de tradição romano-germânica, fortemente arraigada em premissas lógico-abstratas e formais que, por intermédio de silogismos, ligam ou conectam uma conduta previamente definida como típica, valorada em ilícita e culpável, às cominações legais descritas como pena.

Coerente com a sedimentação conceitual do direito penal como dogma estruturante de todo sistema jurídico-repressivo, cumpre postular, no âmbito dessa lógica de pensamento, a função cometida à dogmática jurídico-penal, por meio da indagação acerca dos fins a que se destina o direito penal, pois, ao se indagar a finalidade, exsurgirá, como conseqüência, a orientação político-criminal adotada pelo intérprete magistrado, para a aplicação da sanção.

Para Toledo (1999, p. 13-14), a “tarefa imediata do direito penal é, portanto, de natureza eminentemente jurídica, e como tal, resume-se à proteção de bens jurídicos ”.

Bitencourt (1999, p. 34), por seu turno, percebe no direito penal a função reguladora dos indivíduos em sociedade, bem com as relações entre aqueles mesmos, reciprocamente considerados.

Zaffaroni (2002, p. 97-98), inclina-se pelo critério da segurança jurídica, aproximando-a da percepção de defesa social, entendida esta pelo doutrinador argentino como modus operandi de prevenção de condutas não desejáveis defesa social esta partilhada igualmente por Fragoso enquanto finalidade do direito penal, como aponta: "A função básica do Direito Penal é a de defesa social. Ela se realiza através da chamada tutela jurídica: mecanismo com o qual se ameaça com uma sanção jurídica (no caso, a penal criminal) a transgressão de um preceito, formulado para evitar dano ou perigo a um valor da vida social (bem jurídico). Procura-se assim uma defesa que opera através da ameaça penal a todos os destinatários da norma, bem como pela efetiva aplicação da pena ao transgressor e por sua execução" (Fragoso, 1994, p. 04).

No que diz respeito a tal complexidade, mister contextualizar a análise das funções do direito penal a partir da temática de subsunção a um panorama de mudança paradigmática suscitada pelo fenômeno da globalização, que trouxe uma mudança vetorial no comportamento delituoso, bem como na resposta estatal ao crime, pois, se outrora, o direito penal era, sobremaneira, apanágio de um sistema de liberdade e garantia à punição pela responsabilização subjetiva, hoje se encontra voltado à satisfação repressiva, que toma por base o afrouxamento das regras de imputação, expurgável ante a necessidade de salvaguarda do direito de liberdade duramente conquistado nas revoluções iluministas.

Como consectário direto, Bicudo sustenta que o fenômeno da globalização econômica é precursor de um pensamento funcionalista no primado intervencionista do direito penal, antagônico à sua função outrora garantista, resultado de uma globalização hegemônica de moldes estadunidenses e japoneses, mormente no que diz respeito à orientação do direito na atribuição de concretude às metas definidas por um modelo programático de multiplicidade de regras e variabilidade de fontes (Bicudo, 1998, p. 98) .

O direito penal, assim, findaria por se identificar com as projeções que lhes são esquadrinhadas pela com a política criminal, inserido aquele primeiro como subsistema social, em que “o conteúdo das categorias do sistema dogmático deve determinar-se em função do que resulte mais adequado ao sistema social em geral ou a um subsistema social em particular, tal qual o subsistema do direito penal. Funcional, neste sentido, é tudo o que se requer para a manutenção do sistema” (Bicudo, 1998, p. 104).

O direito penal atravessa um momento contraditório, pois, se de um lado a desregulamentação, descodificação e a desestatização acompanham um movimento globalizante, de outro, há um nítido intervencionismo estatal, consubstanciado na ampliação da repressão ao crime, quer seja construindo novos tipos penais, quer incriminando atividades em todos os ramos sociais, numa batalhada deflagrada contra o crime, que leva à relativização dos princípios da legalidade e tipicidade, bem como da redução paulatina do sistema de proteção dos direitos fundamentais do indivíduo (Silva, 1998, p. 85) .

Sintetiza Silva alguns consectários de uma globalização hegemônica experimentados pelo direito penal brasileiro, ventilada a partir da predominância de um pensamento fortemente repressivo, característica predominante do denominado Movimento de Lei e de Ordem, a exemplo da promulgação de excessivas leis extravagantes, com a criação de novos tipos penais; sentenças penais embasadas em jurisprudências estanques da realidade, compartimentadas de forma fechada, preservando e reproduzindo uma atitude dogmática, estimulando a preferência pela súmula vinculante, em uma reprodução do precedente judicial estadunidense; literatura penal representada pela edição de manuais práticos de direito penal, sem inovações substanciais, fulcrados nos ensinamentos meramente dogmáticos nos moldes do pensamento clássico da Escola Positiva; flexibilização ou relativização de garantias no campo penal; edição de leis mais severas e gravosas, resquícios do Movimento da Lei e da Ordem, que dramatiza a violência e incute a sensação de insegurança e impunidade na opinião pública; (Silva, 1998, p. 93).

É esse o grande Leviatã do séc. XXI, que irradia suas premissas, de maneira quase que imperceptível, nos raciocínios técnico-jurídicos que não se permitem a crítica.

Qual é marco de sustentação dessa lógica de lei e de ordem? Toda a severidade por via da lei penal. O direito penal como sendo tutelador e veículo repressivo usado em primeira instância e primeiro grau para reprimenda pelo primado da intimidação e da ferocidade.

O direito penal já está, segundo o autor, prejudicado quanto à identificação causal, seja no âmbito da expressão de racionalidade kantiana ou hegeliana, como também no pensamento sistêmico, convertido em uma lógica de custos e benefícios da conduta humana refletida: "
Cuando se confunde el deber ser com el ser, el idealismo racionalista se desvirtúa al grado de irracionalismo radical, pues no hay peor irracionalismo que dar por hecho la racionalidad humana, com su conseguinte desbaratamiento de cualquier estímulo para luchar por ella, toda vez que no se lucha por alcanzar um hecho natural" (Zaffaroni, 2000, p. 147-148) - encontrando-se a dogmática penal e as instâncias formais de controle social legitimados, dentro desse contexto, a resolver todos os problemas e casos que venham a engrossar suas fileiras, motivando aquilo que Zaffaroni (2000, p. 157) entende como um “sistema cerrado e robótico” do direito penal.

Caracterizada por mensagens virtuais de espetáculo legiferante, essa percepção poderia acarretar o aviltamento do sistema de garantias individuais, sob a escusa de atribuir funcionalidade à mitigação dos direitos processuais, em termos de resultado no controle da criminalidade. Esse modelo teórico ao qual a doutrina atribui o manto de racionalidade passaria a representar, assim, um parâmetro inspirador de gerações futuras, que irão reproduzir essa operatividade mecânica.

Tais considerações são pertinentes à análise da mudança paradigmática da função de tutela de bens jurídicos para uma finalidade de controle social punitivo, ferozmente repressivo, de expurgação do indivíduo pela mera conjectura causal não comprovada, de natureza funcionalista, a partir do denominado direito penal dos não-alinhados, desenvolvido progressivamente pela doutrina alemã no fim do séc. XX.

Em uma sociedade de massas, não haveria espaço para a percepção integrada de individualidade, mas, antes, para a visualização dos papéis desempenhados pelos indivíduos, quanto ao dever de compromisso com uma ordem caracterizada aprioristicamente pela fidelidade ao código operacional representado pelo direito penal.

Segundo Jakobs: "grau de fidelidade ao direito não é determinado segundo o estado psíquico do sujeito, mas é estabelecido como parâmetro objetivo por meio de uma pretensão dirigida a cada cidadão. Mas, exatamente, em razão desta pretensão se trata de um cidadão, uma pessoa, e não de um indivíduo sem amarras. Quem é culpável não satisfaz a medida aplicável aos cidadãos, é dizer, tem um déficit de fidelidade ao direito"(2003, p. 38).

Ante essa assertiva de identificação funcional de missões cometidas aos membros do grupo, a finalidade do direito penal necessariamente estaria voltada para a garantia de manutenção do código comunicacional, por meio da observância da norma contida no preceito legal.

Daí necessariamente advir, segundo Jakobs, a destinação reativa do direito em face de um reconhecido adversário, qual seja, aquele que não observa a destinação de seu papel em coletividade, e, insistindo, ameaça à coesão interna.

Neste sentido, o primeiro ajuste interpretativo sobre a proposta funcionalista de Jakobs é a especificidade quanto aos crimes identificados como preponderantes em um panorama de globalização. O rol acima descrito bem ilustra a realidade de anonímia nos contatos pessoais, em que se sobreleva a necessidade de substituir a individualização da conduta – eixo central da teoria finalista – para a punição pelo estabelecimento do chamado risco proibido, marcado pela exacerbação da conduta tida como ponderável em termos de cumprimento do papel individual.

O não-alinhado é um indivíduo que abandonou o direito , de maneira não meramente incidental, atacando imediatamente o mínimo de segurança cognitiva do comportamento pessoal e manifestando sua infidelidade ao direito por meio da conduta, atingindo ou colocando em risco, mediatamente, a segurança dos bens jurídicos.

A teoria funcionalista de Jakobs finda por produzir um fenômeno atual, qual seja, a concomitância de expressões normativas, ora flexíveis, ora recrudescedoras, em uma mesma realidade.

É esse, aliás, entendimento de Jésus–María Silva Sánchez em A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industrais (2002), ao desenvolver o conceito de direito penal de duas velocidades, caracterizado pela coexistência entre um modelo de direito penal “amplo e flexível” (p. 145), ao lado de um direito penal mínimo e rígido, reconhecendo, outrossim, um espaço de ampliação do direito penal, que, ao seu juízo, resultaria em um outro fenômeno, a saber, a supressão progressiva do primado garantista do direito penal, para a adoção de uma proposta funcional de neutralização do inimigo.

O desabafo lacunoso da maior lacuna chamada Direito!


Talvez seja a advocacia a mais árdua dentre todas as outras profissões que lidam com o direito, porque ela traz em seu bojo parcialidade e passionalidade, dialeticamente dispostas à eterna racionalidade, que, atenta à capacidade de superação, sempre está a exercer a crítica, observando a realidade e não quedando silente ante os déficits apresentados num sistema penal que, a rigor de uma inescondível estruturação bobbiniana, “não possui lacunas”, podendo ser, em si, contudo, a maior delas.

É nesse árduo terreno, onde fracasso e êxito trilham como facetas de Janus, que a beleza do debate se revela tímida, porém, contundente e feroz, movendo o causídico para a exaustão dos argumentos dispostos, no afã da verdadeira (re)construção do mundo e da realidade, recortadas de todo um universo simbólico , para abranger tão-somente aquilo que se entendeu por definir como realidade da conduta valorada em delituosa.

São tantas as versões dispostas como verdade, recortadas, lapidadas em vernáculo ininteligível para o leigo, e lançadas num frio papel timbrado – mais uma vez, simbólico – pela defesa, acusação, pelo magistrado, tribunal, pelos tribunais superiores e por tantas outras órbitas e hordas jurisdicionais – que a luta passa a ser travada em face de moinhos de vento, pois, por impropriedade e contradição em termos, a “verdadeira verdade” pode não ter qualquer outro sentido que não seja a tentativa frustrada de retorno espaço-temporal ao “status quo ante” que nunca será atingido – a conduta dita criminosa - posto que se recortam fragmentos de meros quadros fáticos que, longe de exaurirem o que aconteceu, por vezes se afastam daquilo que poderia ser entendido como ocorrido.



Ocorrido, que ficou para trás e se perdeu do essere, restando a coleta daqueles grânulos e farelos deixados ao longo do passo, tantas vezes deglutidos pelos pássaros famintos que ali procuram sustento!!!

Não foi sem propósito que Nicola Framarino Dei Malatesta sintetizou pertinentes considerações sobre a certeza que deverá mover o senso prudente do magistrado comprometido com a Justiça, a “certeza como seu estado de alma” (2001, p. 61), pois, para o tratadista, não é pela probabilidade que se condena, mas, antes, pela certeza, manifestada num sentido de verificação de uma realidade explicada, quando existe a conformidade entre uma noção ideológica e a realidade ontológica.

Isso já afasta, por si, a exigibilidade de absoluta certeza, reduzindo a reprodução do fato ao exame da veracidade contingencial que se apresenta ao juiz num sentido de posse do verídico, por meio do exame das provas, materializando uma convicção extraída não do estado superficial das provas, mas de um substrato nelas contido.

Policial condenado por tentativa de homicídio qualificado pede progressão de regime

Postando uma notícia INTERESSANTE para ser discutida em sala de aula, a partir do pedido de progressão de regime... Na íntegra, a informação do site de notícias do STF.

"(...) A defesa de um policial militar condenado por homicídio qualificado tentado propôs Habeas Corpus (HC 110091), com pedido de liminar, no Supremo Tribunal Federal (STF), no qual requer o direito à progressão de regime de execução da pena, sob a alegação de que ele já teria cumprido os requisitos para a concessão desse benefício. O policial busca afastar decisão do Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais que lhe negou igual pedido de progressão.

De acordo com os autos, M.L.S.P. foi condenado a nove anos de reclusão, em regime fechado, pelo delito de homicídio qualificado tentado (artigo 205, parágrafo 2º, inciso II e IV, e artigo 30, II, do Código Penal Militar). A defesa informa que em janeiro deste ano teria buscado a progressão do regime fechado para o semiaberto, pelo fato de o acusado já ter cumprido, desde o início de sua reclusão, período equivalente a um sexto da condenação.

Porém, a defesa aponta que o Tribunal de Justiça Militar do Estado de Minas Gerais negou a progressão de regime por ausência de requisito objetivo, sob o fundamento de o condenado “não ter cumprido dois quintos da pena, com fulcro no artigo 2º, parágrafo 2º, da lei 8.072/90”. Desse modo, alega que a corte estadual "considerou o crime militar como hediondo”.

A defesa contesta a decisão da justiça castrense por entender não ser possível classificar como hediondos os crimes militares, ao sustentar que "a lei dos crimes hediondos utilizou o critério positivo para definir os crimes assim considerados e não revestiu de hediondez os crimes militares, todos tipificados no Código Penal Militar".

O advogado do militar afirma ainda que a decisão impugnada, além de violentar o princípio da tipificação penal militar, ofendeu o princípio da individualização da pena, e alega que "a progressão do regime penitenciário é uma projeção da própria garantia constitucional".

O relator do habeas corpus é o presidente da Corte, ministro Cezar Peluso."(...)

sábado, 27 de agosto de 2011

Uma semana muito densa...

Terminei mais uma semana de aulas propedêuticas, todas elas dirigidas, talvez, a uma árdua aventura quixotesca de desmistificar uma densa rede de epopeias a sustentar um senso comum que invade a academia... o senso comum da superficialidade na crítica do mundo e da vida, sobretudo, do direito penal e, mais ainda, das penas e do sistema penitenciário.

O campo jurídico não tem uma tradição - muito menos treinamento - em pesquisa empírica e, com isso, muito do que se afirma em sala de aula - de maneira incauta e desadvertida - ecoa como reprodução de uma lógica perversa de repetição dos editoriais levianos que a mídia comprometida irradia por aí.

O que chama a atenção nas falas recorrentes reflete a ausência de um corpus específico que contemple a pesquisa de campo, e não apenas se prevaleça de alguns dados quantitativos, recortados de seus contextos e apenas utilizados para reforço argumentativo (ou retórico) nas “teses” elaboradas pelos pesquisadores na área jurídica, beirando o impressionismo...

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Estava lendo um post de notícia do Superior Tribunal de Justiça e não pude conter uma gargalhada ímpar ao ler o argumento de um Membro do MP para fundamentar um "dolo eventual" digno de uma odisseia scy-fy.

Por vezes me pergunto... até onde vai a conditio sine qua non?

Até Adão e Eva?

Ou iria até o Big Bang?

Claro - agradando a todos - do misticismo cristão até a ciência da explosão iniciática, acho que tudo é válido numa Ilíada ministerial que faz um contorcionismo com o finalismo que dá dó. Não seria mais fácil rasgar a cartilha de Welzel, então, e partir logo para a pancadaria da teoria do risco?

Falar em risco proibido em face da onsciência do estado de vulnerabilidade física? penso que sim, mas nossos profissionais, órgãos, docentes - eu me incluo - não estamos a fim de dizer o que já é ipso facto: o finalismo morreu na cruz...

Sim, porque a julgar pela parte que negritei, o membro do Parquet (a crítica não é institucional, é ao órgão, na impessoalidade),

A notícia está disponível no site http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=102918, abaixo reproduzida:

"DECISÃO
Mantido trancamento de ação contra mãe e filha acusadas de tentativa de homicídio
A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve decisão que trancou ação penal instaurada contra mãe e filha pela suposta prática do crime de tentativa de homicídio. Os ministros, de forma unânime, não acolheram o pedido do Ministério Público do Estado do Mato Grosso, que pretendia a reforma da decisão.

De acordo com a denúncia, mãe e filha teriam assumido o risco de matar a nova companheira de seu ex-marido e pai. Elas teriam invadido uma clínica, na qual a vítima se encontrava imobilizada em uma maca para a realização de tratamento estético. Narra a denúncia que a ex-mulher começou a agredir a vítima, mas foi impedida por três funcionários.

Em seguida, a filha jogou a vítima na parede e deu-lhe diversos socos, o que ocasionou uma fratura no nariz. Conforme o Ministério Público, as acusadas “agiram com dolo direto e eventual, assumindo o risco de matar A. K, pois têm o conhecimento de seu estado patológico, que propicia a ocorrência de embolia pulmonar, assentindo e desejando o resultado morte”.

Contra a denúncia, a defesa das acusadas impetrou habeas corpus no Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT), que concedeu a ordem para trancar a ação penal, sob o fundamento de que não estaria presente no caso o dolo direto ou eventual de praticar o homicídio.

No STJ, o Ministério Público afirmou que, “ao contrário do que restou decidido pelo tribunal local, a denúncia traz de forma clara os indícios da autoria e certeza quanto à materialidade do delito atribuído às recorridas. A vítima sofre de uma doença grave e, conforme restou provado, as agressões poderiam tê-la levado a óbito. As recorridas, mesmo tendo o conhecimento acerca da doença da vítima, assumiram o risco, agredindo-a, caracterizando, portanto, o dolo eventual descrito na denúncia”.

Em seu voto, a relatora, ministra Laurita Vaz, destacou que o habeas corpus somente permite o trancamento da ação penal quando, excepcionalmente, evidenciar-se, de forma inequívoca, a inocência do acusado, a atipicidade da conduta, a extinção da punibilidade ou a ausência de justa causa. “É o caso”, assinalou.

Segundo a ministra, as acusadas agrediram a vítima, que é a nova companheira do ex-marido, com tapas, socos e empurrões em uma clínica de estética, com inúmeras testemunhas, evidenciando o dolo de lesionar.

“No entanto”, explicou a ministra relatora, “o Ministério Público Estadual ofertou denúncia contra as acusadas, imputando a conduta de tentativa de homicídio pelo fato de a vítima ser portadora de uma alteração genética denominada Fator V de Leiden, que pode ocasionar uma hipercoabilidade ou uma trombose. Assim, observa-se que a peça acusatória divergiu da intenção e vontade de lesionar demonstradas pelas denunciadas”.

Assim, a ministra Laurita Vaz afirmou que não há como considerar típica a suposta tentativa de homicídio que foi imputada às acusadas, pela ausência de justa causa para a ação penal, o que não impede o Ministério Público de oferecer nova denúncia pelas condutas efetivamente praticadas"


domingo, 21 de agosto de 2011

Poena, ponos, punya: tudo é DOR!!!



Semana passada perguntaram para mim qual a utilidade da pena e, sem pestanejar, falei "nenhuma, apenas produzir dor". Meio ortodoxa e radical para uns, leviana e sem aprofundamento crítico para outros. Insana, para outros tantos, principalmente se considerando o fato de ser - ou estar - professora de Direito e Processo Penal.

Não poderia, contudo, falar algo que fosse diferente da minha matiz experiencial, de minha vivência e reflexão em cima do que já li, ouvi, presenciei e pesquisei. Ao contrário do que possa parecer, não vivo trancada numa torre de marfim, dentro de um gabinete ou de um escritório. Ou, ainda, sentada em "berço esplêndido" de uma sala de aula com ar condicionado.

Meu lugar de fala parte de uma multiplicidade de enfoques, todos eles bem pé no chão, a partir da vivência como advogada, apanhando a cada dia, bem como pesquisadora incessante, que se lança no mundo, interagindo com ele, ora como espectadora, ora como personagem.

Assim, falar sobre a pena e a sofisticação de montagem de um sistema penal vem do conforto de quem se debruça a sair da zona de conforto produzida pelo noticiário e pela mediocridade dos editoriais e apresentadores que poucos sabem de si e, por isso, nada sabem dos outros e da vida.

Quer seja a etimologia: poena (latim), ponos (grego) ou punya (sânscrito), tudo gira em torno de sofrimento, dor e purificação, num manancial vertido de duras lágrimas, trazendo uma vinculação explícita da pena à expiação, ao suplício, à dor e à violência, sobretudo se considerarmos nossa insistência na "civilidade" do direito romano e na redenção apresentada pela ideologia contida no direito canônico (de matiz judaico-cristã a expressar culpabilidade).

Para Carneluti - bem maniqueísta e literato no formalismo como maneira de engavetar o mundo dentro do processo - a pena, do mesmo modo que o delito, “é um mal, ou, em termos econômicos, um dano” (El problema de La pena. Buenos Aires: Europa-América, 1947, p. 14) que implica a perda de bens jurídicos (mais notadamente, a LIBERDADE).

Já Zaffaroni fala em coerção penal como ação de contenção ou repressão que “o direito exerce sobre os indivíduos que cometeram delitos” (Manual de Direito Penal, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2001, 741). Tudo muito higiênico, conceitos muito elaborados, eruditos, dignos de nossa intensa produção jurídica, mas que encobrem a sensibilidade da empatia de perceber no outro a tiragem da aplicação de sofrimento.

Nosso pedigree é bem farto: parece ter sido feito num "balaio"de gatos de clonagem clássica, miscigenação entre direito grego, romano, canônico e germânico, gravitando entre uma forte tradição moral, religiosa, consuetudinária, oralmente transmitida e castigo, expiação como reação punitiva de caráter religioso, sacralizado.

O contexto de algumas sociedades tribais revela, em diversos momentos históricos, a tônica da resposta coletiva calcada, ora na vingança perpetrada pelo ofendido ou por sua família, como reação direta dos membros do grupo e fortalecedora dos laços de coesão entre os indivíduos, ora na vingança divina, por intermédio da qual se aplacava a vontade contrariada dos deuses, posteriormente transferida para o eixo de poder regulatório do Estado, ante o desenvolvimento pelo qual as sociedades vão atingindo outras formas de organização (FRAGOSO, 1994, p. 30).

Por fim, pode-se compreender a pena resultado mais visível da sofisticação do instrumento estatal de exercício de controle social, no intuito de produzir uma gestão regulatória de condutas, no caso, manifestando parcela de controle social punitivo.

Saímos das masmorras abaixo do rei para a invisibilidade da penitenciária. Da aplicação de suplícios corporais em meio à praça pública - como forma de impactar a vila para purgar o atentado ao "corpo do rei" - para a domesticação dos corpos por meio da "aprendizagem" e ataque à mente. Da desorganização das latrinas dos calabouços para rentáveis fórmulas de economicidade no exercício da raiva. Da sodomia do físico para o aniquilamento mental. Como, então, dizer que a pena teria outra finalidade, então?

Se tenho na pena retribuição, devolvo dor com dor, gerando, assim, mais dor, de modo a irromper, daí, a imprestabilidade do retribucionismo puro e simples. Se "ressocioalizo", descubro que, além do conceito de "socialização" já ser problemático (que sociedade? que valor? que socialização?), o de "re-alguma-coisa" o torna quixotesco!

Prevenção, pois, sem se cogita...

O que resta?

Não sei, estou pensando...


Por isso, ao menos, coloquei uma foto de um cara bonito, pois, enquanto penso na dor, olhando o moço sentindo dor naquele corredor, posso pensar na pena...



A arte do argumento à luz da primeira infância do direito



Sabe aquela fase da primeira infância, quando nos posicionamos a perguntar os "porquês" de tudo?



"Por que o céu é azul, por que precisamos tomar banho". Um festival de perguntas, que deixam, quase sempre, os adultos de cabelo em pé.

Pois bem, fazendo um tosco - mas pedagógico - paralelismo entre a pueril fase de nossa vida e a metodologia da arte da argumentação e fundamentação no campo jurídico, poderia ser bem feliz em afirmar meu nítido posicionamento em relação à necessidade de produzirmos melhores argumentos para sustentação de nossas ideias.

No Direito ainda se pratica muito o uso à retórica do "argumento da autoridade", chamando-se para a "tese" que nada tem de tese - mas, sim de um campo minado de ctrl c + ctrl v - um calhamaço de autores e autoras, nomes e mais nomes, obras e mais obras, sem o cuidado de apresentar a razoabilidade do argumento.


Uma "massaroca" compacta, que cai, como um paquiderme, na petição feita, quando achamos que erudição é sinônimo de argumentação, sendo que, a bem da verdade, refere-se ao acervo de informação, e não ao que se faz com ela.



As petições pesam toneladas desse jeito. Folhas de papel são gastas assim. Árvores são cortadas apenas para sustentação da epifania da mediocridade na elaboração de peças, pareceres, sentenças ou portarias recheadas de palavras "bonitinhas, mas ordinárias", numa epopeia digna de Nelson Rodrigues...



Bocas se abrem em bocejos longos, retratando o tédio do leitor - magistrado, promotor, ministro, professor - em relação a uma verborragia para lá de decorada, notória e cansativa. Ninguém aguenta mais isso!



Por outro lado, doutrinadores são chamados, um a um, em fila indiana, pelo pedigree de seus nomes e títulos, a sustentar o que nos limitamos - mal e parcamente - a escrever em poucas linhas, confiantes no alicerce que isso poderia representar em termos de convencimento. Uma pobreza sem fim, transformada na expectativa de se estar fazendo o que se pode fazer de melhor: reproduzir, como papagaios de pirata, o que outras pessoas já fizeram...

Daí algo sempre me chamar a atenção quando me deparo com meras frases de efeito, sintetizadas em afirmações sem pé nem cabeça: à escusa de ser tudo muito sucinto em termos de enunciação de uma resposta, as petições não revelam a cautela de fundamentação por via do desenvolvimento do raciocínio.

Uma dica que sempre funcionou para mim é SUPOR QUE MEU LEITOR NADA SABE DE DIREITO, pois, com isso, posso explicar, pausadamente e com mais riquezas de detalhes, o que é objeto da questão. Como um pincel numa tela branca, vou espalhando pelo papel cada palavra, pouco a pouco e sem pressa, partindo do nada para, quem sabe, chegar a algum lugar que não seja tão vazio. Não se pode economizar o que reside de mais magistral no humano: sua racionalidade...



Já ouvi muito "mito" sobre isso. "Juiz não lê, nem adianta". "Não se faz uma peça longa, porque o magistrado nem vai chegar até o final"



Mitos, mitos e mais mitos.



Um juiz não se atém a prestar atenção, sim, mas à ASNEIRA.



Isso sim, claro!



Um amontoado de palavras sem nexo, sem cotejo analítico com o fato e, sobretudo, "sem eira nem beira" realmente produzem aversão em qualquer pessoa que tenha dois neurônios em parcas sinapses.



Mas, ao contrário, quando se lapida a peça, por meio da exposição pausada e completa do que se pretende defender, a história muda de final.

Daí, lembrando-me da primeira infância, faz muito sentido exaurir os porquês para se chegar a uma resposta com raciocínio completamente desenvolvido. Quando acabarem os porquês acabará a exigibilidade de fundamentação. Ninguém resiste a isso...Nem que seja...pelo CAN SA ÇO!




Sendo muito chata!!!



Sim, sou chata! Terminologicamente exigente e crítica?

Talvez, mas acho que o campo semântico - ou seja, o conjunto de tudo que cada palavra significa - traz muita distinção, no campo jurídico, diferenciação em relação a como construímos e desenvolvemos determinados institutos.

Uma das primeiras aulas de processo penal 3, contextualizei o processo de execução penal na teoria de processo, situando-o como última fase do processo penal condenatório [Nucci (2006, p. 947) e Magalhães Noronha (1998, p. 563)]. Precisava fazer isso para seguir adiante com a ideia entre diferenciar vícios e irregularidades que podem - no caso dos primeiros - ou não - no caso das segundas - acarretar danos à atividade jurisdicional.

Daí pensei em fazer uma reflexão sobre as distinções entre processo e procedimento, porquanto havia afirmado, em sala, que eventuais problemas (vícios) trariam tatamentos diferenciados, se ferirem momentos distintos do percurso/movimentação.

Quando se fala em processo, falamos no próprio exercício da jurisdição, a partir da atividade constitucional afeta ao Poder Judiciário de declarar direitos subjetivos - função típica de judicar, declarar o direito à espécie.

O processo, portanto, encontra seu fundamento no exercício do poder de declarar o direito (daí falarmos em juízo de COGNIÇÃO, cognoscere = conhecer). O ato de conhecimento demanda integração no caminhar, plenitude no acessso ao mundo. No caso, ao mundo jurídico - ou, melhor, numa visão bem Aury Lopes Jr., ao menos na verdade processual como realidade construída.

Por isso, quando se fala em pro + cedere, não seria outro o sentido de percorrer a trilha, olhando, metaforicamente, para a trajetória do caminho em que se anda, pois apenas com a conglobância e a omnisciência (ainda que reduzida, pois o Direito recorta fatos arbitrariamente) podem trazer o acesso ao todo. Para o Judiciário, o todo denota a sentença...

Quando, por outro lado, falamos em procedimento, estamos numa outra face - de uma mesma moeda, quem sabe - a externalização visível desse poder de declarar o direito. Assim, procedimento é o aspecto externo, visível, palpável, do suceder de atos que culminam na sentença.

O processo é, então, o caminho no plano da FINALIDADE (ou teleologia, qual seja, atingir a declaração do direito), enquanto o procedimento é a materialização, por via do que preceitua a lei em termos de ritos (fórmulas) como sendo o passo-a-passo perceptível a olho nu. Assim, o processo está para a atividade jurisdicional, assim como o procedimento está para uma atividade admministrativa. Sem erro...

E quando falamos em "autos"? Eles são a "catalogação", o acervo material, na justaposição de papeis, que se destina a documentar o que está acontecendo no procedimento e que determinará o processo.

Quando vou ao fórum, contudo, não fico com dramas de consciência ao me dirigir ao funcionário do cartório falando que "gostaria de ver os autos do processo", quando, na verdade, com muito fôlego, quero dizer "por favor, gostaria de ver o procedimento de autos número XXX relativo ao processo em face de Fulano". Nãooooooooooooooo!

Sei que o funcionário, ao ser instado a me entregar "os autos", não me dará apenas a etiqueta de catalogação, assim como sei que ver o processo, também, é mirar nos moinhos de vento de Dom Quixote, pois a atividade finalística não é plasmável a esse ponto: reside no plano normativo e abstrato, cujo conteúdo de ritualização (procedimento), este, sim, pode ser apreendido...


quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Verso e prosa na caneta do Delegado...

Parabéns pela iniciativa do Delegado Reinaldo Lobo, que escreveu um inquérito em forma de verso e prosa, com direito a repente.

Muito interessante...

Mais interessante ainda é a estupidez institucional, pois, ao invés de resolver pendências de expoência, a Corregedoria "puxou a orelha do Delegado", devolvendo-lhe o inquérito para ser "feito nos padrões" da Polícia. Não sabia que existia um padrão a ser seguido, pois, do pouco estudo que tenho em situações congêneres, o que tomo como importante é a narrativa fática. E isso abundou no verso, bem escrito, articulado.

Uma moção de desagravo para a Corregedoria da Polícia Civil do DF, por revelar uma falta de criatividade e espírito pós-moderno de perspectiva de mundo, e da VIDA!

Eis o link: http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2011/08/delegado-do-distrito-federal-relata-crime-em-forma-de-poesia.html