sexta-feira, 21 de junho de 2013

Lei, norma, prescrição e proposição: notas lúdicas sobre dogmática jurídica e fontes do Direito

Partindo da compreensão de que a dogmática jurídica é o ramo específico dentro do Direito (fenômeno cultural, normativo plurifacetado) que se ocupa do estudo da norma, Ihering já prelecionava no conteúdo da norma uma orientação imperativa de ordenação. 

Encarando a norma como proposição, temos na estrutura do dever-ser (sollen) sua manifestação. Trata-se de um imperativo condicional, formulável conforme proposição hipotética: Se A é, então deve ser S.

Dentro disso, temos: A = conduta hipotética / S =  sanção que segue à ocorrência da hipótese / DEVER SER = conectivo, ou seja, o que liga a hipótese descrita em lei (que representa implicitamente a norma) e a conduta, numa relação de subordinação.

O que legitimaria, segundo Paulo Nader, a norma?

Muito simples: a expectativa mútua de comportamento (contra fática porque o fato, no caso, seria o evento a se submeter à norma), baseada numa seletividade de expectativas e possibilidades de interação entre os indivíduos. 

Dentro disso, a norma sempre encerra em si a possibilidade de desilusão (ou seja, ao lado da expectativa/confiança que depositamos em relação a todos/todas estarem suscetíveis a cumprirem os preceitos, caminha a possibilidade de frustração em relação à norma ser descumprida [e, por resultado, a lei ser cumprida].

A norma é, nesse sentido, um imperativo condicional de comportamento, bem como a ordem normativa: rede de possibilidades explicáveis por nexos causais na qual a causalidade é condição de NORMATIVIDADE.  Ou seja, condiciona por meio da sanção, numa imputação deôntica (ou seja, de subsunção. 

Com isso, a norma passa a ser uma estrutura normada, dogmática, independente, permanente, objetiva, concreta, que possui objetivo de conferir estabilidade nas relações (sobretudo de confiança).

Daí importante ressaltar a diferença entre lei e norma. Lei é a regra estatal, genérica, universal, formalmente elaborada pelo órgão competente (Legislativo), dotada de coatividade e coercitividade, trazendo a descrição de comportamentos, a partir do que explicitamente está redigido no diploma escrito. A norma, por seu turno, é o conteúdo implícito contido na lei, ou seja, seu teor latente. Lei e norma compõem, assim, faces distintas - "lados da moeda". 


Direito, ética e moral

Eis um grande desafio na democracia: as linhas tênues entre Direito, Ética e Moral. Isso porque, muitas das discussões que envolvem pluralismo político e representatividade de grupos passa pelas distinções em relação aos valores partilhados em grupo.

O Direito - entendido no âmbito da dogmática jurídica como um ramo do conhecimento humano responsável pela instrumentalização das normas, leis responsáveis pela ordenação das condutas e pela administração de conflitos - tem como pressuposto a universalidade, generalidade, bilateralidade, abstração, formalidade no que diz respeito à elaboração legislativa, o que, dentro da CF/88 traz um compromisso em termos de homogeneidade.

O que isso quer dizer?

Simples: o Direito (ou direito, sabe-se lá) almeja regrar universalidades, atingindo, assim, dentro de um Estado, todos e todas cidadãos e cidadãs. Daí o caráter de heteronomia, bem como, no mínimo, de bilateralidade, já que não existe Direito numa ilha deserta habitada por um ser humano só (ou seja, somente existirá Direito quando Robinson Crusoé encontrar Sexta-feira, pois, antes disso, não existe necessidade de ordenação social, já que não se está sob a égide de sociedade). 

Com isso destaca-se o Direito da Moral, que também envolve sistema ou conjunto de regras sociais, mas desprovida de coercitividade e coatividade ESTATAL, uma vez que os valores morais variam em função dos grupamentos sociais distintos (grupamentos sociais distintos, valores morais distintos). A moral é, ainda, autônoma, ou seja, um sistema auto-suficiente de regramento, diferentemente do Direito que, sendo heterônomo, regra-nos em cima do que preceitua formalmente o Estado (hetero = diferente + nomos = regrar, normatizar). 

Kelsen, por ocasião da Teoria Pura do Direito, pretendeu dissociar do estudo da dogmática jurídica e, portanto, do Direito (já que ele entende que a expressão do Direito consiste na própria norma), da moral, criticando, com isso, a teorização jurídica de Kant em cima da elaboração conjunta entre moral e direito. Mas, uma pergunta: o Direito estará dissociado completamente da Moral?

Para a teoria do mínimo ético de Jeremy Bentham não, na medida em que o Direito seria, para o autor, o mínimo de moral que agrega a formulação do ordenamento jurídico. A teoria do mínimo ético é muito criticada em face da separação entre esses dois nichos de conhecimento, mas nos formula questões interessantes no plano da validade (fundamento) das normas, bem como de sua eficácia (ou seja, a legitimidade reconhecida pela sociedade).

Qual seria, dentro disso, o papel da ética? Formular um percurso pessoal dentro dos valores morais, um trilhar individual em termos de contemplação dos valores que são reproduzidos em sociedade pelo ser humano. 

Podemos destacar, dentro de tais linhas divisoras, regiões distintas entre Direito, Moral e Ética: o Direito relaciona-se com a expressão máxima de normas (estatais, sobretudo) que contém o mais universalizante caráter (basta lembrar que nosso direito é federalizado, ou seja, irradiado para todos os entes da federação, à exceção, claro, das leis locais - estaduais, municipais - que, ainda assim, são coletivizáveis), enquanto a Moral refere-se aos modelos de conduta, comportamento e valores, que são suscetíveis às diferenças entre os grupos. A Ética, nesse contexto, relaciona-se ao mais particularizado percurso, pois é a adoção de um caminhar pessoal, que toma como referência os valores morais.

Simples assim.

Uma sociedade plural - ou seja, que prestigia valores distintos de grupos distintos - e democrática será aquela em que o ordenamento jurídico - e, portanto, o Direito, permite a tutela dos direitos e deveres de todos e todas, independentemente das divergências morais entre os grupos. Qual a regra? Aderir ao ordenamento jurídico, pois, dentro de nossa opção positivada e codificada (ou seja, formal, escrita, metodologicamente disposta na lei), o preceito que outrora poderia ter sido moral, possa se convolar (transformar) em regra jurídica.


Positivismo jurídico e normativismo jurídico: noções gerais

Fonte: http://media-1.web.britannica.com/eb-media/73/25073-004-D636B2E7.jpg
O Positivismo - e, mais especificamente, o Positivismo jurídico - constituiu, ao longo de 300 anos de História, uma tentativa de cientificização do Direito, a partir da crítica aos postulados universalistas, atemporais e imutáveis que o jusnaturalismo imprimiu às tentativas de se explicar adequadamente o que é o Direito.

Deita suas raízes no Positivismo filosófico de Comte, Durkheim e Mill, partindo da impossibilidade de noções absolutas, com a renúncia da origem e destino do Universo em cima de fatalismos abstratos, negando, assim, incognoscibilidade das coisas.

Para os positivistas, é possível compreender a priori determinada categoria, inexistindo um conceito de "essência" dos objetos (e, portanto, do Direito). Extremamente empíricos (ou seja, baseando as reflexões em cima da experiência ou da concretude a ser analisada), o positivismo filosófico se apropriava do método experimental, no qual a observação do fenômeno constitui instrumento para compreensão das relações invariáveis de semelhança e sucessão (noção de lei, tal qual na Física).

O Positivismo científico no Direito teve em Comte, Durkheim, Mill e Lombroso a redução da realidade humana ao fenômeno físico, bem como a separação entre ciências humanas e sociais (moral, direito), das físicas e naturais. No Positivismo científico a liberdade é questionada - e, a bem da verdade, negada - em face do forte determinismo causal, numa  rigidez fisiologicista.

No âmbito do Positivismo jurídico, grande expressão teve Kelsen, Gray, Probert, Rousseau, Kant e Ripert seus maiores expoentes. Como se trata de uma postagem de linhas gerais, não vou me ocupar em fazer uma dissecação de cada qual, deixando para um momento posterior a elaboração de textos próprios, com as respectivas teorias.

A obra de Kelsen - Teoria Pura do Direito - identifica o Direito com o Direito Positivo, por intermédio da construção de um modelo prescritivo que teve na Teoria Pura do Direito sua maior expressão. Nela Kelsen purifica, ou seja, aparta - ou procura justificar a apartação - entre o Direito e a Moral, para atribuir validade na vigência. Ou seja, a norma tem poder de coercibilidade (potencialidade de sancionar) e coatividade (poder imediato de obrigatoriedade) porque entra em vigor, depois de um processo jurídico de elaboração e colocação no ordenamento jurídico. Com isso, a norma coage e obriga porque está em vigor.

Uma das maiores polêmicas consiste na polarização entre Kelsen e Kant, em face das respectivas doutrinas sobre Direito. Kant trabalha a partir da compreensão de imperativo categórico, a partir da norma implícita "não matar" contida no preceito proibitivo da lei. 

Ao contrário, Kelsen não entendia na moralização uma via de legitimidade do Direito, mas sim na construção de um imperativo hipotético, no qual a hipótese fática (sein, o ser) pode (ou não) subsumir-se ao conteúdo preconizado em norma. 

Tomando como exemplo o art. 121, no qual consta o verbete "matar alguém - pena reclusão, 6 a 20 anos", o imperativo kelseniano não proíbe moralmente o evento, mas, antes, atribui como resultado ou consequência (chamada consequência jurídica) uma sanção penal ante o cometimento do ato. Com isso formula o enunciado:

Se A é, então B deve ser, no qual a assertiva "se A é" representa o sein (ou seja, a realidade fática - ou o comportamento humano no mundo real), que, uma vez subsumido (ou seja, encaixado) ao preceito primário (o comportamento em tese colocado no texto de lei), acarreta o preceito secundário ("então B deve ser") . O "ser" é, dentro disso, o sein kelseniano (sein = ser em alemão), em face do sollen (ou seja, do dever ser). 

Para a doutrina da decisão judiciária (ou teoria da decisão judiciária) de Grey, o fundamento do Direito reside na obra interpretativa do juiz, e não na atividade legislativa. Ao contrário da tradição alemã de Kelsen, Grey representa forte pensamento estadunidense, que espelha na força do precedente (precedent case) o veículo de legitimidade do Direito. Com isso, é o juiz - no qual se reputa credibilidade e confiança - que se deposita a legitimidade para a interpretação das normas.

Qual a maior crítica feita ao positivismo? 

Simples. 

A ausência de reflexividade sobre seu conteúdo valorativo, confundindo-se a realidade jurídica com a norma (normativismo) ou, ainda, com a própria lei (legalismo). De mais a mais, o positivismo reduz o Direito ao que é criado pelo Estado, não captando e legitimando o que não é estritamente produzido pela atividade legislativa (essa é, inclusive, a maior crítica de Lyra Filho) (1999, p. 30) ou pela jurisprudência.

Outro ponto interessante - em termos de críticas - consiste na aparência de neutralidade (conceito invocado pelo Positivismo, quase sempre em nome, por exemplo, de uma bandeira de igualdade formal, ou seja, posição jurídica perante a lei) do intérprete. Imbuído de uma ingenuidade, o hermeneuta insere-se - como bem lembra Wolkmer (2003, p. 67) - em um universo simbólico, linguístico e hermenêutico fortemente comprometido com ideologias de grupo e classes dominantes, não sendo meramente um aplicador isento de valores. Antes disso, é um replicador ideológico que pode tanto sustentar status quo como, de outra sorte, empreender a mudanças estruturais em uma sociedade, usando o Direito. 

Ou seja, o intérprete (advogado, juiz, promotor, ministro, procurador, defensor, delegado etc.) imprime para sua atividade sua carga idiossincrática (símbolos e representações), bem como seus valores, sendo até mesmo inócua a discussão (piada) sobre neutralidade. Trata-se de mito dizer que o profissional do Direito "se distancia" para julgar ou apreciar a situação com "isenção de valores". 

Não podemos esquecer, ainda, que o Positivismo, assim como o Jusnaturalismo, deu azo - como instrumento ideológico - à conquista liberal em que o Estado se confunde com a vontade individual coletivizada, em um esforço de compreensão do cidadão como participante - em patamar de igualdade formal diante da lei - da sociedade política (ao menos no plano formal, como dito), em contraponto ao alijamento - no plano material - desse mesmo cidadão, no plano jurídico-político (a exemplo da incongruência trazida pela inexistência de igualdade na distribuição de renda em uma sociedade).  

A advertência quanto à ideologia com a qual o Positivismo firmou-se como dogma (daí o nome dogmática jurídica, designando o estudo sistematizado dos pressupostos do Direito enquanto ordem estatal, norma estatal) também se encontra na pauta de críticas fortes ao Positivismo, reproduzido como falsa crença de ideal democrático e libertário (paradigma liberal), mas que encobre discriminações (sobretudo em uma sociedade como a brasileira, com fortes contradições internas).

Por fim, acredito ser extremamente pertinente traçar uma distinção entre alguns conceitos utilizados como sinônimos no mundo jurídico. Não podemos confundir o positivismo jurídico, codificação e normativismo jurídico. O primeiro relaciona-se ao método ou a sistematização do Direito estatal, que pode ser codificado (ou não, a exemplo do sistema de precedente). O normativismo, por seu turno, consiste na redução de toda a realidade do Direito ao universo normativo (ou seja, o que não está contemplado em norma não consistiria em instrumento de materialização do Direito).


Jusnaturalismo, direito natural e Justiça:

Escolas jurídicas (ou, como alguns falam, "correntes jurídicas", apesar de eu preferir chamá-las de paradigmas, por serem modelos aceitos pela comunidade acadêmica [ver Thomas Kuhn]) marcam os modelos explicativos de como, em determinado momento histórico e em certos locais (Brasil, mundo) sociedades vivenciavam e construíram seus ordenamentos jurídicos, bem como as concepções sobre o Direito. 

Com isso, entender o Direito passa necessariamente por entender o suceder desses movimentos intelectuais.

Nossa "herança" mais perceptível reside no chamado jusnaturalismo, uma expressão de pensamento jurídico baseado numa concepção denominada "direito natural" (ou seja, jusnaturalismo e direito natural são não sinônimos, depois veremos isso). Um (jusnaturalismo), representa o paradigma, enquanto o outro (direito natural), o conjunto de preceitos que formam o conteúdo do paradigma. 

A pergunta que logo vem à cabeça: o que é direito natural? O que significa estritamente estar de acordo com a "natureza"? De que natureza estamos falando? Aquela do IBAMA? Do panda, do mico-leão-dourado? Não, é mais profunda a ideia. Vejamos. 


Sófocles (Antígona) expressa bem a existência de leis não escritasque não são de hoje nem de ontem”, eternas e imutáveis, sujeitas à ira divina, como no diálogo entre a protagonista e Creonte: 

CREONTE: Tu te inclinas a cabeça para o solo, confessas ou negas haver sepultado a Polinice? 

 ANTÍGONA: Confesso. Não nego haver-lhe dado sepultura. CREONTE: Conhecias o edito que proibia fazer isso? 

ANTÍGONA: Eu o conhecia. Todos o conhecem. 

CREONTE: E tu ousaste violar a lei? 

ANTÍGONA: É que Zeus não faz estas leis, nem as fez a Justiça que tem seu trono no meio dos deuses imortais. Eu não acreditava que teus editos valessem mais que as leis não escritas e imutáveis dos deuses, pois que tu és um simples mortal. Imutáveis são, não de hoje nem de ontem; e eternamente poderosas; e ninguém sabe quando nasceram. Não quero, por medo às ordens de um só homem, merecer o castigo divino. Eu já sabia que algum dia devo morrer – como ignorá-lo? – mesmo contra tua vontade: e se eu morrer prematuramente! Oh! Será para mim uma grande fortuna. Para os que, como eu, vivem sempre inumeráveis misérias, a morte é um bem...

Detalhes interessantes. Antígona invoca uma lei ancestral, antiga e cujo nascimento se desconhece, imutável e em relação a qual se deve obediência, sob pena de se incorrer em expiação. 

O direito natural clássico englobaria, assim, um acervo de leis imutáveis, escritas ora segundo a vontade divina (direito natural de cunho teológico), ora derivados da razão (direito natural de cunho racional) e presentes em todas as épocas em todos os povos. 

Segundo DIMOULIS (p.87) o direito natural relaciona-se ao conjunto de normas de dever ser que são estáveis, necessárias, adequadas e regulamentam o comportamento de todos os seres da natureza”. Citei um autor coetâneo nosso porque, a despeito de não ser um jusnaturalista como os gregos antigos, ele arrisca um conceito de Direito. 

Mas, confesso, acho mais interessante apresentar a fonte, para que tenhamos a exara dimensão de como esse paradigma foi e é tão forte na história do Direito, ao ponto de até hoje ser invocado como sustentáculo de um conceito universal. 

Para Cícero, o direito natural constitui lei verdadeira, norma racional, conforme à natureza, inscrita em todos os corações, constante e eterna, a mesma em Roma e em Atenas; tem Deus por autor; não pode, por isso, ser revogada nem pelo Senado nem pelo povo; e o homem não a pode violar sem negar a si mesmo e à sua natureza, e receber o maior castigo”. Verdadeira porque exclui toda outra que contra ela colida. 

Racional e conforme a natureza porque construída em cima da noção divina, internalizada pela especulação filosófica. Deus é o epicentro dela. Antes da cristianização, OS DEUSES eram os responsáveis, já que a ordem cósmica (Physys), ou seja, Natureza - força normativa divina (em seu sentido mais amplo, como ordem universal das coisas e pessoas) - era obra de criação além-matéria, a irradiar modelos de comportamento no mundo real (Nomos, normas de conduta). 



Para Ulpiano representa “viver honestamente (honeste vivere), não ofender ninguém (neminem laedere), dar a cada um o que lhe pertence (suum cuique tribuere)". Essa concepção engloba um dos pilares da aproximação entre Direito e Justiça (dar a cada um o que é seu). Roberto Lyra Filho, no opúsculo O que é Direito? faz essa pergunta: dar o que a quem? O que significa viver honestamente?

Com isso - essa visão de um mundo onde se separam as pessoas segundo uma ordem ou hierarquia cósmica - não seria exagero afirmar que o Jusnaturalismo sustentou, ao menos nesse primeiro momento (clássico) o status quo nas sociedades grega e romana: o escravo como escravo, segundo ordem cósmica, o senhor como senhor, a mulher como coisa. Tudo devidamente justificado como inerente à condição humana de ser criado pelos deuses com indeléveis diferenças

Assim, longe de um modelo perfeito de alcance de justiça, pode ter servido para se legitimar a perpetuação de grupos no poder que, sustentando-se na ideia das diferenças ditadas pela Natureza (Physys), exerciam controle e potestade em relação a outros grupos. 

Depois da cristianização e, sobretudo, na Idade Média, o trabalho dos escolásticos e da Patrística (que reuniam o clero como precursores dos trabalhos de compilação das leis romanas antigas), a ideia politeísta de criação do ser humano e a sua sujeição ao fatal destino de leis eternas e imutáveis se converte para a concepção jusnatural de visão monoteísta, que elege Deus como centro de ordenação de toda a sociedade (à sua imagem e semelhança, o que nos faz pensar que, embrionariamente, essa ideia de Direito Natural nos move à crença de sermos, no estado de natureza, bons como Deus, mas caídos em face do pecado). 

Os séculos XVII/XVIII marcam a trajetória para uma compreensão do direito natural, saindo-se de um enunciado cósmico (e divino), para um modelo abstrato e baseado na própria natureza humana. São precursores: Grotius, Puffendorf, Locke, Rousseau, Montesquieu, Kant. Para Montesquieu, inclusive, o direito natural baseia-se na relações necessárias que derivam da natureza das coisas [rol de valores básicos]. 

Quais seriam essas relações necessárias? Para quem? E natureza das coisas? Percebem como entramos em buracos cada vez mais profundos com esses conceitos que não trazem um conteúdo preciso e empiricamente relacionado a uma elaboração histórica mutável?

Bom, quem quiser olhar uma pérola jusnaturalista, basta ver a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão na França revolucionária, bem como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).

Algumas críticas são pontuadas ao direito natural. 

Aliás, muitas.

Miguel Reale o acusa de ser imbuído de princípios vazios de conteúdo (justiça, igualdade, dignidade, vida, honorabilidade), bem como denuncia a ausência de sentido de concretude -ou seja, conceitos dogmaticamente construídos em cima da universalidade, mas que são abstratos demais para permitirem que seus respectivos conteúdos advenham da experiência histórica nas sociedades.

Além disso, a questão da externalidade do elemento valorativo (ou seja, a discussão sobre axiologia) aponta para a necessidade de uma teorização sempre mutável, ao contrário do caráter imutável de que se cerca o direito natural.

Já para Roberto Lyra Filho, o direito natural constitui uma ideologia (conjunto de crenças não criticadas, refletidas, reproduzidas sem questionamentos) que, juntamente com o Positivismo (redução do Direito ao que está positivado ou normatizado sistematicamente, limitando-se ao que está ordenado), constitui desdobramento entre o que está nas normas e o que deveria estar (direito natural). 

Aliás, segundo Lyra Filho existem três correntes positivistas: a legalista (que aponta a lei como único elemento válido); o positivismo historicista ou sociologista (com formações jurídicas pré-legislativas, como um produto espontâneo do 'espírito do povo', que dariam origem às leis, estabelecendo o controle social), o positivismo psicologista (busca do 'direito livre' dentro das 'belas almas', revelaria a essência fenomenológica do Direito, ou seja, a partir da essência percebida pelo magistrado). Tanto em uma como em outra, o elemento dogmático e pretensamente universal se repete. 

César Augusto Ramos no texto Hegel e a crítica ao Estado de natureza do jusnaturalismo moderno, traz importantes contribuições para a crítica ao paradigma jusnaturalista, partindo do calcanhar de Aquiles: o ficcional estado de natureza, condição natural, empírica e imediata a partir da qual se indaga a "essência" do humano. 

Fortemente balizado em Hegel e seu pensamento sobre a realidade ética que formula o conceito de Estado, Ramos sintetiza o estado de natureza como um momento histórico marcado pela brutalidade, violência, bem como pela realização de atos e sentimentos não humanos. Dialogando com Hobbes, Hegel, revisitado pelo autor, expõe a fragilidade de uma concepção de bondade indelével e universal, para se firmar na concepção de que o ser humano, no estado de natureza, sequer é livre, uma vez que liberdade supõe escolha racional e não pautada no instinto (que, no caso, é de caos). 

O estado de natureza, com isso, é incapaz de fundamentar uma teoria jusnaturalista, já que a perspectiva é de dominação e controle de uns sobre os outros, o que é incompatível com o conceito de coerção presente em Hegel como formulação de liberdade (reciprocidade e mútuo reconhecimento). À natureza falta determinação auto referencial (liberdade), pois tudo é regido por leis de causalidade, contingência, regularidade e necessidade instintiva. Ou seja, o oposto do que se formula na teoria clássica. 



quinta-feira, 13 de junho de 2013

A todos e todas que confiaram em mim e depositaram o voto amigo que contribuiu para que pudéssemos construir um projeto de gestão, gostaria de compartilhar - não sem pesar - que, na data de hoje, RENUNCIEI, nos termos do art. 6o. "d" do Regimento Interno da OAB/DF, à Presidência da Comissão da Mulher Advogada, bem como ao mandato de Conselheira, por questões de foro íntimo. Faço isso após muita reflexão e na certeza de poder contribuir muito mais com o engrandecimento da categoria alojando-me alhures dos quadros do Conselho. Muito agradecida estou a todos e todas que me apoiaram nessa decisão, bem como aos colegas e às colegas com quem tive a honra de trabalhar. Peço, contudo que, a despeito das ponderações a respeito de minha atitude, por favor, se possível, respeitem meu momento solitário de contemplação do ocorrido. Grata demais!

Aulão de Introdução ao Estudo do Direito dia 15 de junho de 2013

Torno pública e de conhecimento de todos e todas a reposição de aula de INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO no Centro Universitário do Distrito Federal, a partir das 08h30 da manhã do dia 15 de junho de 2013, sábado, em um aulão que perpassará os dois horários (08h30 às 12h00).

Tendo em vista que recebi um contingente considerável de manifestações de outro/as aluno/as para assistirem à aula, estou diligenciando o alojamento em uma sala maior, para que fiquemos confortáveis. Ouvintes serão bem-vind@s.

Na sexta-feira confirmarei o número da sala, mas, desde já, informo que não haverá a realização de chamada. Em contraponto, asseguro se tratar de um momento uno, que não voltará no tempo e no espaço dada a efemeridade da vida e de nossa própria existência.

A regra que fabrica o rebelde desmancha-se em pleno ar: notas de Introdução ao desespero do direito

Depois de hibernar - com a sensação de estar congelada há decênios - eis que me volto para o local onde me sinto confortável, qual seja, meu blog, apanágio de um mundo no qual me atrevo a me irresignar em face do que entendo ser o atrevimento da ilusão, mas que, de fato, finca-se na parcimônia do conformismo: o senso comum no Direito, caracterizado pelas fórmulas prontas reproduzidas em larga escala por quem não se atreve a pensar.

Não veio no atropelo essa volta, mas, antes, foi a resultante de uma série de e-mails recebidos com alegria. Sim, fui cobrada, instada, pressionada - e que bela pressão - a retornar e postar. Eis-me aqui, plena e cheia de incertezas! Sou infinitamente grata a quem amorosamente "puxou minha orelha" nos e-mails, lembrando-me, ao final, que isso é o que tenho a oferecer.

Com isso retomo os projetos que ousei deixar de lado: doutorado, livros, coletâneas. Aos poucos vou compondo a saga.

Como todo início marca o fim, peço licença poética a Karl Marx, para quem "tudo que é sólido se desmancha no ar", avançando nessa quinta-feira na indicação de um opúsculo que trouxe ao meio jurídico - ainda na década de 70, quando escrito - muita celeuma. 

Chama-se Direito, um mito, de João Uchôa Cavalcanti Netto, já esgotado - pois no Brasil usualmente as pérolas estão fadadas à extinção enquanto as britas áridas povoam o ideário de consumo fast food de um juridiquês acéfalo - mas disponível em sebos e livrarias virtuais.

O autor era juiz aposentado - lugar de fala que, juntamente com uma advocacia a posteriori - deu-lhe incentivo para, depois, fundar a Estácio de Sá, tendo em vista sua vocação para o ensino, bem como para a crítica feroz ao Direito (culminando, assim, no livro em questão).


Debruçando-me nele para preparar minhas derradeiras aulas de Introdução ao Estudo do Direito encontrei pontos de implosão, o bastante para que possa compartilhar com todos e todas a saída de um senso comum que se estabelece, dia após dia, como um mantra débil no direito (ousei escrevê-lo com letra minúscula, dada minha percepção contrária à sua cientificidade: acho mais honesto).


Separei alguns trechos para iniciar esse dia com sabor de renovação... Espero que gostem...


(...) Com a tática de ceder para dominar, de se curvar para impor, os homens ambicionavam o mando e o mundo: reverenciavam a terra para que ela, em resposta, suprisse-os, e nascera a agricultura: de uma forma geral homenageavam quaisquer adivinhados desejos da natureza, imaginando o atendimento em retorno das próprias reivindicações, e aí criaram a feitiçaria da ciência; enfim, atribuindo suas vontades pessoais a Deus, convenceram-se de estar obedecendo a Ele e então menos dolorosamente conseguiram o impossível, controlar-se, tarefa ardilosa na verdade endereçada apenas a controlar os outros, e isto era o Direito, com origem divina. Porém mero censor de condutas e raso demais para disciplinar sentimentos (e mormente porque, a serviço da manha e da astúcia, carregado de suspeitas), o Direito reuniu sem unir e aglomerou sem todavia confraternizar: traço de união entre os homens, ligava porém num traço que também separa, encarnado a linguagem dos inimigos enfim educados mas sempre inimigos. Trocara-se a violência dos contatos pela patifaria dos contratos, o conflito explosivo pelo implosivo, o sangue pelas lágrimas, e apenas se eliminara o isolamento primitivo não ainda alcançando afinidade, porém, uma acomodação à dissidência com a qual o mais primário não soubera lidar e ficara então impossibilitado de agrupar-se. Cada qual, agora, desinteressado em suprimir o outro (sem, entretanto querer com ele se irmanar), tencionava conquistá-lo para usufruí-lo, só que todos insistiam em obter o mesmo, sobrevindo como único remédio a troca da guerra muscular, rápida e dissolvente, pela guerrilha permanente, cerebral, gregária, encoberta, o Direito, essa conquista de estabilidade no conflito, no jogo, a substituição do gladiador pelo enxadrista. Pretendendo se achegar para poder dispor do outro mas notando que o conflito separava, o homem, antropofágico, digerira o conflito, adaptando-se a ele: aceitara-o, transferindo a violência do domínio do instinto, que é cego, para o comando da razão, que trapaceia. E foi na movimentação inicial desse jogo que os homens por esperteza concluíram as primeiras alianças - formando grupos contra grupos - e acabaram, por causa dessa coletivização da guerra, descobrindo um amor incipiente mas até hoje em voga, o amor somente ao amigo, ao comparsa, ao necessário, amor parcializado, amor jurídico. Nesse mundo então recente do Direito, porém, o semelhante se tornara mais perigoso, eis que vizinho sem contudo perder a invariável inimizade. As próprias gentilezas alertavam, pois cada homem, vendo no outro um espelho de si, sabia perfeitamente que a generosidade sempre revestia algum incógnito propósito de ulterior espoliação: até o aliado, portanto, o era incondicionalmente. Não foi com presentes que os europeus afinal tomaram a América dos índios?(...) - p. 74-76.
Esse trecho acima é um dos meus preferidos, pois marca uma desmitificação da ideia de ser o Direito um mecanismo lúdico de composição de paz e ordem, na medida em que se posiciona, ao contrário, como a resultante de um processo histórico de transposição da égide do sangue e da espada para o recalcamento da ira em face de um "evolucionismo" ingênuo que apenas desalojou a fúria para camadas outras de nosso mental. 

O Direito é, por pressuposto, o instrumento de ruptura da ordem, baluarte do caos e da entropia, sob a alcunha cívica de harmonia quando, a bem da verdade, se atingir alguma, marca-nos com a morte (pois apenas o que está fenecido encontra-se em estado entrópico ZERO, ou seja, em harmonia e ordem, em estaticidade e equilíbrio). 

A ruptura cívica que o Império Romano pretensamente firmou em nossas vidas deu-se à guisa de convencimento ilustrado e letrado de uma racionalidade que apenas situou o ódio para o plano do jogo lúdico - e lúcido - do xadrez, ocupando o que, outrora, eram os ordálios como mecanismo de produção de uma verdade divina. Foi o pontapé para o Cisma feudal e contemporâneo de nominar o mundo medievo de primitivo e "chagático" para o que se descobriu ser a liturgia das Luzes.

Como a História é feita, ao final, pela narrativa de quem a escreve segundo seu local de fala de conquistador - ora, ora, lembremos, pois, que os romanos deixaram marcas nesse sentido, caso contrário não teríamos no português a miscelânea da linguagem do conquistado(r) - o direito (sem D) sofisticou-se na ontogênese (ou seja, na criação de valores) da memória, estabelecendo verdades sob a pecha de serem "reproduções" de um tempo "que ficou para trás". 

Precisamos de um Foucault em A Verdade e as Formas jurídicas para nos esclarecer que as condições políticas e econômicas são um véu necessário para a compreensão de como a verdade é produzida no direito (sem D), na qual, a partir de Nietzsche, questiona a produção de verdade a partir do esquadrinhamento do sujeito a priori, ou seja, de quem elabora o discurso de verdade (p. 13).

João Uchôa, contudo, em lirismo visceral, ousa penetrar sinteticamente na produção de verdade, afirmando em seu opúsculo que:

(...) Encharcada fatalmente pelo presente do narrador, a História deforma o passado. Ela inventa (não descreve), cria (não reconstrói), justifica sonhadora o hoje (não explica objetiva o ontem). Eis portanto uma estória (...) - p. 80.
eis o mito, de História para estória, um conto ou mítica que, ao final, resgata com ar blasè - talvez - a poesia que não mais desponta no que se elabora como verdade no mundo jurídico...

Uma idílica ilusão se pensar, a partir daí, que um processo "recupera" a verdade, que o ritual judiciário "reconstrói" a medida do que ficou para trás em um passado - tanto próximo como remoto. 

A tradição inquisitorial fortemente presente na maneira como o poder de dicção se reinventa e autofagicamente sustenta impede a ruptura da lógica de recriação para se firmar na verdadeira criação de discursos de verdade, dentro dos quais exsurge uma teorização sobre a norma como ponto de apoio para todo o edifício jurídico que luta ardorosamente contra a gravidade (tudo que é sólido desmancha-se ao som gutural da desagregação).

O binário jurídico, assim, no sein e sollen advindos do pensamento positivista mais famoso - Hans Kelsen - coloca-nos na reinvenção do controle, sob os auspícios de um convencimento de que a norma liberta: ela aprisiona!

(...) O delírio dos contrários, mero estratagema, contudo escravizou e acabou nos levando a acreditar na infração e na lei como absolutos quando não passam de perspectivas, miragens, presas à vista e não à coisa, características reversíveis e por isso onipresentes sempre ao invés de excludentes: tudo é bom e mau, lei e infração ao mesmo tempo conforme. Daí, o Direito não ser o bem, coisa indefinida: o Direito é a Divisão, a Rachadura que devaneou o conflito entre o bem e o mal. O Direito não é o vício nem a virtude, flexíveis fantasmas, ele equivale à Moral que os faz de conta. O Direito não é o belo nem seu retrato, o feio, mas se equipara ao Olho que os enxerga. O Direito não é a mentira nem a verdade mas corresponde à Ciência que indevida as distingue. Ele não é o ilícito ou o lícito, volúveis, inconsistentes, permutáveis, mas o austero vigia que os propõe autênticos (...)- p. 40.
A regra fabrica o rebelde, bem como o Direito, nesse contexto, elabora o delinquente, num grande sistema de expectativas e frustrações engendradas para o convencimento de que compartilhamos valores que, ao final, custam-nos caro demais...
(...)A regra fabrica o rebelde, a norma desenha a falta, e o preceito, agredindo, puxa agressão de volta: logo, o mandamento provocou a desobediência e sintetizou a próprio e original pecado. Jamais haveria ilicitude sem a antecedência de uma lei(...) - p. 22-23.

Tenham um bom dia, com ares de saída da zona de conforto que, a despeito de se mostrar como algo sólido, esfacela-se em pleno ar!