quinta-feira, 22 de maio de 2014

De terços, escapulários, ebós e orixás: laicidade e "expertise" teológica no Judiciário brasileiro

No dia 28 de abril de 2014 o juiz titular da 17a. Vara Federal exarou uma decisão que trouxe bastante polêmica nos nichos acadêmicos, por envolver os sentimentos religiosos mais arraigados nos diversos grupos sociais, ao mesmo tempo em que trouxe à superfície algumas divergências com as quais os distintos grupos religiosos tensionam relações em torno de reconhecimento no Estado brasileiro.

Recém-saída de uma cristianização - que remonta à alocação de Deus para o corpo das cartas constitucionais precedentes - a Constituição Federal de 1988 deslocou para o preâmbulo a referência à deidade e formalizou o que seria uma laicização do Estado, pretendendo, ao menos em nível jus-político, consolidar a liberdade de escolha religiosa em nossa sociedade.

Esse esforço conjugado dos constituintes da época pretendeu - em nível formal e normativo - adequar a nova carta constitucional às exigência de um Estado democrático e pluralista, seguindo os fluxos do que outros países diuturnamente consolidam em termos de reconhecimento e respeito à divergência e diversidade. 

O que chama a atenção, por agora, consiste na reflexão sobre a apropriação material de tal prenúncio de laicização, ou seja, em que ou quais medidas e dimensões a sociedade brasileira reverbera tal reconhecimento da diversidade religiosa. E mais: em quais dimensões o Poder Judiciário igualmente incorpora - no plano de decidibilidade - o conceito de laicização. A julgar pelo cabedal de impropriedades que leio diuturnamente - não apenas nessa, mas em outras decisões [umas até invocando a maçã, o Paraíso e o pecado da mulher], muito pouco.

Em outro trabalho - tese de doutorado - tive a oportunidade de desenvolver um esforço em compreender as representações idiossincráticas com as quais os juízes projetam no bojo de suas decisões critérios não adequados e sem motivação razoável (chamo por motivação razoável algo que orbite em torno de argumentos que não sejam de autoridade - usualmente acionados sob a fórmula do "sentir"), findando, com isso, por trincar o preceito de isonomia e, com isso, decidindo de maneiras distintas situações jurídicas iguais sob a perspectiva jurídico-normativa (por exemplo, um mesmo fato). 

Naquele trabalho ficou bem claro - em relação ao universo empírico com o qual trabalhei - a incorporação de representações de mundo baseadas no senso comum trazido sob a égide de "experiência" convertida em fundamento para se deferirem ou negarem direitos de acordo com uma motivação baseada apenas nas idiossincrasias, de cunho arbitrário e despojado de maiores critérios que contemplem cidadania, isonomia e reconhecimento de direitos.

Pois bem, deparando-me com a decisão - que me foi passada por uma orientanda que estava a defender sua monografia - confesso que muito pouco me ative na questão relacionada ao indeferimento da antecipação de tutela (por compartilhar a ideia de ser liberdade de expressão), para mergulhar profundamente em palavras vivificadas em minha mente: as palavras escolhidas pelo juiz para se referir aos cultos afro-brasileiros

Devota de uma concepção liberal e comunitarista, tenho na manifestação da Igreja Universal (ainda que não morra de amores por ela ou seus preceitos que, aliás, considero alienantes e tão pantomímicos quanto todas as religiões que eles atacam) um exercício de liberdade de expressão e religiosa, compatível com os ditames da democracia e, quando muito, indenizável (quando muito) ante o excesso. Mais abaixo, contudo, em relação a esse aspecto, farei um aporte. 

O ponto central da decisão - indeferimento do pedido de antecipação de tutela para a retirada de vídeos referentes a opiniões da Igreja Universal do Reino de Deus sobre a crença afro-brasileira - explicitou a compreensão judicial que "ambas as manifestações de religiosidade não contém os traços necessários de uma religião a saber, um texto base (corão, bíblia etc.) ausência de estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado". Prosseguiu o juiz afirmando que "as manifestações religiosas afro-brasileiras não se constituem em religiões, muito menos os vídeos contidos no Google refletem um sistema de crença - são de mau gosto, mas são manifestações de livre expressão de opinião." 

Não adentrando muito em aspectos que são decorrência da reflexão que pretendo fazer aqui - reconhecimento de expressões de religiosidade - o que demanda uma atenção apriorística consiste na compreensão do universo simbólico idiossincrático o qual o juiz aciona em uma elaboração de sentença, deixando bem clara a ideia de imiscuição de um rico universo etnocêntrico e eurocêntrico, na medida em que afirma categoricamente - com riqueza explicativa - que inexistem elementos centrais para se caracterizar uma manifestação como religião. 

Ao mencionar a ausência de um "texto base" (leia-se dogma), equivoca-se o juiz em sua compreensão de mundo, sob vários aspectos. Até mesmo por esquecer a existência de regramentos religiosos de base consuetudinária, de tradição oral e transmitida por gerações e gerações, fonte jurígena e/oi religiosa tão legítima quanto toda e qualquer dogmática positivada em codificações. Ou, enfim, até mais legítima (olhem só eu sendo aqui etnocêntrica ao reverso), pois desconfio profundamente de nossos processos de legitimação de poder e de consubstanciação de ordenamentos jurídicos, frutos de repressões diuturnas e que retesaram nossa verve de projeção cívica nas deliberações acerca das tutelas de liberdades. 

Além disso, nunca é demais lembrar de um livreto básico, lido por todo e qualquer estudante de Direito, chamado A cidade antiga, de Fustel de Coulanges. Mesmo não sendo uma pérola (particularmente acho que é mais uma tentativa fracassada de reconstruir, no Direito, aspectos históricos de maneira anacrônica e etnocêntrica), o livro já apontava, até mesmo no que é tido como "berço" de nossa tradição jurídica (no caso, Roma, que constitui um mito em termos de hereditariedade jurídica, já que o Brasil, em especial, aproxima-se das eclésias lusitanas, de natureza inquisitorial, opressiva e ortodoxamente impregnada de religiosidade) a transmissão oral dos preceitos de adoração à ancestralidade. Só depois o registro formal e escrito veio consolidar uma predileção pela codificação. 

Uma palavra: ETNOCENTRISMO...

Outra palavra: EUROCENTRISMO...

Outras palavras: AUSÊNCIA DE RECONHECIMENTO E NEGAÇÃO DA PLURALIDADE...

Só da leitura dessa passagem na decisão já seria - e foi - o bastante para eu me sentir extremamente constrangida pela falta de conhecimento sobre o tema, pois, afinal, se a percepção sobre as religiões elaboradas no consueto oral fosse de plena ciência do juiz - creio - esse absurdo não teria sido escrito. 

Faltou muita leitura de Durkheim, Mass, Strauss, bem como falta a alguns operadores do Direito interlocução com aspectos histórico e antropológicos relevantes para se entender o que vem a ser uma religião. Aliás, se voltarmos à ideia pré-socrática, religare ora se conecta a paganus, em vertentes que admitiam hierarquia, ou, ainda, inexistência dela (os celtas, por exemplo, tinham nos deuses e nas deusas pessoas imortais, mas sem a dignificação crística que posteriormente a conversão trouxe no monopólio teocêntrico). 

Senti-me, enfim, constrangida pela falta de critério, noção e conhecimento - ainda que superficial - da questão, o que, por si só, já traria inúmeros debates sobre a desfundada decisão. Na terça-feira, contudo, o juiz reviu sua decisão, mantendo o indeferimento da liminar e desfazendo - num passe de mágica, como se no plano valorativo e idiossincrático fosse possível deletar sua experienciação e seus modelos mais arraigados - o que havia dito e escrito no dia anterior. 

Pressão social? Peso crístico de culpabilidade recalcada e replicada pela vivificação dos arquétipos monoteístas? Não importa, pois o escrito - parece até mesmo ironia da codificação - não fenece no ar...Palavras ao vento podem se perder, mas documento público sempre resiste ao carbono 14!

Não sei, ao certo. Mas uma decisão dessa natureza traz à reflexão um problema: se tivesse sido postado, por absurdo, na rede, uma manifestação de algum culto não cristão atacando o catolicismo ou o presbiterianismo, como seria a medida de tratamento quanto à liberdade religiosa? 

Não sei, mas só de pensar no assunto eu me arrepio, por temer um devenir do mais puro crepúsculo dos deuses: uma jihad ainda não experienciada pelo Brasil, mas que se avizinha no horizonte de um país que ainda amarga a contramão do respeito à diversidade. Não entendo como ainda se pode afirmar que esse país é a "pátria do Evangelho". Qual? Apócrifo? De Judas? Dúvidas. Apenas dúvidas.