quarta-feira, 19 de março de 2014

Da honorabilidade para a dignidade: digressões sobre a relevância da construção de um direito penal pós-moderno

Fonte da imagem: http://www.brasilescola.com/
Segunda-feira a conversa em sala de aula rendeu muitas reflexões, pois muitas ideias foram compartilhadas, bem como mitos descortinados. O foco do debate foi a dignidade e suas dimensões - reconhecimento, respeito, responsabilidade, reciprocidade e redistribuição - bem como o atrelamento da dignidade a uma concepção de respeito à cidadania pressuposta, e não como medida de "retidão" ou do "caráter" que designariam direitos - dentre os quais a liberdade - a que um indivíduo "faria" jus ou não.

A ideia de honorabilidade (palavra que entendo ser mais adequada para expressar a atribuição de juízo de valor incidente como apreciação dessa mencionada "retidão" suscitada por alguém para referir-se ao outro)  remonta à Idade Média e à noção de estamentos (nobreza, clero, plebe) que se distinguam pelo acervo patrimonial, mas, antes disso, pela estirpe aderida ao grupo. 

O pertencimento ao estamento nobiliário - escoimado, sobretudo, na teoria da origem divina na monarquia (basta ver a herança dos primogênitos na transmissão do fogo mencionada por Fustel de Coulanges em A cidade antiga) - garantia uma série de benesses e deferências sociais, desde a credibilidade da palavra empenhada, além de crédito na praça (a despeito, muitas vezes, de se tratar de nobres falidos ou perdulários) e lugar de honra nas missas. 

Em um processo criminal, a palavra do nobre valia mais do que a palavra de um egresso da plebe. Com isso, ainda que estivesse falseando a verdade, um membro da realeza muito raramente era desacreditado em seus testemunho, ocasionando muitas execuções injustas, perpetradas por força da palavra em juízo. 

Essa concepção, no Brasil, materializada nos fidalgos (filhos de algo ou de alguém), consolidou uma percepção de eugenia e apartação do infrator em face de uma ética de subalternidade, desconsiderando-se o substrato como ser cívico, para que a ele não se defiram ou reconheçam direitos. Muito menos dignidade. 

Mas a transposição da posição como súditos (subject = sujeito, submetido ao rei) para o status de cidadãos marcou, na mudança que as revoluções constitucionais produziram, igual mudança do conceito de HONRA/MORAL/BOA FAMA para a noção de DIGNIDADE, valor universalizado que se colocou no lugar da ética da particularização de benesses. Simples assim. Agora se nossa sociedade não enxerga essa constante histórica, talvez esteja na hora de sairmos dos feudos onde depositamos nossas concepções medievais.

Olhar para o infrator - que é um cidadão, antes de ser transgressor - não é escolha, muito menos opção exercitável, mas o mais estrito cumprimento de um ditame constitucional que nos prescreve uma via de tratamento da alteridade: sem julgamentos, depreciações e, acima de tudo, desqualificações. 

Isso é tão sério, mas tão sério que em países como EUA se alguém apregoa que determinada pessoa é "criminosa" antes de um trânsito em julgado de sentença penal isso lhe confere a obrigatoriedade de indenizar em eventual e milionário processo indenizatório. Isso porque, naquela tradição - fortemente estimulada por valores liberais - a dignidade é vetor de tutela de individualidades e limite de atuação do Estado na intervenção pontual que faz no exercício estrito da violência legítima da punição. 

Mas por essas bandas brasilis a dignidade do infrator - acusado, sentenciado, apenado, enfim - é sempre deixada de lado em nome de uma falsa sensação de defesa social. resta saber até quando isso perdurará sem maiores contingências.