quinta-feira, 16 de abril de 2015

A Escola da Exegese e a reação monárquica do Historicismo

Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/e/e7/Code_Civil_1804.png/225px-Code_Civil_1804.png
O século XIX foi fecundo para a produção "científica" no campo do Direito, uma vez que várias concepções sobre sua ontologia (ou seja, essência, natureza) rivalizaram-se em conceitos e definições. Quem saiu ganhando foi a literatura jurídica, uma vez que cada um desse paradigmas nos traz uma contribuição singular para que possamos elaborar uma percepção sobre o que é o Direito.

A Escola da Exegese despontou na França napoleônica, como uma forma de racionalizar, ao extremo, o apego do juiz ao estrito texto da lei. A atividade judicial limitava-se ao estudo da codificação, do qual se extraía um pressuposto de construção de toda a escola: os dogmas do legislador, sua vontade (mens legislatoris), não poderiam ser contestados ou questionados.

Tratava-se de uma nítida mentalidade legalista bem coerente com o ambiente imperativista de uma França marcada, de um lado, pelos traumas de um Antigo Regime que alicerçava no Monarca-Deus o monopólio de dizer o Direito e, de outro, pelo afã pós-revolucionário em se codificar as leis para não se incorrer na continuidade do clima de Terror Branco que ceifou milhares de vidas. 

Ao lado do princípio da legalidade alicerçado como conquista positivista militava o princípio da autoridade, conferindo ao Poder Legislativo (herdeiro da causa popular e revolucionária) o monopólio de produção do Direito (lei), já que, por pressuposto de toda a construção republicana, essa Casa aglutinava o lugar de produção do Direito legitimado pelo povo que ascendeu ao poder. 

Com a finalidade estrita de buscar o sentido que a lei tinha para o legislador, o juiz não poderia se valer de costumes ou jurisprudência, uma vez que essa imersão era considerada invasão de competência em relação ao Poder Legislativo (herdeiro popular no processo republicano). O investimento maior direcionava-se ao uso de rígidas regras de interpretação, balizadas em um procedimento meramente técnico-prático, de natureza descritiva.

Com isso, afastava-se de uma maior reflexividade, abolindo-se, inclusive, nas faculdades, o estudo da Filosofia e ramos do conhecimento que pudessem trazer uma crítica coerente à Escola que, por sua vez, não resiste a uma boa analítica materialista-histórica: manteve o Direito, mais precisamente a dicção dele, como instrumento de uma grupo hegemônico elitizado (exegetas), responsável por "declarar" a "vontade do Direito". 

Utilizando-se de alguns recursos de hermenêutica (como o raciocínio a contrario, a maior, pari simile etc.), o juiz não ousava caminhar além do silogismo FATO-NORMA-SENTENÇA, zona de segurança a supostamente garantir neutralidade à decisão, afastando a arbitrariedade. 

Importante sobrelevar alguns pontos de contribuição dessa Escola, a partir da ideia republicana de representatividade na elaboração das leis, bem como da observância, por parte do juiz, dessa vontade popular plasmada no documento legislativo. Vitória republicana, sem dúvida. 

Porém, esse mesmo aspecto é retratado por alguns partidários do Historicismo (Savigny é um deles) como mítico, sendo oponível como forte crítica à Escola da Exegese. De mais a mais, a simplificação quase mecanicista do procedimento de interpretação do Direito (o silogismo FATO-NORMA-SENTENÇA), atrelado à falta de uma convergência crítica, fizeram com que a Escola perdesse, ao longo do tempo, prestígio, vindo a ser substituída pelo Positivismo ainda em voga. 

Alguns partidários: Aubry Rau e Demolombe.

De outra sorte, o mesmo século XIX trouxe importante rival à Exegese francesa, a partir da publicação dos primeiros trabalhos alemães capitaneados por Friedrich Carl Von Savigny, precursor da Escola Histórica (Historicismo jurídico ou, ainda, Positivismo jurídico). Alemães e franceses sempre travaram os mais ardorosos embates, quer seja no campo da Filosofia, como, em nosso caso, no plano jurídico. Em relação a tais paradigmas jurídicos não poderia ser muito diferente...

Importante entender o contexto alemão à época: ainda feudal, reproduzindo costumes aristocráticos, poder diluído em principados, nada obstante a homogeneidade cultural, marca desse povo. Ambiente mais que propício para uma visão a conceber o Direito como a resultante das manifestações históricas do povo, das quais o costume desponta como fonte principal de produção jurídica. 

Para os historicistas, os costumes representam a vontade do povo, em oposição tanto à concepção juspositivista do Código de Napoleão (ora jusnaturalista, ora positivista), quanto aos preceitos da Escola da Exegese. Aliás, parte da historicidade o maior antagonismo ao paradigma francês, já que os historicistas criticaram - bastante - a representatividade do Legislador como vontade soberana a produzir Direito.

Alexandre Araújo Costa, no livro Hermenêutica, faz a referência crítica ao desacerto dos exegetas em atribuir tamanha importância aos líderes legislativos, desnudando o véu mítico em torno da ideia de vontade do legislador:
Engana-se quem pensa que o direito é fruto da vontade dos parlamentares, pois a perspectiva teórica que reduz a história a uma série de ações de determinadas pessoas ilustres e poderosas perde de vista que é meramente eventual o fato de terem sido esses os indivíduos que ocupavam os postos de comando da sociedade em que viviam.Embora a historiografia tradicional crie a ilusão de que são os líderes que guiamo povo, isso não passa de um mito, pois, embora as decisões de alguns indivíduos certamente contribuam para apressar ou retardar certos acontecimentos, a história humana teria seguido basicamente os mesmos passos ainda que todas as personalidades históricas que conhecemos tivessem morrido enquanto crianças e outros homens houvessem ocupado as funções de liderança nas diversas sociedades (p. 50).
Ou seja, Direito É História... A História do povo alemão, reproduzida de geração em geração, a partir de outro componente vital, segundo Costa, a possibilitar até mesmo a posterior unificação: a língua. Esse componente cultural - povo - foi responsável, na Escola Histórica, pela construção da ideia de volksgeist com a qual Savigny (ícone do movimento) atrela às tradições ao conceito de Direito. 

Importante, contudo, lembrar que, sob a perspectiva de uma Alemanha feudal, ainda não unificada e consolidada em costumes tradicionais monárquicos, a ideia de espírito do povo está longe de ser democrática ou participativa, pois não se trata de meramente olhar os costumes atuais para se elaborar o Direito, e sim se reproduzir um tradicionalismo retrospectivo e se aplicar, no momento da aplicação da melhor regra ao caso concreto, o preceito historicamente situado no passado. 
Fonte: http://media-1.web.britannica.com/eb-media/75/9475-004-2888ED8B.jpg

"Povo" não é, na escola Histórica, "sociedade", muito menos se relaciona a um contingente de indivíduos a elaborar - de maneira participativa e equânime - um Direito de acordo com valores e interesses atuais do grupo. Trata-se, segundo COSTA (p. 62), de um conceito "cultural ideal", o que não deixa de ser um dado construído, e não uma percepção elaborada empiricamente.

Isso traz o caráter extremamente conservador ao Historicismo jurídico: conservador, retrospectivo e antidemocrático, razão pela qual não poderia mesmo se coligar aos ideais liberais da França napoleônica representada pela codificação. 

Tanto polêmico o tema, que despertou um dos maiores debates da época, travado entre Anton Thibaut e Friedrich Carl Von Savigny a respeito da necessidade de elaboração de um compêndio para a Alemanha.

Iluminista, Anton Thibaut tinha enorme preocupação com a unificação alemã - uma vez que esta ainda não ocorrera - diante da fragmentação da nação, nada obstante a língua unificada. Para ele, a fragmentação trazia uma multiplicidade de regras que não poderiam render à Alemanha a unidade desejada. 


No manifesto chamado Sobre a Necessidade de um Direito Civil Geral para a Alemanha, Thibaut apresenta alguns argumentos: a) necessidade de suplantar o foco romanista ainda presente (um direito herdado e transmitido por consueto, ou seja, costume); b) necessidade de purificar o direito alemão de elementos políticos visivelmente presentes na Codificação Napoleônica; c) adequação do direito às necessidades dos súditos; d) superação da instabilidade gerada pelos vários focos de direito, sobretudo em termos de relações jurídicas tratadas diferentemente em pontos distintos da Alemanha (1914, p. 10-14)

Savigny responde a Thibaut tempos depois, na obra Da vocação de nossa época para a legislação e a ciência do direito, partindo da ideia já mencionada consciência do povo, única responsável por mudanças em sociedade (importante voltar nos valores reacionários), tornando inviável uma codificação, já que, para esta acontecer, haveria de existir, em dado momento histórico, confluência entre a ciência e a prática do Direito. 

Esse ponto de provocação, em especial, traz ao debate o relevo que a Escola Histórica representou em termos de compilação das obras herdadas do direito romano que perpassou a História: a Escola dos Pandectas (ou pandectismo), que desenvolveu todo o trabalho de compilação do direito romano, criando a chamada jurisprudência de conceitos, o manancial jurígeno do qual se poderia extrair o rol de tradições e costumes em voga na Alemanha. Esse foi um dos grandes dilemas de Savigny, na medida em que contrapôs - até para contraditar Thibaut - a criação de novas leis em face à compilação do que já era praticado na Alemanha.

Fontes das imagens:  http://www.jura.uni-heidelberg.de/md/jura/fakultaet/fittosize_200_0_7e8f142610005c1d300dd5d2cb45f971_anton_friedrich_thibaut.jpeg