quarta-feira, 20 de maio de 2015

O empiricismo sociológico no Direito e a ruptura com a abstração normativa

Fonte da imagem: El país

Fecundo século XIX no mundo jurídico: desde o apogeu do Positivismo, passando pelos últimos suspiros do Historicismo, a marca maior da época relacionava-se à miríade de concepções sobre o Direito, dentre as quais o Sociologismo Jurídico ou Escola Sociológica do Direito.

Alguns sociólogos negam - de carteirinha e não sem razão - a existência de uma escola "sociológica", aduzindo que se trata de assunto a ser estudado no campo da Sociologia. Outros operadores e professores de Direito perfilham o mesmo, argumentando se tratar de assunto extrajurídico. 

Mas o paradigma em questão não se alinha a um campo epistemológico estrito da Sociologia, uma vez que não se trata de um olhar sociológico - e externo - sobre o Direito, mas, antes, uma visão endogâmica (do Direito em relação às suas formas de resolução de demandas) e autorreferencial, na qual o Direito elabora soluções jurídicas a partir do diálogo direto com os influxos sociais. 

Para o paradigma em questão, as regras jurídicas devem, acima de tudo, servir a finalidades relacionadas ao bem comum (uma concepção bem aristotélica e finalística), o que representou uma ruptura com a ideia de unidade histórica pré-constituída do Historicismo, ou, ainda, com a abstração normativa do positivismo. 

A tarefa do juiz, nesse paradigma, consiste em avaliar os riscos, bem como o impacto social de suas decisões, contrariamente a uma ideia de que a lei - e, portanto, o Direito - destinam-se a regrar a vida humana sem maiores pretensões de se vincular à eficácia ou legitimidade dos julgados.

Ballot-Beaupre, citado por Alexandre Araújo Costa, afirmava que o texto da lei deveria se adaptar "às exigências da vida moderna", invertendo, assim, a compreensão sobre o Direito (norma/sociedade para sociedade/norma). Além dele, outros importantes autores desenvolveram suas peculiares formas de concepção do Direito.

Para Bentham, o Direito deve proporcionar a máxima felicidade social, aterrando-se na concretização de uma teleologia (finalidade da norma). Já para Ihering, o Direito, como toda criação, deve existir por conta da vida humana, e não o contrário ["a vida não é o conceito; os conceitos que existem por causa da vida"].

O famoso juiz Magnaud (o bom juiz francês), o Direito deve se imbuir da finalidade de favorecer os miseráveis, sendo rigoroso com os privilegiados, sendo, outrossim, duramente criticado por François Geny, para quem faltava um rigor técnico-científico, comprometedor da segurança. Magnaud foi duramente criticado, ainda, por imprimir uma apreciação subjetiva em relação ao que julgava, dentro das bases acima, o que, para Geny, comprometeria o ponto central de elaboração de uma metodologia do Direito: segurança.

Não se pode deixar de lembrar de dois outros grandes nomes, Ehrlich e Kantorowicz, impulsionando uma tradição germânica. O primeiro claramente entendia que a atividade judicial é pessoal, apregoando abertamente a necessidade de se afastar da literalidade da lei quando esta for injusta, principalmente se não refletirem valores sociais, que devem ser o vetor da atividade do juiz (ou seja, diferentemente de Magnaud, para Ehrlich os valoes do juiz devem ser afastados em nome de um foco social). 

No movimento do direito livre de Kantorowicz, o Direito deve representar uma elaboração pulsátil e vívida, construída tanto pelas decisões judiciais, quanto pela sociedade (membros) e pela epistemologia (ou seja, pelos estudiosos que elaboram a ciência do Direito). 

Já que estamos em uma seara mais empiricista e realista (anteriormente vimos a nítida contribuição de Aristóteles para essa percepção do Direito), não posso deixar de citar, ao menos, a contribuição filosófica de Nietzsche e Schopenhauer, uma vez que dissociam o substrato humano (que, ao final, é o vetor de tudo que estamos conversando) de um mundo etéreo e ideal (de cunho latônico), que, ao final, alimentou boa parte da literatura jurídica, desembocando, por exemplo, na construção de conceitos a priori de Kant.

Em duas outras postagens falo especificamente da contribuição de Nietzche para desconstruir um dos pilares que sustenta a teoria do crime e, especificamente, o finalismo (ou seja, a ideia central de que um ser humano age LIVREMENTE em busca de consecução de finalidades: dentre as quais, cometer condutas tidas como ilícitas). 

A contribuição dele consiste em tecer, sobretudo no livro Genealogia da Moral, uma tessitura em torno do conceito de Justiça, fazendo-o de forma rasgada e visceral, a partir da concepção de relativização do conceito de bem e mal, sobretudo sob a ótica da vitimização e do ressentimento. Mas esse tema desenvolverei mais tarde. O trabalho de Rodrigo Rosas Fernandes está excelente, nesse sentido: Nietzsche e o Direito

Schopenhauer, por sua vez, não desenvolveu diretamente considerações que envolvessem o Direito, mas sua célebre construção sobre o "direito de mentir" tornou-se ícone no âmbito jurídico e moral, sobretudo, em matéria criminal. 

No outro lado do Atlântico formou-se uma tradição que fincou raízes até hoje: o realismo jurídico. Neste sentido, fecunda a abordagem do tema à luz da literatura estadunidense, pautada em uma concepção de direito fortemente marcado pelo pragmatismo[1] e pela produtividade, resultado direto de uma longa evolução histórica de gerenciamento e administração judiciária, compatíveis, neste contexto, com atual tendência globalizante de celeridade na aplicação de justiça (SILVA, 1998, p. 84).

Observa-se, ao longo do passado histórico, a consolidação de um pensamento jurídico e sociológico nos Estados Unidos voltado para o funcionalismo da estrutura jurídico-normativa, acompanhando a complexidade das relações sociais verificadas na colônia inglesa e refletindo, já no séc. XVIII, o ideário protestante de busca da satisfação de interesses dos imigrantes que aportaram na costa das Treze Colônias (FRIEDMAN, 1972, p. 79).[1]

O primeiro ingrediente a particularizar o estudo proposto pode ser interpretado à luz da multiplicidade na adaptação dos institutos jurídicos metropolitanos às particularidades de cada colônia estadunidense, individualizadas segundo critérios econômicos, sociais e culturais, flexibilizando, deste modo, o vigente direito medieval inglês e adequando-o aos problemas locais, presentes na conjuntura de formação do recente país em desenvolvimento[2].

Este raciocínio oferece suporte à busca pela otimização do funcionamento da administração da justiça, destacando a predileção pela força vinculante da doctrine of precedents, legitimada por: equality (extensão do decisum aos casos que guardem similitude em sua ratio essendi); predictability (antevisão dos resultados por parte dos operadores do direito ante à existência de um precedente regulador); economy (economia processual, ante à existência de issues decididos), e, finalmente, ponto vital para a análise a respeito do controle social, respect (como caráter solene de respeito ao cumprimento das normas) (SOARES, 1999, p. 41).

Tal pensamento resultou na proliferação de diversas escolas de pensamento, quer seja na figura da analytical jurisprudence, reduzindo a regulação à força dos precedentes, como também na sociological jurisprudence (melhor observada na obra de Pound, que direciona direito e controle social sob o prisma integrado das instituições, teorias jurídicas e das decisões judiciais) e no legal realism, caracterizado pelo estudo de denominados pressupostos sociais e psicológicos da sentença (GUSMÃO, 1955, p. 134)[3].

Em História de la filosofia del derecho, Fasso (1977) vê na obra de John Dewey importante foco de sustentação do instrumentalismo jurídico-normativo em face de uma perspectiva orgânica de sociedade, atribuindo-se ao magistrado a construção do direito por intermédio do case method que, legitimado como modelo jurídico, tem o condão de reunir em seu conteúdo as aspirações e os auspícios de uma reputada sociedade participativa.

Outra vertente precursora da noção de controle social encontra na sociological jurisprudence[1] de Roscoe Pound a sistematização do direito como forma assecuratória do progresso e bem-estar da civilização, advinda com práticos e funcionais objetivos no sentido de imprimir uma melhoria na ordem jurídica então vigente.

Relativista e historicista, Pound era, antes de tudo, profundo cético em relação à existência de um direito eterno e imutável, acreditando, ao contrário, que a ordem jurídica era flexível e instável, em virtude das condições sociais subjacentes, tornando-se vital o estudo histórico de um povo, à guisa de condição necessária para se decifrar eventuais problemas aparentemente sem solução para o jurista[2].

Instado a discorrer sobre a essência da justiça e a finalidade da lei, Pound pontuou que:
O que a lei tem procurado fazer é ajustar as relações e regular a conduta, de sorte a proporcionar o maior efeito ao plano inteiro de expectativas dos homens, na sociedade civilizada, com um mínimo de atrito e desperdício. Muitas vezes o melhor que se  tem mostrado capaz de realizar é elaborar grosseira transigência entre expectativas em conflito, recomendadas por grupos fortes ou indivíduos insistentes, em boa fé e crença confiante na legitimidade intrínseca que possam ter. (1976, p. 31)
Para ele, o direito é uma engenharia social, construída no sentido de promover a regulação das relações interindividuais, por meio da ação de uma sociedade politicamente organizada, conciliadora dos desejos, das necessidades e expectativas humanas, maximizando-as para alcançar a totalidade de satisfação (POUND, 1976, p. 32-33).

A finalidade da sociological jurisprudence, segundo a visão de Gusmão, é avaliar quais as doutrinas e instituições que produzem uma gama maior de resultados positivos, visando, assim, “esclarecer o funcionamento do direito, abandonando as abstrações jurídicas, preocupando-se mais com a realidade social do direito, do que com as complicadas construções da lógica jurídica” (1955, p. 49).

O direito, nessa abordagem, é:
Uma instituição social destinada a satisfazer as necessidades sociais, atingindo os melhores resultados sociais, mediante o mínimo de sacrifício dos interesse em conflito, através de uma ordenação da conduta humana, em uma sociedade politicamente organizada” (GUSMÃO, 1955, p. 50)
revestindo-se um ideal jurídico na satisfação harmônica dos interesses sociais, ante à otimização entre a satisfação do maior número de pretensões, sopesando os gastos e atritos, mediante conciliação, na qual o interesse social se sobreleva ao individual, na figura do Estado como protetor dos interesses individuais[3].

Benjamin N. Cardozo, por seu turno, aponta para a criação do direito com base em uma multiplicidade de parâmetros conjugados: postulados racionais, hábitos de vida, instituições e costumes, atentando para o caráter de flexibilidade e mutabilidade destes fatores, a teor do pensamento esboçado por Rodrigues (1943) em A natureza do processo e a evolução do direito[4].

Em outro entendimento, Feibleman percebe o fenômeno jurídico a partir da compreensão de adesão à ordem, tomada com base em princípios absolutos de orientação para a regulação social, elaborados com a finalidade de conter disposições abrangentes o bastante para serem aplicadas aos casos concretos. 

Não é outro seu posicionamento, ao afirmar que:
Que há uma verdade universal que transcende as leis das nações e pode ser demonstrada a uma era secular, empiricamente inclinada, através da compreensão geral da necessidade ancilar da compreensão universal deste termo e de justiça. Precisamos de princípios absolutos, não para o fim errôneo de fazer aplicações absolutas, mas para saber o que estamos modificando quando nos deparamos com circunstâncias atenuantes. (1973, p. 77-78)
Bom, acredito que essas sejam as linhas centrais dessa, que, para mim, é uma das escolas ou dos paradigmas mais interessantes, por inverter um pouco a nossa compreensão sobre um Direito que se elabora normativamente para coagir, pura e simples, o comportamento humano. É fruto de diuturna elaboração social e, como não pode deixar de ser, motiva-se nos fins que permeiam o grupo, saindo-se da ideia de sollen para sein, do dever ser para o ser.





[1] Neste momento da abordagem, o leitor mais atento já poderá realizar suas reflexões acerca do revisionismo histórico outrora apontado na legitimação do sistema penal como instrumento inserto em uma lógica de reprodução de força de produção, no âmbito da percepção materialista que Rusche e Kirchheimer suscitam, complementadas pela percepção weberiana de legitimação de uma lógica protestante de primazia à acumulação e ao capital.


[1] O pragmatismo em tela deriva de uma percepção de pensamento na qual ação e cognição se combinam, no sentido do conhecimento ser um veículo de interpretação da realidade colocada,  como observam Outhwaite e Bottomore (1997, p. 599).   


[2] Deriva daí, pois, a hibridização do direito estadunidense em estruturas normativas próprias, particularizadas de acordo com cada Estado da federação, coexistentes, porém, com a aplicação supletiva de um direito federal (Statute Law).
[3] Outras fontes de referência: Oliver Wendell Holmes, John Dewey e Roscoe Pound, sendo inolvidável, porém, a remissão a nomes como Gray, Cardozo, Hall, Edgar Bodenheimer, Anton-Hermann, Chroust, Pitirim A.Sorokin, N.S. Timasheff, Karl N. Llewellyn, Jerome Frank, Josef Kunz e R.M.Mac Iver. Este rol de autores não está esgotado nas potencialidades do pensamento estadonidense, uma vez que a Escola Sociológica de Chicago posteriormente dará o colorido da interpretação fenomenológica à luz da Sociologia.
[1] Lyra Filho atenta para a complexidade da obra de Pound, equiparando sua concepção à “jurisprudência de interesses” e até mesmo ao teleologismo de Ihering, concebendo sua social engeneering uma roupagem que muito se aproxima do jusnaturalismo (1977, p. 57).
[2] Para Reale, Pound não vislumbra a existência de antinomias entre fato, valor e norma, superando-se, assim, as antíteses na aplicação do Direito, para se vislumbrar uma concepção tripartida do direito, sob a égide sociológica, lógica e filosófica (1999, p. 536).
[3] Oportuno observar, ante ao embasamento até aqui esboçado, o conteúdo hermeticamente superficial acerca do sentido de “interesse social” e “bem estar”, pois, como visto, o equívoco residiria em reduzir toda e qualquer sociedade a um ente relativamente homogêneo, ante à multiplicidade de grupos que a compõem e conflitam em sede de antagonismos de interesse.
[4] Outro pensador que perfilha a vertente de organicidade é Pitirim A.Sorokin, idealizando a distinção entre “mundo orgânico” e “mundo super-orgânico”, o mundo sociocultural, formado pelo conjunto das interações humanas. Aplicando suas idéias ao campo do direito, observou o pensador que as leis constituem sistemas jurídicos normais, ideacionais e idealistas, quando integradas nos tipos sócioculturais sendo, ainda o código como outorgado por Deus. Já na concepção jurídica, o direito seria visto como um meio de exploração de um ser pelo outro, em um verdadeiro sistema utilitário: segurança, propriedade, paz, ordem, felicidade e bem-estar da maioria da sociedade. As regras jurídicas são relativizadas, condicionadas, modificáveis de acordo com a utilidade. O formalismo, neste sentido, fica abolido do sistema, para que essa funcionalidade prevaleça.