quinta-feira, 13 de junho de 2013

A regra que fabrica o rebelde desmancha-se em pleno ar: notas de Introdução ao desespero do direito

Depois de hibernar - com a sensação de estar congelada há decênios - eis que me volto para o local onde me sinto confortável, qual seja, meu blog, apanágio de um mundo no qual me atrevo a me irresignar em face do que entendo ser o atrevimento da ilusão, mas que, de fato, finca-se na parcimônia do conformismo: o senso comum no Direito, caracterizado pelas fórmulas prontas reproduzidas em larga escala por quem não se atreve a pensar.

Não veio no atropelo essa volta, mas, antes, foi a resultante de uma série de e-mails recebidos com alegria. Sim, fui cobrada, instada, pressionada - e que bela pressão - a retornar e postar. Eis-me aqui, plena e cheia de incertezas! Sou infinitamente grata a quem amorosamente "puxou minha orelha" nos e-mails, lembrando-me, ao final, que isso é o que tenho a oferecer.

Com isso retomo os projetos que ousei deixar de lado: doutorado, livros, coletâneas. Aos poucos vou compondo a saga.

Como todo início marca o fim, peço licença poética a Karl Marx, para quem "tudo que é sólido se desmancha no ar", avançando nessa quinta-feira na indicação de um opúsculo que trouxe ao meio jurídico - ainda na década de 70, quando escrito - muita celeuma. 

Chama-se Direito, um mito, de João Uchôa Cavalcanti Netto, já esgotado - pois no Brasil usualmente as pérolas estão fadadas à extinção enquanto as britas áridas povoam o ideário de consumo fast food de um juridiquês acéfalo - mas disponível em sebos e livrarias virtuais.

O autor era juiz aposentado - lugar de fala que, juntamente com uma advocacia a posteriori - deu-lhe incentivo para, depois, fundar a Estácio de Sá, tendo em vista sua vocação para o ensino, bem como para a crítica feroz ao Direito (culminando, assim, no livro em questão).


Debruçando-me nele para preparar minhas derradeiras aulas de Introdução ao Estudo do Direito encontrei pontos de implosão, o bastante para que possa compartilhar com todos e todas a saída de um senso comum que se estabelece, dia após dia, como um mantra débil no direito (ousei escrevê-lo com letra minúscula, dada minha percepção contrária à sua cientificidade: acho mais honesto).


Separei alguns trechos para iniciar esse dia com sabor de renovação... Espero que gostem...


(...) Com a tática de ceder para dominar, de se curvar para impor, os homens ambicionavam o mando e o mundo: reverenciavam a terra para que ela, em resposta, suprisse-os, e nascera a agricultura: de uma forma geral homenageavam quaisquer adivinhados desejos da natureza, imaginando o atendimento em retorno das próprias reivindicações, e aí criaram a feitiçaria da ciência; enfim, atribuindo suas vontades pessoais a Deus, convenceram-se de estar obedecendo a Ele e então menos dolorosamente conseguiram o impossível, controlar-se, tarefa ardilosa na verdade endereçada apenas a controlar os outros, e isto era o Direito, com origem divina. Porém mero censor de condutas e raso demais para disciplinar sentimentos (e mormente porque, a serviço da manha e da astúcia, carregado de suspeitas), o Direito reuniu sem unir e aglomerou sem todavia confraternizar: traço de união entre os homens, ligava porém num traço que também separa, encarnado a linguagem dos inimigos enfim educados mas sempre inimigos. Trocara-se a violência dos contatos pela patifaria dos contratos, o conflito explosivo pelo implosivo, o sangue pelas lágrimas, e apenas se eliminara o isolamento primitivo não ainda alcançando afinidade, porém, uma acomodação à dissidência com a qual o mais primário não soubera lidar e ficara então impossibilitado de agrupar-se. Cada qual, agora, desinteressado em suprimir o outro (sem, entretanto querer com ele se irmanar), tencionava conquistá-lo para usufruí-lo, só que todos insistiam em obter o mesmo, sobrevindo como único remédio a troca da guerra muscular, rápida e dissolvente, pela guerrilha permanente, cerebral, gregária, encoberta, o Direito, essa conquista de estabilidade no conflito, no jogo, a substituição do gladiador pelo enxadrista. Pretendendo se achegar para poder dispor do outro mas notando que o conflito separava, o homem, antropofágico, digerira o conflito, adaptando-se a ele: aceitara-o, transferindo a violência do domínio do instinto, que é cego, para o comando da razão, que trapaceia. E foi na movimentação inicial desse jogo que os homens por esperteza concluíram as primeiras alianças - formando grupos contra grupos - e acabaram, por causa dessa coletivização da guerra, descobrindo um amor incipiente mas até hoje em voga, o amor somente ao amigo, ao comparsa, ao necessário, amor parcializado, amor jurídico. Nesse mundo então recente do Direito, porém, o semelhante se tornara mais perigoso, eis que vizinho sem contudo perder a invariável inimizade. As próprias gentilezas alertavam, pois cada homem, vendo no outro um espelho de si, sabia perfeitamente que a generosidade sempre revestia algum incógnito propósito de ulterior espoliação: até o aliado, portanto, o era incondicionalmente. Não foi com presentes que os europeus afinal tomaram a América dos índios?(...) - p. 74-76.
Esse trecho acima é um dos meus preferidos, pois marca uma desmitificação da ideia de ser o Direito um mecanismo lúdico de composição de paz e ordem, na medida em que se posiciona, ao contrário, como a resultante de um processo histórico de transposição da égide do sangue e da espada para o recalcamento da ira em face de um "evolucionismo" ingênuo que apenas desalojou a fúria para camadas outras de nosso mental. 

O Direito é, por pressuposto, o instrumento de ruptura da ordem, baluarte do caos e da entropia, sob a alcunha cívica de harmonia quando, a bem da verdade, se atingir alguma, marca-nos com a morte (pois apenas o que está fenecido encontra-se em estado entrópico ZERO, ou seja, em harmonia e ordem, em estaticidade e equilíbrio). 

A ruptura cívica que o Império Romano pretensamente firmou em nossas vidas deu-se à guisa de convencimento ilustrado e letrado de uma racionalidade que apenas situou o ódio para o plano do jogo lúdico - e lúcido - do xadrez, ocupando o que, outrora, eram os ordálios como mecanismo de produção de uma verdade divina. Foi o pontapé para o Cisma feudal e contemporâneo de nominar o mundo medievo de primitivo e "chagático" para o que se descobriu ser a liturgia das Luzes.

Como a História é feita, ao final, pela narrativa de quem a escreve segundo seu local de fala de conquistador - ora, ora, lembremos, pois, que os romanos deixaram marcas nesse sentido, caso contrário não teríamos no português a miscelânea da linguagem do conquistado(r) - o direito (sem D) sofisticou-se na ontogênese (ou seja, na criação de valores) da memória, estabelecendo verdades sob a pecha de serem "reproduções" de um tempo "que ficou para trás". 

Precisamos de um Foucault em A Verdade e as Formas jurídicas para nos esclarecer que as condições políticas e econômicas são um véu necessário para a compreensão de como a verdade é produzida no direito (sem D), na qual, a partir de Nietzsche, questiona a produção de verdade a partir do esquadrinhamento do sujeito a priori, ou seja, de quem elabora o discurso de verdade (p. 13).

João Uchôa, contudo, em lirismo visceral, ousa penetrar sinteticamente na produção de verdade, afirmando em seu opúsculo que:

(...) Encharcada fatalmente pelo presente do narrador, a História deforma o passado. Ela inventa (não descreve), cria (não reconstrói), justifica sonhadora o hoje (não explica objetiva o ontem). Eis portanto uma estória (...) - p. 80.
eis o mito, de História para estória, um conto ou mítica que, ao final, resgata com ar blasè - talvez - a poesia que não mais desponta no que se elabora como verdade no mundo jurídico...

Uma idílica ilusão se pensar, a partir daí, que um processo "recupera" a verdade, que o ritual judiciário "reconstrói" a medida do que ficou para trás em um passado - tanto próximo como remoto. 

A tradição inquisitorial fortemente presente na maneira como o poder de dicção se reinventa e autofagicamente sustenta impede a ruptura da lógica de recriação para se firmar na verdadeira criação de discursos de verdade, dentro dos quais exsurge uma teorização sobre a norma como ponto de apoio para todo o edifício jurídico que luta ardorosamente contra a gravidade (tudo que é sólido desmancha-se ao som gutural da desagregação).

O binário jurídico, assim, no sein e sollen advindos do pensamento positivista mais famoso - Hans Kelsen - coloca-nos na reinvenção do controle, sob os auspícios de um convencimento de que a norma liberta: ela aprisiona!

(...) O delírio dos contrários, mero estratagema, contudo escravizou e acabou nos levando a acreditar na infração e na lei como absolutos quando não passam de perspectivas, miragens, presas à vista e não à coisa, características reversíveis e por isso onipresentes sempre ao invés de excludentes: tudo é bom e mau, lei e infração ao mesmo tempo conforme. Daí, o Direito não ser o bem, coisa indefinida: o Direito é a Divisão, a Rachadura que devaneou o conflito entre o bem e o mal. O Direito não é o vício nem a virtude, flexíveis fantasmas, ele equivale à Moral que os faz de conta. O Direito não é o belo nem seu retrato, o feio, mas se equipara ao Olho que os enxerga. O Direito não é a mentira nem a verdade mas corresponde à Ciência que indevida as distingue. Ele não é o ilícito ou o lícito, volúveis, inconsistentes, permutáveis, mas o austero vigia que os propõe autênticos (...)- p. 40.
A regra fabrica o rebelde, bem como o Direito, nesse contexto, elabora o delinquente, num grande sistema de expectativas e frustrações engendradas para o convencimento de que compartilhamos valores que, ao final, custam-nos caro demais...
(...)A regra fabrica o rebelde, a norma desenha a falta, e o preceito, agredindo, puxa agressão de volta: logo, o mandamento provocou a desobediência e sintetizou a próprio e original pecado. Jamais haveria ilicitude sem a antecedência de uma lei(...) - p. 22-23.

Tenham um bom dia, com ares de saída da zona de conforto que, a despeito de se mostrar como algo sólido, esfacela-se em pleno ar!

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