sábado, 21 de agosto de 2010

O artesanato da advocacia e o ofício do advogado no Terceiro Milênio

Fonte da imagem: http://www.overmundo.com.br/guia/artesanato-em-guaraquecaba
Com o inverno vem a hibernação, preparando-nos para o despertar de uma primavera que sempre traz a idéia de renovação de ciclos e oxigenação da alma. Assim como a Natureza - e, na verdade, seguindo o curso da Natureza por me perceber parte inerente dela - oxigenei-me e cá estou com novidades.

Passei bastante tempo sem dar notícias e até ensaiei "abandonar" a profissão, sob a reincidente alegação de não me adequar à advocacia. Comecei um curso de psicanálise, que está dando aporte bem interessante em relação à vida e ao mundo, de forma que a repaginada no direito veio como resultado do momento de introspecção.

No período de parada - que, na verdade, foi a pausa necessária para imprimir maior capacidade reflexiva - profissionalizei-me: iniciei o doutorado em Direito pela Universidade de Brasília, comecei um trabalho atendendo mulheres em situação de violência, bem como, por agora, comecei uma proposta diferenciada de advocacia, em meio às mudanças pelas quais o mundo está passando em idos de globalização.

Estamos em pleno processo globalizante, que traz, de um lado a outro, muitas perspectivas de análise. Roberto Aguiar percebe na globalização “um fenômeno de aproximação entre grupos humanos que engendram relações produtivas, econômicas, financeiras e políticas, a partir de interesses complementares de dominação ou cooperação” (2000, p. 93), lembrando-nos que o processo ora pode representar um movimento de verdadeira solidariedade humana, ora pode possibilitar a consolidação de estruturas e sistemas opressivos.

O geógrafo Milton Santos, por sua vez, na obra Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal (2001), compreende no processo o ápice da internacionalização do mundo capitalista, fato este que pode situar a globalização a partir de três pontos: o fenômeno como fábula, perversidade e modelo de como poderia ser.

Para o autor, o fenômeno passa necessariamente pela relativização da soberania, de acordo com o crivo do posicionamento do Estado em relação à globalização, ao entender que a participação do mesmo, ao contrário do que poderia ser imaginado, não diminuiu, mas, antes, continua forte e regulador do mercado, ao construir infra-estruturas e alterar suas regras “num jogo combinado de influências externas e realidades internas.” (2001, p. 78)[2]

Aponta Santos a existência de três consensos políticos básicos: o Estado fraco, para estimular a sociedade civil, a democracia liberal e o primado do direito e do sistema judicial, este último aspecto de relevante interesse:

"Num modelo assente nas privatizações, na iniciativa privada e na primazia dos mercados o princípio da ordem, da previsibilidade e da confiança não pode vir do comando do Estado. Só pode vir do direito e do sistema judicial, um conjunto de instituições independentes e universais que criam expectativas normativamente fundadas e resolvem litígio em função de quadros legais presumivelmente conhecido de todos." (2002, p. 41-43).


O direito e o sistema judicial são, na visão de Santos, um elo vinculante da globalização política à econômica, entendendo que a imanação de ordem, previsibilidade e confiança resultam do “conjunto de instituições independentes e universais que criam expectativas normativamente fundadas e resolvem litígios em função de quadros legais presumivelmente conhecidos de todos” (2002, p. 43).

A percepção do fenômeno globalização pode ser apreciada sob dois enfoques: considerada como um movimento e homogeneização ou, por outro lado, de uma fragmentação cultural e étnica. Esta reflexão é relevante, uma vez que a assertiva de homogeneização leva à denominada ocidentalização, com predominância à “americanização”, contraposta à idéia da coexistência de dissensos, representada pela multiplicidade cultural.

Por que falar em globalização e advocacia artesanal? Porque dentro do processo globalizante vemos diuturnamente crescer uma espécie de advocacia industrial, marcada sensivelmente pelos mega-escritórios, especializados e sectarizados em funções e estruturas que possibilitam um serviço supostamente "de qualidade" e "pessoal".
Trata-se de uma falácia, bem como uma contradição, pois a robotização e a consolidação de estruturas sectarizadas trazem, de fato, a impessoalidade, transformando a dor do cliente em uma cifra. Como sabem, já advoguei em "larga escala" e, sinceramente, perdi muito em termos de sensibilidade jurídica.

Depois da experiência com violência doméstica aprendi a me deixar cativar pelo problema do cliente, dando o suporte emocional e profissional para sua situação. Profissionalizei-me em processos terapêuticos (floral de Bach e psicanálise, ainda em curso), justamente para ampliar possibilidades de oferecer aos clientes e às clientes uma advocacia artesanal, que possa suprir as necessidades de todos.

O que seria a "advocacia artesanal"?

Uma resposta simples à impessoalidade da mega-advocacia. Trata-se de um trabalho de ourivesaria. Muitos e muitas de vocês sabem que sou avessa ao esquema ctrl c + ctrl v de simplesmente colar peças, como se a vida do cliente fosse um quebra-cabeças frio e calculista.

Minhas petições, minhas atuações em audiência, ou, ainda, as sustentações e os acompanhamentos em tribunais (ordinários ou superiores), tudo é realizado segundo um procedimento bem burilado de reflexão, onde as teses são criadas, pensadas, refletidas, amadurecidas, pari passu às estratégias de atuação.

Nesse aspecto, não precisaria dizer muito a respeito da agregação de técnicas de linguagem subliminar, análise do discurso, teoria dos jogos. Essa estratégia de abordagem escapa, incólume, a um modelo de advocacia tecnocratizada, dentro da qual a potestade dos escritórios ocupa o espaço do brilhantismo da mente humana.

O cliente acaba pagando, dentro disso, o preço do ar condicionado de R$6.000,00, ou, ainda, o valor estratosférico - embutido na conta dele - da garagem do prédio. Ostentação que cativa? Sim, claro, mas às custas da simplicidade que é apenas sentar-se à frente de um computador e deixar a mente criativa fazer o resto.

Quando o advogado(a) senta-se diante de um computador já preocupado em ganhar a causa para receber o dinheiro para pagar as contas, acabou-se a ADVOCACIA, porque, enfim, acaba-se o sacerdócio... Ele é mais um agente dentro de uma grande MATRIX...

5 comentários:

Danillo A.N. disse...

É um assunto muito profundo, que diz respeito a uma grande coletividade dos profissionais do direito, sobretudo os iniciantes, dentre os quais estou inserido.
A advocacia massificada é uma consequência do mundo pós-moderno e capitalista, onde tudo é feito com excessivo individualismo e as pessoas cada vez mais se imergem num sistema autofágico que as torna descartáveis. Tudo para o privilégio de poucos, que pelo lucro são capazes de transformar seres humanos em ferramentas.
Confesso que não gosto do termo advocacia artesanal, mas diante de tanto egocentrismo e falta de ética, é reconfortante saber que dentro da profissão há aqueles que ainda se importam com a real efetividade do serviço de advocacia, que é a satisfação de ver a justiça ser feita.
São poucas pessoas que têm coragem de se aprofundar em um tema tão complexo, é necessário fazer uma incessante auto-reflexão para conseguir escrever ou até mesmo emitir uma opinião. Parabéns pelo texto.

Danillo A.N. disse...

É um assunto muito profundo, que diz respeito a uma grande coletividade dos profissionais do direito, sobretudo os iniciantes, dentre os quais estou inserido.
A advocacia massificada é uma consequência do mundo pós-moderno e capitalista, onde tudo é feito com excessivo individualismo e as pessoas cada vez mais se imergem num sistema autofágico que as torna descartáveis. Tudo para o privilégio de poucos, que pelo lucro são capazes de transformar seres humanos em ferramentas.
Confesso que não gosto do termo advocacia artesanal, mas diante de tanto egocentrismo e falta de ética, é reconfortante saber que dentro da profissão há aqueles que ainda se importam com a real efetividade do serviço de advocacia, que é a satisfação de ver a justiça ser feita.
São poucas pessoas que têm coragem de se aprofundar em um tema tão complexo, é necessário fazer uma incessante auto-reflexão para conseguir escrever ou até mesmo emitir uma opinião. Gostei muito do texto.

Alessandra de La Vega Miranda disse...

Oi, Danillo, boa tarde!

Grata pelo comentário. A expressão "artesanal" veio cunhada a partir de uma obra que li chamada O ARTESANATO INTELECTUAL E OUTRAS HISTÓRIAS, de C. Mills e tem uma razão de ser, a partir da ideia de ser artes + ato, ou seja, o ato pelo qual se produz arte. Para tanto se rompe a idiossincratização, como também se rompe a robotização. Foi a partir daí que entendi ser muito adequado se voltar à arte. Grata

Camila Chagas Simões Delgado disse...

"Quando o advogado(a) senta-se diante de um computador já preocupado em ganhar a causa para receber o dinheiro para pagar as contas, acabou-se a ADVOCACIA, porque, enfim, acaba-se o sacerdócio... Ele é mais um agente dentro de uma grande MATRIX..."
Dissestes tudo! Quando o valor for maior que a causa, não haverá mais direito, apenas interesses. Seria como um médico prescrever qualquer medicamento ao seu paciente sem averiguar a miúde a causa do problema.
Chega de produção em massa! Chega de enxergar as pessoas como um potencial cliente, mas que passemos a enxergá-las como um potencial ser humano com seu direito adquirido, defendido e protegido.
ARTESANATO = arte e técnica do trabalho manual não industrializado, realizado por artesão, e que escapa à produção em série; tem finalidade a um tempo utilitária e artística. (Houaiss).
Que nos dediquemos a teia da vida, aos seus fios e meandros, artesanalmente!
Lindo texto Alessandra! Muito obrigada por mais este acréscimo!

Camila Chagas Simões Delgado disse...

"Quando o advogado(a) senta-se diante de um computador já preocupado em ganhar a causa para receber o dinheiro para pagar as contas, acabou-se a ADVOCACIA, porque, enfim, acaba-se o sacerdócio... Ele é mais um agente dentro de uma grande MATRIX..."
Dissestes tudo! Quando o valor for maior que a causa, não haverá mais direito, apenas interesses. Seria como um médico prescrever qualquer medicamento ao seu paciente sem averiguar a miúde a causa do problema.
Chega de produção em massa! Chega de enxergar as pessoas como um potencial cliente, mas que passemos a enxergá-las como um potencial ser humano com seu direito adquirido, defendido e protegido.
ARTESANATO = arte e técnica do trabalho manual não industrializado, realizado por artesão, e que escapa à produção em série; tem finalidade a um tempo utilitária e artística. (Houaiss).
Que nos dediquemos a teia da vida, aos seus fios e meandros, artesanalmente!
Lindo texto Alessandra! Muito obrigada por mais este acréscimo!