sábado, 21 de agosto de 2010

Transação penal: instrumento repressivo de controle penal recrudescido


Por que sempre achei a transação penal um embuste em relação a ser considerada um instrumento de intervenção mínima???

Simples... ela é a "balinha" recheada de pimenta no controle penal, engendrada sob o signo do recuo da intervenção do Estado, mas, paradoxalmente, revestindo o Estado de um poder "satelitizante" de controle. Vamos lá.

Em um primeiro momento de abordagem, a transação penal pode ser entendida como instrumento inserido em uma dinâmica operacional de recrudescimento jurídico-repressivo, de acordo com a subsunção à lógica anteriormente exposta acerca de uma estrutura sistêmica, da qual derivam subsistemas sociais (dentre os quais o sistema e o direito penal, como discurso operacional lingüístico).

Deriva a transação penal de uma predisposição de estratégicas político-criminais, segundo influências hegemônicas de paradigmas construídos em outras realidades, materializadas e concretizadas a partir de conteúdos programáticos previamente estabelecidos de controle social, como aponta Andrade acerca da funcionalidade de elaboração da técnica jurídico-positiva (1997, p. 26).

É a transação penal, desta feita, o resultado da opção política adotada pelo legislador na estruturação da sistemática dos juizados especiais criminais, restando avaliar, pois, a percepção do instituto como instrumento de maior recrudescimento jurídico-repressivo, ante à predileção de aumento no intervencionismo estatal.

A prevalecente idéia é de que a transação penal é resultado de uma abertura e do paulatino afrouxamento da atuação do Estado no monopólio jurídico-repressivo. Entretanto, ao contrário, representa o momento de maior atuação do Estado na resposta ao crime, por meio da identificação dos mesmos problemas estruturais existentes no discurso jurídico-repressivo.

O caráter de seletividade está presente na transação penal, já a partir da indefinição ôntica do que vem a ser um crime de menor potencial ofensivo, apenas delimitado por um critério político do legislador, ao defini-lo em termos de quantidade de pena. Fomenta a criminalização primária e, de plano, evidencia os destinatários da catalogação como criminosos ou, na acepção terminológica usual, autores do fato.

Os denominados delitos de menor potencial ofensivo são construídos pela produção legislativa, articulando uma estrutura de captação dos desviantes - autores do fato. Esta malha é apontada por Cohen na metáfora da rede de pesca, na qual somente alguns peixes são capturados e redimensionados de volta à sociedade, com suas etiquetas e seus rótulos, incessante e sucessivamente (1985, p. 42).

A própria lei seleciona, uma vez que faz referência à expressão “autor do fato” em diversos momentos de sua redação, antes mesmo de restar delimitada e fixada a lide penal, bem como afastada a presunção de inocência. A rotulação, é repetida no termo circunstanciado, quando protocolizado e distribuído perante o juizado.

Outro ponto de importante relevo para a análise da transação penal relaciona-se à atuação das instâncias oficiais de controle social, a exemplo da atividade policial, foco seletivo do aumento do intervencionismo estatal.

O registro e a captação de crimes insignificantes que antes não eram registrados, por critérios seletivos, cedem espaço à obrigatoriedade de lavratura do termo circunstanciado das notícias levadas à delegacia, aumentando a atuação dos agentes na identificação e no registro dos delitos que hoje estão sujeitos à competência da lei 9.099 de 1995 e na recente 10.259/01 .

Não é outra a conclusão de Azevedo:
"Ao invés de retirar do sistema formal os casos considerados de menor potencial ofensivo, a Lei 9.099/95 incluiu esses casos no sistema formal de justiça, através de mecanismos informalizantes para seu ingresso e processamento. A dispensa da realização do inquérito policial para os delitos de competência dos Juizados Especiais Criminais retirou da autoridade policial a prerrogativa que tinha de selecionar os casos considerados mais “relevantes”, o que resultava no arquivamento da grande maioria dos pequenos delitos. (1991, p. 321) "

Dias e Andrade afirmam:

"Trata-se daquele espaço de liberdade de que goza a ação concreta da polícia e que ultrapassa largamente as margens dentro das quais a lei permite a intervenção de considerações de oportunidade da polícia. Para exprimir a mesma realidade, falam FEEST e BLANKENBURG em poder de definição da polícia, que descrevem como “a possibilidade socialmente pré-estruturada – legal ou ilegal – de definir uma situação e impô-la vinculadamente a outros”. Isto, a partir da idéia de que a identificação de um delinqüente constitui um processo social de definição cujo resultado final depende do poder relativo dos intervenientes. A importância prática desta discricionariedade já levou alguns autores a assimilar a atuação da polícia à do político. “Polícias e políticos – escreve, a propósito MUIR – empenham-se, em termos idênticos, em submeter coercitivamente os outros aos eventos.” (1996, p. 446-447)

A titularidade do controle social está, em um primeiro plano, ligada à atividade policial e, sendo mais precisa, ao próprio trabalho dos agentes policiais diretamente envolvidos no atendimento aos indivíduos, motivo pelo qual entendem Dias e Andrade ser o “símbolo mais visível do sistema formal de controle, o mais presente no quotidiano dos cidadãos e, por via de regra, o first-line enforcer da lei criminal.” (1997, p. 443).

Em um outro ponto de abordagem, o art. 76 da Lei 9.099/95 aponta para outro pólo construtor e definidor do controle em questão, materializando no Ministério Público o órgão legitimado à proposta da transação penal, em um outro momento do procedimento.

Isto porque, a ele compete a análise fática de inserção do autor do fato às hipóteses previstas em lei, em termos de requisitos objetivos e subjetivos.

O princípio da discricionariedade regrada deflui da titularidade cometida ao Parquet, uma vez que o mesmo é quem primeiramente delineia uma proposta de aplicação imediata de pena.

Assim sendo, longe de representar um acordo motivado e delimitado paritariamente, com a participação decisiva da parte na proposta ventilada, a transação penal finda por concretizar seu verdadeiro sentido, qual seja, “aplicação imediata de punição restritiva de direitos ou multas”, a teor do disposto no art. 76 da lei 9.099/95.

Não pode, por oportuno, ser desconsiderada a participação do magistrado no controle, pois, segundo o art. 76, §3º da Lei 9.099, o juiz aprecia a proposta e homologa o acordo firmado, atuando como órgão ponderador da proposição firmada pelo Ministério Público, ao mesmo tempo em que exerce seu mister de administração de justiça, atividade de controle por excelência.

Esta reflexão ainda encontra amparo na assertiva de que o autor do fato, ao aceitar a proposta e prestando o compromisso de cumprir as condições fixadas, está ingressando na malha de controle social, antes de ser discutido o mérito da causa, por meio do regular processo.

Importante salientar que não foram raras as manifestações pretorianas e doutrinárias para algo mais proeminente em termos de intervencionismo e controle social: o descumprimento da transação penal acarreta a decretação da prisão do autor do fato, violando, assim, suas garantias processuais penais.

Ainda neste pensamento, seria relevante avaliar o efeito que uma proposta de transação representa em termos de controle social subjacente e velado, imperceptível em um primeiro momento, por estar encoberto pelo discurso promissor contido na lógica célere e funcional dos juizados especiais criminais, numa visível transposição da estratégia de punição para a “consciência abstrata” do indivíduo (FOUCAULT, 1991, p. 13-14).

Também neste contexto, quando o autor do fato se predispõe a efetuar o pagamento estipulado na proposta (cestas básicas, por exemplo), ou, ainda, a prestar serviços em determinado estabelecimento, ingressa na rede de poder disciplinar que o aproxima da explicação foucaltiana de domínio do corpo, por meio da atividade contida na proposta, realizada graciosamente, como meio de expiação revestida da idéia de benesse concedida pelo Poder Público ao cidadão “infrator”.

Aliás, neste aspecto, duas observações são pertinentes para evidenciar o intervencionismo velado.

A primeira, relacionada à vedação que o art. 76, §2º, I e II impõe para a concessão do benefício, no caso do autor haver sido anteriormente condenado, em sentença definitiva, por prática de crime.

A segunda, relacionada à concessão do benefício dentro do prazo de cinco anos, que, somada ao caso anterior, comprova a seletividade do sistema do juizado especial.

O paralelismo que o inciso III traz com o art. 59 do Código Penal igualmente leva o leitor à percepção de adequação do instituto da transação penal à mesma lógica operacional do processo penal clássico, com o diferencial relacionado apenas à formatação de que se reveste a lei instituidora dos juizados especiais: uma proposta de uma atuação mínima, mas cujas regras transparecem no modelo já existente de clássica intervenção.

Assim, longe de representar modificação quanto ao intervencionismo, ainda afeta, em nome da celeridade e do funcionalismo, princípios de garantia ao status libertatis do indivíduo.

Por fim, a relevância do presente estudo reside na reflexão sobre o recrudescimento do controle social exercido pela transação penal e legitimado por uma mudança paradigmática no panorama jurídico-penal (da indisponibilidade do processo para o consenso).

Esta mudança é realizada em detrimento dos postulados assecuratórios da liberdade do indivíduo (contraditório, ampla defesa, devido processo legal), fixadores de algumas barreiras ao Estado-sancionador e necessários para que o indivíduo seja constrito de sua liberdade após o minucioso exame da conduta tida como delituosa.

Para Azevedo, o pragmatismo levado às últimas conseqüências pelo sistema da lei dos juizados fomenta a prática autoritária e arbitrária de controle social, reduzindo o “direito punitivo como forma de controle dos comportamentos socialmente indesejáveis” (1996, p. 130), ao mesmo tempo em que evita a sobrecarga do sistema penal.

Não é outro o pensamento de Shecaira:

"Os juizados especiais criminais representam a expansão do sistema repressivo estatal, tanto em relação ao conjunto de condutas definidas legalmente como crimes, como em virtude do aumento da eficácia do aparelho que passa a reprimir condutas até então toleradas". (1991, p. 409)

O controle arrefecido encontra-se estruturalmente contido no discurso jurídico-positivo da transação penal, instrumento político-criminal engendrado de acordo com as exigências de formatação de uma estratégia velada de subsunção do indivíduo a uma política eficiente, utilitária e célere de controle social.

Por esta razão, é infecundo discutir a transação penal no plano de sua constitucionalidade, uma vez que o discurso jurídico-positivo lhe dá suporte, por meio da justificação de confluência da transação ao disposto no art. 98, I, norma constitucional de eficácia limitada, que necessitou de legislação complementar posterior.

Isto posto, é perfeitamente superável esse raciocínio em termos de conflito normativo, já que o despojamento dos princípios de contraditório, ampla defesa e devido processo legal encontram respaldo na lei, como conseqüência da necessidade de imprimir novo impulso dimensionador de rapidez às lides penais envolvendo delitos de menor potencial ofensivo.

Daí a preocupação de transcendência da linguagem técnico-jurídica, para a análise a partir do campo de percepção político criminal, por meio de identificação e da inserção da transação penal em um contexto muito mais amplo e profundo de abrangência, qual seja, uma teorização sistêmica.

Assim sendo, permeável às necessidades de estruturação de estratégias de resposta penal mais eficiente, e, ao mesmo tempo, menos perceptível, o código operacional representado pela produção normativa arrefece o controle social, por meio da edição de uma lei que possibilita a expansão do mesmo, aliada, outrossim, à percepção, no âmbito de opinião pública, bem como da doutrina especializada na dogmática jurídico-positiva, de uma fórmula tida como verdadeira “tábua de salvação” para a falência institucional que vem experimentando o sistema penal.

Além disso, dada a opção sedimentada pelo aumento do controle, a formatação lógico-jurídica é uma questão operativa de concretização da opção política do legislador, em termos estratégicos.

Qualquer argumento desenvolvido no plano da dogmática jurídica fica inerte em termos de reflexão acerca da transação penal, já aceita doutrinariamente como instituto descriminalizante de intervenção mínima estatal, observada sua apreciação normativa.

Mas, contrario sensu, ao ser transposto tal domínio, numa abordagem estrutural, revela-se o aumento do intervencionismo estatal na regulação de condutas, como resultado do recrudescimento no controle social formal.

Por esta razão, infecunda a discussão jurídico-normativa sobre a transação penal, uma vez que seu pilar de sustentação encontra-se alicerçado na lógica jurídica.

Daí a aparente frustração quanto à análise do instituto a partir da dogmática, já que a Constituição Federal dá suporte a legiferância plena ante a formatação da lei instituidora dos juizados especiais criminais.

Eis o motivo pelo qual faz-se necessária a suplantação da referida lógica formal, para que possa ser avaliada uma inserção sistêmica e operacional da transação penal, sob a égide de uma avaliação qualitativa de cunho político-criminal. Marca-se, assim, a superação da dogmática jurídico-penal para a criminologia.

Assim sendo, à guisa de provocação final, a transação penal pode ser entendida como veículo político-criminal de controle social formal, em consonância com a lógica sistêmica do funcionalismo que motiva sua finalidade estratégica de regulação de condutas e impulso de celeridade na administração de justiça penal.

Característica condizente com um não intervencionismo de mercado perpetrado em escala global, recrudescido em sede de atuação estatal no controle da criminalidade.

Isto porque, ao efetivamente ser enfrentado um minimalismo penal, ou, ainda, uma proposta de longo alcance de abolicionismo, está a transação penal fomentando a submissão do indivíduo a um estado de vigilância, reforçado pelas idéias antes descritas, acerca da manutenção do indivíduo na malha de fiscalização que, ainda que precária, em certos casos, finda por trazer para a rede o contingente de indivíduos selecionados pelas agências formais controladoras.

Por outro lado, a assertiva de intervenção mínima, calcada em uma contração do alcance do sistema penal, provoca o debate acerca da descriminalização das condutas sujeitas ao império de atributividade da transação, o que resulta em uma real diminuição no controle social formal, com o recuo da intervenção estatal, bem como com sua adequação à lógica não intervencionista.

Contudo, em Os processos de descriminalização (1995), Cervini elenca óbices erigidos contra a descriminalização de condutas, a exemplo dos fatores favorecedores da criminalização propriamente dita – principalmente em um contexto brasileiro de expansão da lei e da ordem – acrescidos aos fatores que se opõem à redução do campo de ação do sistema penal.

Assim sendo, tanto o medo de que a descriminalização possa fomentar mais condutas descriminalizadas, bem como o temor de descrédito no sistema penal, suscitado pelo impacto da exposição que a mídia faz do crime, formando opiniões favoráveis à expansão do sistema e dos castigos contribuem, por outro lado, para que reste improvável uma proposta de supressão do controle social formal, por meio da descriminalização in totum dos delitos sujeitos à transação penal.

A irradiação de um pensamento funcional acerca do instituto ora apreciado finda, por fim, por suplantar a discussão dos postulados de racionalidade que autorizam, por exemplo, a mitigação dos direitos fundamentais no sistema dos juizados.

Sob a assertiva de pleno funcionamento da estrutura, engendrada com o intuito de impulsionar celeridade, eficiência e rapidez na resposta estatal às condutas classificadas como delitos de menor potencial ofensivo, a lógica operacional em questão relega os direitos individuais para um segundo momento, quando teoricamente o cidadão recusar a proposta que lhe é efetuada pelo Ministério Público.

Subsistiria, então, a intangibilidade dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, uma vez que, até então – ou seja, até o momento em que o sujeito recusa a proposta – não existiria, ipso facto, processo, uma construção teórica que encontra guarida na visão sistêmica, porém, criticável em sede de tutela do indivíduo.

???? Puro embuste...

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