sábado, 21 de agosto de 2010

Plea bargaining: contribuições estadunidenses para o "ctrl c" brasileiro da transação penal

Toda e qualquer incursão no instituto da plea bargaining somente pode ser feita tomando por base uma digressão histórica sobre a evolução do direito e o sentido da sanção criminal para a sistemática jurídica presente nos Estados Unidos.

Neste sentido, pertinente observar a história do direito penal norte-americano ao longo do período de adaptação dos colonos à nova terra, delineados pela incessante elasticidade e adequação da estrutura iurígena à realidade social pulsátil que lhe dá suporte.

Desta feita, a adaptação dos institutos jurídicos ingleses metropolitanos às particularidades de cada colônia denota a capacidade de flexibilização do vigente direito inglês aos problemas locais, presentes a dada conjuntura.

Friedman aponta uma rudimentar administração das tensões interpessoais, caracterizadoras de um período de “comandos militares” (1972, p. 37), dado o lapso de especialização das funções jurisdicionais propriamente ditas, bem como o latente imperialismo inglês em pretender à manutenção de sua potestade no continente norte-americano, tendente sempre à defesa dos direitos da metrópole, quando em conflito com os interesses coloniais (STEURY, 1996, p. 288).

Com a constante mutação sócio-política advinda precipuamente da autonomia atribuída aos consolidados Estados pós-Independência, o direito consolidou-se em estruturas jurídicas coexistentes com o direito federal, aplicável em caráter de excepcionalidade, fundada sempre no permissivo dispositivo presente no texto constitucional (DAVID, 1998, p. 369).

O direito penal, neste panorama, acompanhou a evolução do sistema jurídico nascente, aparecendo como resposta recrudescida da metrópole às infrações cometidas na colônia, mantendo a hegemonia inglesa no território conquistado, em uma verdadeira política “marcial” de aplicação de penas, não raro beirando a barbárie e aspereza, correlatas ao tradicional sistema do Antigo Regime europeu (FRIEDMAN, 1972, p. 69).

A consolidação do instituto da plea bargaining no contexto da realidade social estadunidense remonta à atualidade, se confrontado com o processo de cristalização dos institutos jurídicos naquele país, uma vez que relacionado, segundo Neubauer, ao período posterior à Guerra Civil, com a efetiva consolidação em meados dos anos 60, já no séc. XX (1996, p. 309).

Neste aspecto, Steury preconiza a recenticidade do instituto, inobstante a verificação de uma secular prática de negociação informal entre o ofensor e a vítima, já em meados da independência, a fim de evitar os altos custos de um processo, sem, contudo, o rigor de que se reveste a atual plea bargaining (1996, p. 288).

De fato, a plea bargaining guarda um ponto de referência com as negociações entre o Estado e o acusado ao longo dos séculos, despida, contudo, da solenidade com que é realizada na atualidade.

O instituto somente foi objeto de estudo e análise em 1970, no processo Brady v. United States tramitado perante Suprema Corte dos Estados Unidos, seguido no ano seguinte pela explícita importância atribuída por aquela Corte Maior, no julgado Santobello v. New York, que se referiu ao instituto como “um componente essencial da administração da justiça” (STEURY, 1994, p. 289).

Administração da justiça. Eis o ponto neural da sopesada importância da plea bargaining, que corresponde atualmente à cifra de 90% de todos os casos em tramitação perante as mais distintas cortes estaduais nos Estados Unidos (GARCIA, 1996, p. 80).

De fato, o sucesso encontrado pelo instituto alienígena pode ser explicado por fatores relacionados, de forma direta ou reflexa, com a otimização do funcionamento da administração da justiça, destacando a racionalização dos custos operacionais do procedimento, por meio dos acordos realizados, evitando gastos com julgamento e aliviando cifras correspondentes ao contingente carcerário.

Garcia diagrama algumas vantagens oferecidas pelo sistema, principalmente no que diz respeito às vantagens experimentadas pela tríade promotor – defensor – juiz.

O prosecutor afasta, de imediato, a possibilidade da absolvição do acusado em um eventual julgamento pelo júri, mantendo, desta feita, as estatísticas de condenação obtidas em prol do promotor.

Como é cediço na dinâmica processual estadunidense, o membro da acusação seria escolhido pela sociedade, representando as condenações fator motivante para se manter o promotor no cargo em questão (GARCIA, 1996, p. 90).

Estas vantagens também são auferidas pelos defensores, com a inerente redução do trabalho realizado - sem prejuízo dos honorários - e a certeza da celebração de um bom acordo, se comparado com a realização do julgamento e a possibilidade de uma condenação mais gravosa ao acusado.

O Estado consegue impor rapidamente a pena ao acusado que assuma a autoria do delito, economizando, assim, os custos operacionais de um julgamento, destinados, ao final, àqueles casos em que há razoável questionamento sobre a culpabilidade do réu (GARCIA, 1996, p. 90).

De forma indireta, salienta-se a satisfação cometida à coletividade, pois, segundo FINE, a eventualidade de uma absolvição cede espaço à certeza do cumprimento da pena aplicada ao réu quando da aceitação da plea bargaining (1987, p. 618).

Tal concepção, contudo, encontra ferrenhos opositores, que acreditam que este sistema procedimental tem exacerbada preocupação com cifras e estatísticas, em detrimento da efetiva aplicação de justiça, de modo a transformar a administração de justiça em um microcosmo capitalista de auspício à produtividade pura e simples (GARCIA, 1996, p. 92).

Collin entende por plea bargaining o procedimento em que o acusado assume a culpa em relação à determinada conduta delituosa que lhe é atribuída, ante a expectativa de obtenção de algum benefício por parte do Estado (1997, p. 179).

Também Neubauer (1996, p. 309) define plea bargaining como uma negociação entre as partes: “Plea bargaining can best be defined as the process through which a defendant pleads guilty to a criminal charge with the expectation of receiving some consideration from the state.

A plea bargaining relaciona-se com a avocatória de culpa pelo próprio acusado, sinônima de assunção de autoria do crime, no sentido de haver o réu empreendido a conduta delituosa, e não a noção de grau de reprovabilidade, que advirá posteriormente, quando da gradação e imputação da pena pelo magistrado.

A confissão do réu, neste sentido, é a mola-mestra do sistema de plea bargaining, já que evita a instauração e o prolongamento do iter processual em face do acusado, ao mesmo tempo que manifesta um consectário natural do ius puniendi do Estado, ante à atribuição de uma sanção penal ao infrator que assume a titularidade do delito.

A autonomia dos Estados-membros na dicção do direito apresenta como conseqüência, a multiplicidade de variações que o instituto do plea bargaining apresenta nos diferentes entes federativos estadunidenses.

São reconhecidos pontos de confluência que permitem classificar aquele instituto nas modalidades voluntary ou ininfluenced bargaining, structurally induced ou implicit bargaining, negociated ou explicit bargaining (GARCIA, 1996, p. 79-92).

A denominada influenced bargaining decorre da confissão incondicionada do acusado, ante à manifesta culpabilidade do mesmo, não sendo, assim, necessário efetuar qualquer tipo de negociação entre o indivíduo e o promotor. A essência desta modalidade, menos usual, está centralizada no vasto rol de evidências que levam à autoria do delito, não havendo qualquer vantagem para o réu a negação da conduta delituosa.

A structurally induced - também conhecida como implicit bargaining – deriva da certeza de atribuição severa da pena quando da realização do julgamento. Por outro lado, a afirmação da culpabilidade leva à certeza de benignidade na atribuição da sanção penal àquele que assuma a titularidade do delito.

O acusado, nesta visão, tem uma expectativa de obter um resultado mais favorável, sendo informado, outrossim, de suas opções de escolha: assumir a culpa e receber a penalidade, ou ir a julgamento, arriscando uma penalização maior do que a aplicada se estivesse assumindo a culpa (MCDONALD, 1979, p. 385).

Na explicit bargaining ou negociated, onde imperativo é a negociação entre as partes, subdividida em charge bargaining (também conhecido por charge reduction ou dismissal), e sentence bargaining (denominada sentence reduction ou “on the nose guilty plea”).

Conforme esposado anteriormente, tanto no caso previsto em sede de voluntary, como em structurally induced pleas, não existe uma negociação propriamente dita.

Tais modalidades de assunção de culpa não derivam de acordo direto ou reflexo entre o ofensor e o órgão acusatório, e sim, de uma motivação unilateral do acusado em evitar o deslinde de um julgamento inoportuno.

Mutatis mutandis, a negociação efetiva entre o promotor e o réu é mais perceptível nas figuras da charge bargaining e sentence bargaining, cada qual com sua peculiar característica, porém com o denominador comum baseado na idéia de existência de um acordo efetivo.

Ocorre charge bargaining quando a assunção de culpa é trocada pelo comprometimento do promotor de justiça em “reduzir, abandonar ou abster-se de trazer imputações adicionais” (GARCIA, 1996, p. 84) em face do acusado, sendo permitido a este, outrossim, o exercício do juízo de retratação, não estando, por esta razão, obrigado aos limites da barganha.

O fator motivante da retratação centraliza-se na possibilidade de uma prática muito comum entre os promotores, denominada overcharging: a inclusão aleatória de mais tipos penais, sem que o acusado tenha necessariamente incursionado pelos mesmos, para que, na hora da barganha, algumas figuras sejam excluídas, mantendo, outrossim, intactas aquelas pelas quais o réu efetivamente responderia, de forma a aumentar o quantum em potencial da sanção.

Reduz Neubauer o campo da charge bargaining, admitindo a substituição da imputação inicial por outra menos gravosa, como, por exemplo, no caso verificado entre furto e roubo, sendo então considerada charge bargaining a assunção de culpa em face de um delito menos gravoso do que o originalmente imputado, de forma a reduzir a o grau da condenação in tese (1996, p. 311).

Para o autor, inclusive, o abandono de imputações constitui modalidade distinta – denominada count bargaining – onde o acusado assume a imputação de uma ou algumas, mas não de todas as figuras delituosas que lhe são atribuídas pela acusação, reduzindo, outrossim, o quantum da pena.

Acrescenta, porém, a escassez de utilização desta espécie de plea bargaining, em prol da substituição pela imputação menos gravosa prevista na charge bargaining.

Pode ser observada na sentence bargaining uma negociação entre a acusação e o réu, não mais centrada na imputação em si do delito, e sim, calcada na promessa, por parte do promotor, de recomendação de benefícios em face do acusado, relacionada ao abrandamento do quantum da pena a ser aplicada, bem como medidas de reabilitação, no caso, por exemplo, de se tratar de dependentes de droga.

No outro pólo da “barganha” está o acusado, que igualmente pode oferecer vantagens à acusação e reduzir sua pena em potencial, tais como a devolução de eventual res furtiva, o comprometimento de indenização aos familiares ou à própria vítima, ou ainda, bastante praticado nas cortes estadunidenses, a colaboração com a polícia, bem como a participação em julgamentos como testemunha.

Importante salientar, neste contexto, que o empenho do promotor não denota a obrigatoriedade do êxito em recomendar o benefício, sendo apenas uma obrigação de meio, adstrita, posteriormente, à chancela do magistrado em aceitar ou não as recomendações que lhe foram feitas.

O acordo previsto no sentence bargaining, ao contrário da modalidade anterior, não admite juízo de retratação por parte do acusado, sendo, por isso, considerado uma barganha de alto risco, uma vez que o réu aceita o provável acordo, sem saber, de fato, se tal será efetivamente acatado pelo juiz, como aponta Bassiouni : “the court shall advice the defendant that if the court does not accept the recomendation or request the defendant nevertheless has no right to withdraw the plea ” (1969, p. 462).

Elencadas as vigas mestras do plea bargaining, em sua essência geral, muitas críticas são feitas ao instituto elencado, sendo expressiva a gama de opositores que delineiam ferrenhos argumentos contrários ao dispositivo.

Oportuno destacar algumas divergências, sem, contudo, esgotá-las, uma vez que fogem ao objetivo do presente trabalho (GARCIA, 1996, p. 90-91):
a) grande poder discricionário cometido à figura do promotor, que decide, ao final, qual a incursão penal à qual o acusado irá se submeter;
b) inexistência de desenvolvimento do iter processual, sendo as imputações atribuídas pelo promotor calcadas em meras conjecturas, sem se apreciar a verdade dos fatos, da qual se distancia, inclusive, o próprio juiz da causa;
c) imparcialidade do órgão julgador em caso de um eventual julgamento;
d) possibilidade de indução do acusado a aceitar a imposição de plea, sob a temerária advertência de agravamento da pena, no caso de se proceder ao efetivo julgamento;
e) renúncia de direitos constitucionais, tais como: a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal, que são afastados em nome da maior atividade producente de agilização de justiça;
f) primazia à celeridade e rapidez na resposta penal, em detrimento do justo processo legal, com vistas à contenção de custos processuais.

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