Diante de tanta asneira que tenho lido por aí, fruto de um automatismo ímpar com que, por esteira produtiva industrial se fabricam condenações, tirei do baú uma pérola aqui, a módica compreensão do tipo penal na apropriação indébita...
O art. 168 é bem claro: “Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção (...)”. Diante da redação, pode-se observar que o tipo penal não descreve lapso temporal para demarcação do elemento subjetivo do tipo, deixando para o intérprete – com as ressalvas que a legalidade traz – a tarefa de depreender a situação consumativa do delito.
Penso com meus botões que é na análise do conteúdo da “apropriação”, e não no tempo que leva para se firmar a devolução, que reside o ilícito, pois a tradução de "apropriar" como tornar próprio é bem razoável. Qualquer raciocínio fora disso seria, para mim, uma legiferância além da atividade hermenêutica do magistrado ou da magistrada, dissociando-se do estado democrático de regras de imputação lastreadas na legalidade.
Não sei se cabe ao órgão judicante interpretar o vazio semântico do tipo penal em relação à inexistência de parâmetro temporal para se deflagrar o ilícito, tendo em vista que surge como obstáculo à interpretação no direito penal o princípio da legalidade, que se posiciona como irradiação normativa contida no conceito tipo e tipicidade. Afinal, em matéria penal, o tipo é corolário do princípio da legalidade, por defluência lógica e, com isso, submetido às limitações de criação de tipos penais por hermenêutica.
O tipo penal contido no art. 168 não descreve quando seria o momento tido como razoável de fixar um limite para entrega ou devolução do que estaria na posse do agente. E não cabe ao intérprete – sob pena de se fazer um legislador negativo usurpador de especialização de poder – e arbitrário – designar ou depreender qual seria o lapso temporal para se firmar o propósito de não devolver a coisa.
Daí a consumação do crime se dar ante a negativa de restituição, acrescida à intenção de “ter a coisa para si”. Isso porque, ainda que se admita, por absurdo, uma pretensão condenatória vazia quanto à demonstração do estado anímico, essa não pode apenas se vincular à precária narrativa de emaranhados comportamentais, sem que sejam, NO MÍNIMO, apontados comportamentos especificados em termos de demonstração indiciária de ânimo, e não o mero apontar AUTÔMATO de CAUSAÇÃO DE ATOS.
É corriqueiro em minha experiência ler sentenças calcadas em um nó de contextos de causações que não acenam para o animus, ao mesmo tempo em que cospem, agridem, violentam e soterram o finalismo, esse pobre que aparentemente está caminhando mesmo para a sepultura, tamanha a ignorância dos operadores do direito em não saberem o que é um "estado mental". Sugiro uma boa leitura de obras no Budismo ou na neurociência, hahahaha.
E o mais interessante em tudo isso diz respeito a como a decisão se constrói: à fórceps, num parto anal à vácuo (ui! Inventei agora), num arremedo de ctrl c + crtl v que faz um chato, enfadonho e inútil “passeio jurisprudencial” que nos faz desistir até mesmo de apelar, tamanho o cansaço na leitura, quase sempre, no caso do art. 168, confundindo-se “retenção” como ato mecânico-causal, e o animus rem sibi habendi, pretendendo punir sob a égide de trazer para o comportamento da retenção a inserção do elemento volitivo de “ter a coisa para si e não restaurá-la”. Sinceramente? Eu não sabia que nosso português era tão rico de sinonimias...
Existe um profundo e grave equívoco, pois para deflagração do tipo não basta apenas a “simples negativa de retenção”, mas, no caso em tela, o animus rem sibi habendi, que é reconhecido mansamente na jurisprudência do STJ. É, tive que citar o STJ da vida, pois, sabem como é, minha verborreia lá em cima não tem o pedigree do tribunal... Mas, ainda que eu seja um cãozinho maroto, também posso latir. Por isso estou latindo agora em relação ao art. 168: au, au, au.
Parece que todo mundo está na gelatina cor-de-rosa da Matrix, reproduzindo, como vespeiro, um bando de abobrinha, adotando um mero critério causal mecanicista, gravado no ato em si – “não repassar, reter etc.” – como se este, isoladamente, fosse condição necessária e suficiente para a deflagração do ilícito.
Convenhamos... atraso na devolução é desídia, desleixo, mas não má-fé configurada como crime, porque este – crime de apropriação indébita - não se deflagra pela não devolução, mas pela demonstração INEQUÍVOCA de se assenhorear e inverter o domínio irrestrito da titularidade do bem jurídico (RT 624/315). Enveredar pela seara da punição é, grosso modo, condenar fatos, quando o direito penal finalista e democrático condena condutas. Pelo menos é nisso em que acredito...ainda! Mas, de repente, estou mudando tanto que, talvez, quem sabe, amanhã já pense diferente.
O que não dá para engolir é a condenação foi que se baseia em mero DADO OBJETIVO sem que a delimitação da CONDUTA imputada em relação ao estado de alma do cidadão retentor. Mas acho melhor fazer meu tomate seco, ler os livros da tese e ver estrelas saboreando amoras...
Esse é um espaço diferenciado, surgido na inquietude da eterna sala de aula do Direito experienciado - e não apenas especulado - a partir de uma perspectiva caótica, holística, questionadora, paradoxalmente mutante e quântica! Bem-vindas todas as pessoas que desejam deixar um pedaço de si para o mundo e, ao mesmo tempo, usufruir do que a ciranda jurídica pode COMPARTILHAR!
segunda-feira, 29 de novembro de 2010
Quando reter não é inverter a posse OU reflexões sobre a superficialidade analítica no crime de apropriação indébita...
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Um comentário:
Muito bom o texto! Porém, por mais que pretendamos negar, a norma que vive é a interpretada. Lamentavelmente, não se faz "ius prudentia", eis que são poucos os "homens prudentes" existentes nos tribunais, o que torna difícil a formação de um "Direito de prudência".
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