segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Quando reter não é inverter a posse OU reflexões sobre a superficialidade analítica no crime de apropriação indébita...

Diante de tanta asneira que tenho lido por aí, fruto de um automatismo ímpar com que, por esteira produtiva industrial se fabricam condenações, tirei do baú uma pérola aqui, a módica compreensão do tipo penal na apropriação indébita...

O art. 168 é bem claro: “Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção (...)”. Diante da redação, pode-se observar que o tipo penal não descreve lapso temporal para demarcação do elemento subjetivo do tipo, deixando para o intérprete – com as ressalvas que a legalidade traz – a tarefa de depreender a situação consumativa do delito.

Penso com meus botões que é na análise do conteúdo da “apropriação”, e não no tempo que leva para se firmar a devolução, que reside o ilícito, pois a tradução de "apropriar" como tornar próprio é bem razoável. Qualquer raciocínio fora disso seria, para mim, uma legiferância além da atividade hermenêutica do magistrado ou da magistrada, dissociando-se do estado democrático de regras de imputação lastreadas na legalidade.

Não sei se cabe ao órgão judicante interpretar o vazio semântico do tipo penal em relação à inexistência de parâmetro temporal para se deflagrar o ilícito, tendo em vista que surge como obstáculo à interpretação no direito penal o princípio da legalidade, que se posiciona como irradiação normativa contida no conceito tipo e tipicidade. Afinal, em matéria penal, o tipo é corolário do princípio da legalidade, por defluência lógica e, com isso, submetido às limitações de criação de tipos penais por hermenêutica.

O tipo penal contido no art. 168 não descreve quando seria o momento tido como razoável de fixar um limite para entrega ou devolução do que estaria na posse do agente. E não cabe ao intérprete – sob pena de se fazer um legislador negativo usurpador de especialização de poder – e arbitrário – designar ou depreender qual seria o lapso temporal para se firmar o propósito de não devolver a coisa.

Daí a consumação do crime se dar ante a negativa de restituição, acrescida à intenção de “ter a coisa para si”. Isso porque, ainda que se admita, por absurdo, uma pretensão condenatória vazia quanto à demonstração do estado anímico, essa não pode apenas se vincular à precária narrativa de emaranhados comportamentais, sem que sejam, NO MÍNIMO, apontados comportamentos especificados em termos de demonstração indiciária de ânimo, e não o mero apontar AUTÔMATO de CAUSAÇÃO DE ATOS.

É corriqueiro em minha experiência ler sentenças calcadas em um nó de contextos de causações que não acenam para o animus, ao mesmo tempo em que cospem, agridem, violentam e soterram o finalismo, esse pobre que aparentemente está caminhando mesmo para a sepultura, tamanha a ignorância dos operadores do direito em não saberem o que é um "estado mental". Sugiro uma boa leitura de obras no Budismo ou na neurociência, hahahaha.

E o mais interessante em tudo isso diz respeito a como a decisão se constrói: à fórceps, num parto anal à vácuo (ui! Inventei agora), num arremedo de ctrl c + crtl v que faz um chato, enfadonho e inútil “passeio jurisprudencial” que nos faz desistir até mesmo de apelar, tamanho o cansaço na leitura, quase sempre, no caso do art. 168, confundindo-se “retenção” como ato mecânico-causal, e o animus rem sibi habendi, pretendendo punir sob a égide de trazer para o comportamento da retenção a inserção do elemento volitivo de “ter a coisa para si e não restaurá-la”. Sinceramente? Eu não sabia que nosso português era tão rico de sinonimias...

Existe um profundo e grave equívoco, pois para deflagração do tipo não basta apenas a “simples negativa de retenção”, mas, no caso em tela, o animus rem sibi habendi, que é reconhecido mansamente na jurisprudência do STJ. É, tive que citar o STJ da vida, pois, sabem como é, minha verborreia lá em cima não tem o pedigree do tribunal... Mas, ainda que eu seja um cãozinho maroto, também posso latir. Por isso estou latindo agora em relação ao art. 168: au, au, au.

Parece que todo mundo está na gelatina cor-de-rosa da Matrix, reproduzindo, como vespeiro, um bando de abobrinha, adotando um mero critério causal mecanicista, gravado no ato em si – “não repassar, reter etc.” – como se este, isoladamente, fosse condição necessária e suficiente para a deflagração do ilícito.

Convenhamos... atraso na devolução é desídia, desleixo, mas não má-fé configurada como crime, porque este – crime de apropriação indébita - não se deflagra pela não devolução, mas pela demonstração INEQUÍVOCA de se assenhorear e inverter o domínio irrestrito da titularidade do bem jurídico (RT 624/315). Enveredar pela seara da punição é, grosso modo, condenar fatos, quando o direito penal finalista e democrático condena condutas. Pelo menos é nisso em que acredito...ainda! Mas, de repente, estou mudando tanto que, talvez, quem sabe, amanhã já pense diferente.

O que não dá para engolir é a condenação foi que se baseia em mero DADO OBJETIVO sem que a delimitação da CONDUTA imputada em relação ao estado de alma do cidadão retentor. Mas acho melhor fazer meu tomate seco, ler os livros da tese e ver estrelas saboreando amoras...

Um comentário:

Sidio Rosa de Mesquita Júnior disse...

Muito bom o texto! Porém, por mais que pretendamos negar, a norma que vive é a interpretada. Lamentavelmente, não se faz "ius prudentia", eis que são poucos os "homens prudentes" existentes nos tribunais, o que torna difícil a formação de um "Direito de prudência".