segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O grande drama da verdade: real, formal, processual e...SURREAL!

Ó, Themis, quanta caricatura pode residir no hercúleo esforço da defesa?

Na ilusão de objetividade do testemunho – levantada por Aury Lopes (2008. P. 608) – seguimos, desprestigiando a interioridade neuropsíquica, porque, afinal, somos juristas, não é mesmo?

O mundo contido no universo da mente e da psique não é jurídico e, não se processa apenas no que se deseja enxergar, mas como se deseja ver...

Mas, não sendo o “fato” – bem como seu recorte, aquele que vai para os autos - tangido pelo toque de ouro de Midas, não se torna jurídico e não faz parte do processo. A visão do todo, então, passa a ser precariamente representada por um enunciado deôntico pobre, onde o crime é, nada mais, nada menos, do que um retrato parcial e fragmentado de um mundo muito maior do que a dimensão unipessoal de cada um de nós. Que batalha quixotesca já perdida!

Daí, a rigor, não queremos ouvir – e, mais do que isso, ESCUTAR, que é bem diferente, pois engloba o significado que se dá às palavras - o que o acusado fala no processo... mais do que isso, não nos importamos em entrar na compreensão do sentido que ele - somente ele - atribui ao que aconteceu, pois, senhoras e senhores da razão iluminada, produzimos, sim, nós, a NOSSA curial verdade... Afinal, em nossos escritórios e gabinetes já passaram tantos e tantos acusados...

Faltam-nos percepção e sensibilidade jurídica para admitir no processo penal que nós carecemos do que Merleau-Ponty chama de “condições de ver o mundo”, bem como de aflorar a verdade do que “representamos do mundo”.

O direito (sim, escrito com letra maiúscula pela compreensão de não ser – ou nunca ter sido – ciência) formata a vida – uma vida que ebule, pulsa e se dimensiona, em muitos momentos, na singeleza da “arbitrariedade dos fatos culturais”, trazendo a necessidade de desnaturalização do que tomado como modelo e verdade, como bem aponta Roberto Kant de Lima (2002, p.03).

A ideia de “objetividade” ou “clareza” é de um dualismo cartesiano tosco, que finda por segregar o mundo – e a nós, reles pedaços de poeira cósmica e carbono compartimentado – em que nos posicionamos a valorar o outro sem a percepção do sentido que esse outro nos oferece como sua versão do relato.

Segundo Laplantine (2003, p. 169 e SS.): “uma testemunha, quando pretende uma neutralidade absoluta, pensa ter recolhido fatos objetivos, elimina dos resultados de sua pesquisa tudo o que contribui para sua realização e apaga cuidadosamente as marcas de sua implicação pessoal no objeto de seu estudo, é que ele corre o maior risco de afastar-se do tipo de objetividade (necessariamente aproximada) e o modo de conhecimento específico de sua disciplina”.

Com esse afã de provar e recriar o que não existe no mundo vai a advertência de Aury: “uma boa mentira, repetida centenas de vezes, acaba se tornando uma verdade”, chamando a atenção para a postura de alguns órgãos estatais, numa luta para montar e juntar peças que, a rigor, não se encaixam, colocando os acusados, quase sempre, na contramão da observância de seus direitos enquanto cidadãos.

O primeiro desses direitos é o de ser interpretado segundo seu olhar dentro da dinâmica dos fatos, e não como um objeto de laboratório, que recebe o crivo valorativo dos “cientistas” em seu arremedo de razão. Que razão?

Diante disso, a construção da verdade, segundo Aury, dentro do processo, estaria inserida, desde seu nascedouro, num “labirinto de subjetividade e contaminações, que não permite atribuir ao processo a função de, através da sentença, revelar a verdade” (p. 528).

Não se pode, assim, desconsiderar, para fins de produção de UMA verdade - a tal processual - UM “modelo” do que poderia ter sido UMA dinâmica de verdade sem captar sentidos de todos e todas que se posicionam nos lugares de fala, implicados ou não, por vínculos de afetividade ou anonimato.

Ai, ai...quanta mesmice planificadora da alma a sensibilidade pode suportar?

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