quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Utopias são necessárias para alimentar projetos

Um dia desses fui provocada - no sentido acadêmico e deliciosamente fecundo da palavra - em sala de aula a respeito das imersões no estudo de um "direito constitucional pós-moderno" que prestigie pluralidade, diversidade e respeito ao dissenso, pois, segundo a confrontação motivada pelo debate com a turma, seria necessário ingressar num "básico" dentro da matéria para, daí, galgar maiores voos.

Saí pensativa de lá, refletindo, por átimos de segundo, qual seria o papel a ser desempenhado por um educador(a) no direito em face de um "monobloco" de conhecimento que, a cada dia, faz-se mais míope e cadavérico, insensível para as demandas sociais...

Com isso, bastou lembrar a turma que o direito civil que se estuda, quase todo ele, volta-se para a tutela da propriedade, no sentido mais lockeniano e liberal da palavra. Ou, então, para um direito penal que se ocupa da tutela patrimonialista, justificando, por exemplo, o homicídio em face de ataque aos bens jurídicos (ou, o "atira depois pergunta", "bandido bom é bandido morto" e demais clichês usados pelo sensacionalismo midiático).

Por fim, bastou lembrar a todos e todas que pouco(a)s reverterão para a sociedade o conhecimento, já alguns sonham com a "honrada" advocacia para o grande capital, deixando de lado a advocacia de militância de exclusão social ou de demandas do terceiro setor, balizadas nos enunciados de solidariedade e da fraternidade. Para ONGs, OSCIPs, Institutos, por exemplo.

Será que a superfície a-crítica é o bastante? Dialogando com Lyra Filho, entendo que se trata de um sofisma bem montado esse negócio de "aprender o básico para, depois, aprofundar na crítica", pois, dentro das opções de ensino conservador (o direito se enquadra bem aqui ainda: dualista, extirpador, catalogador e lombrosiano), o básico seria o bastante para engessamento da potencialidade crítica do futuro profissional, o bastante para transformá-lo em mais uma peça de reprodução de paradigmas tradicionalistas.

O estilo "professora catedráulica" (citando Lyra Filho) não satisfaz, enfim, a perspectiva de emancipação do direito em torno de novas demandas. É necessário conhecer e criticar, e não supostamente "conhecer PARA criticar", porque o conhecimento é um movimento de descontinuidade na construção e descontrução de modelos, ideias, paradigmas e retóricas. A crítica, segundo Boaventura de Sousa Santos, faz parte do processo de conhecimento, onde este é, ao mesmo tempo, autoconhecimento. Eis o sentido de pós-modernidade no horizonte do direito...

Grosso modo, segundo nosso debate, o mergulho no "bê-a-bá" da dogmática constitucional não traria espaço para o "aprofundamento"em questões, pois a preocupação estaria focada na apreensão (leiam-se "absorção de conceitos") de categorias, alimentando a mesmice da velha indústria dos manuais técnicos de ensino, que são espelho de um direito conservador, patriarcal, patrimonialista e que ainda não traz para o dia-a-dia as maiores polêmicas que estão sendo travadas hoje num mundo globalizado.

Penso, contudo, que o direito (com letra minúscula por não ser ciência, mas teknè)
seja um edifício bem mais complexo do que as parcas lições contidas em manuais, que são feitos a rodos por esse Brasil afora, sempre a pretexto de serem assépticos, a-críticos, a-alguma-coisa-menos-conscientes. Temos, de fato, inúmeros eruditos no campo do direito, sempre munidos com teorias e mais teorias sobre poder constituinte, eficácia plena, contida ou limitada etc.

Existem inúmeros...

Daí, pondero: e o que se esconde em nível simbólico, no campo do invisível, mas se colocando com a matiz ideológica de um direito que se escoimou em hierarquizar direitos em gerações? Mais até, para que serve o escalonamento de direitos em suceder geracional?

Basta observar a primazia que damos ao nosso umbigo, prestigiando - sob a desculpa dos auspícios da Revolução Francesa - direitos de "primeira geração", balizados no EU e na "liberdade", tendo, assim, muita dificuldade em transcender o modelo liberal- que está no aporte econômico e jurídico - para, por exemplo, lidar com questões de toque, como relativização do direito à vida (eutanásia, aborto, células-tronco) que tragam um sentido mais amplo do que a preservação egoica de um enunciado que sempre se prestou a legitimar inquidades sociais.

Seria necessário, pois, subverter, mais uma vez, o ensino, para que a técnica ceda espaço - ou, como paradigma, coexista em espaço - para a reflexão pontual em torno de uma re-significação de toda essa matiz excludente, que alijou do acesso ao direito - e à justiça - os sujeitos e atores que não se encontrassem no modelo dominante...simples.

E não se trata de devaneio. Devaneio é a negligência em relação ao olhar para o Outro, materializada no etnocentrismo de se achar que o valor auto-referencial é o epicentro de todo o mundo.

Quando Protágoras falava que "o homem é a medida de todas as coisas" , não se tratava da alocação no espaço abstrato universalista (isso foi obra dos filósofos, Protágoras, como sabemos, era sofista), mas, antes, a ocupação de um locus concreto, relacional, onde o ser humano, tomado em sua especificidade, pudesse ser a medida para o confronto de ideias, e não a eliminação delas.

Devaneio, portanto, é o que se pode ver no ensino que se descompromete com a militância que está contida na própria etmologia da palavra advogado(a). Ad vocare... Chamar ao lado de alguém. Colocar-se ao lado de quem não possui voz para clamar pelo hipossuficiente ou fragilidade, num compromisso com a humildade, o respeito ao próximo, a busca da fraternidade, da solidariedade, da construção em comum de um futuro melhor.

O que é isso, além de um clichê a povoar, talvez, uma epifania?

O advogado é, por excelência, o profissional que se despoja de seu interesse para salvaguardar o destino daquele que está assistindo. Ofício que, de tão nobre, encontra-se no art. 133 da Constituição Federal.

Trata-se do único munus que é erigido à composição da Magna Carta, como atividade indispensável ao cumprimento dos ditames de Justiça.

Eis o sacerdócio, apontando para a necessidade de desvinculação anímica de um materialismo que expõe, crua e friamente, a vaidade humana perdida num campo nebuloso de valores esgarçados.

Talvez, quem sabe, o sacro + ofício conclame todos aos céus para a prostração devocional, e que, a cada dia, o aprendiz possa fazer romper em si a castidade de propósitos, para que a sabedoria possa escoar até o coração transmutando, por fim, essa máquina individualista em um ser que saiba, ao menos, o significado de compartilhar. Daí a transmutação da individualidade para o predomínio do solidário e supra-individual...

Mantenho meu idealismo em acreditar que a mediocridade da iconoclastia idólatra cederá, enfim, algum dia, em prol da leveza no aprender, nas aulas despojadas do suplício e regadas pela perda do medo de enfrentamento da vida. Eis a advertência de Virginia Woolf, ao afirmar que não se pode ter paz evitando a vida, qualquer que seja ela...

Isso me lembra o tempo como estagiária na Assistência Judiciária no Paranoá, um trabalho voluntário que me mostrou o fel da advocacia “sem glórias” para os que desejam apenas o estrelado: não havia dinheiro e, com isso, tudo que ali era produzido contava apenas com todo o amor que pode guiar uma pessoa na busca pela compaixão em relação ao semelhante.

Foram tantas escovas e pastas dentais trazidas para os “clientes” poderem fazer sua higiene! Quantas vezes dávamos carona ou ajudávamos o pessoal a voltar para casa. Quantos cafés tomei nas residências dos clientes... Ah, grandes lições! Lições de humildade, parcimônia, de subserviência, nas latrinas limpadas no Paranoá! Sim, claro, limpar o vaso era mesmo um serviço prestado na Defensoria, pois era necessário para depurar a alma das mazelas dos egos acadêmicos saltitantes, afoitos e incongruentes!

Recuso-me a ceder, mas entendo que a era de inocência alcançou o crepúsculo, levando consigo o fidedigno retrato de uma ilusão que cede espaço à inquestionável realidade: não se pode condicionar a livre alma docente num arremedo de ensino jurídico que se orienta apenas na pauta neoliberal de escatologia mercadológica.

O preço, para isso, é o agrilhoamento do espírito na caverna platônica da mais pura ignorância, que mata, fere e dilacera, aos poucos, a sensibilidade dos que têm calos. Calos e sentimentos, sangue e veias no lugar de fios e chips. Utópica? Ao contrário, pé no chão demais. Sonha quem acha que os manuais jurídicos dão conta do recado...

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