domingo, 28 de agosto de 2011

Notas sobre o funcionalismo penal na era da globalização...

Partindo-se da premissa que o direito penal constitui um arcabouço técnico operacional de normas conectivas do fato definido pelo legislador como crime à resposta estatal manifestada na pena, não seria equivocado afirmar estar a base de operatividade jurídico-normativa indo-européia, de tradição romano-germânica, fortemente arraigada em premissas lógico-abstratas e formais que, por intermédio de silogismos, ligam ou conectam uma conduta previamente definida como típica, valorada em ilícita e culpável, às cominações legais descritas como pena.

Coerente com a sedimentação conceitual do direito penal como dogma estruturante de todo sistema jurídico-repressivo, cumpre postular, no âmbito dessa lógica de pensamento, a função cometida à dogmática jurídico-penal, por meio da indagação acerca dos fins a que se destina o direito penal, pois, ao se indagar a finalidade, exsurgirá, como conseqüência, a orientação político-criminal adotada pelo intérprete magistrado, para a aplicação da sanção.

Para Toledo (1999, p. 13-14), a “tarefa imediata do direito penal é, portanto, de natureza eminentemente jurídica, e como tal, resume-se à proteção de bens jurídicos ”.

Bitencourt (1999, p. 34), por seu turno, percebe no direito penal a função reguladora dos indivíduos em sociedade, bem com as relações entre aqueles mesmos, reciprocamente considerados.

Zaffaroni (2002, p. 97-98), inclina-se pelo critério da segurança jurídica, aproximando-a da percepção de defesa social, entendida esta pelo doutrinador argentino como modus operandi de prevenção de condutas não desejáveis defesa social esta partilhada igualmente por Fragoso enquanto finalidade do direito penal, como aponta: "A função básica do Direito Penal é a de defesa social. Ela se realiza através da chamada tutela jurídica: mecanismo com o qual se ameaça com uma sanção jurídica (no caso, a penal criminal) a transgressão de um preceito, formulado para evitar dano ou perigo a um valor da vida social (bem jurídico). Procura-se assim uma defesa que opera através da ameaça penal a todos os destinatários da norma, bem como pela efetiva aplicação da pena ao transgressor e por sua execução" (Fragoso, 1994, p. 04).

No que diz respeito a tal complexidade, mister contextualizar a análise das funções do direito penal a partir da temática de subsunção a um panorama de mudança paradigmática suscitada pelo fenômeno da globalização, que trouxe uma mudança vetorial no comportamento delituoso, bem como na resposta estatal ao crime, pois, se outrora, o direito penal era, sobremaneira, apanágio de um sistema de liberdade e garantia à punição pela responsabilização subjetiva, hoje se encontra voltado à satisfação repressiva, que toma por base o afrouxamento das regras de imputação, expurgável ante a necessidade de salvaguarda do direito de liberdade duramente conquistado nas revoluções iluministas.

Como consectário direto, Bicudo sustenta que o fenômeno da globalização econômica é precursor de um pensamento funcionalista no primado intervencionista do direito penal, antagônico à sua função outrora garantista, resultado de uma globalização hegemônica de moldes estadunidenses e japoneses, mormente no que diz respeito à orientação do direito na atribuição de concretude às metas definidas por um modelo programático de multiplicidade de regras e variabilidade de fontes (Bicudo, 1998, p. 98) .

O direito penal, assim, findaria por se identificar com as projeções que lhes são esquadrinhadas pela com a política criminal, inserido aquele primeiro como subsistema social, em que “o conteúdo das categorias do sistema dogmático deve determinar-se em função do que resulte mais adequado ao sistema social em geral ou a um subsistema social em particular, tal qual o subsistema do direito penal. Funcional, neste sentido, é tudo o que se requer para a manutenção do sistema” (Bicudo, 1998, p. 104).

O direito penal atravessa um momento contraditório, pois, se de um lado a desregulamentação, descodificação e a desestatização acompanham um movimento globalizante, de outro, há um nítido intervencionismo estatal, consubstanciado na ampliação da repressão ao crime, quer seja construindo novos tipos penais, quer incriminando atividades em todos os ramos sociais, numa batalhada deflagrada contra o crime, que leva à relativização dos princípios da legalidade e tipicidade, bem como da redução paulatina do sistema de proteção dos direitos fundamentais do indivíduo (Silva, 1998, p. 85) .

Sintetiza Silva alguns consectários de uma globalização hegemônica experimentados pelo direito penal brasileiro, ventilada a partir da predominância de um pensamento fortemente repressivo, característica predominante do denominado Movimento de Lei e de Ordem, a exemplo da promulgação de excessivas leis extravagantes, com a criação de novos tipos penais; sentenças penais embasadas em jurisprudências estanques da realidade, compartimentadas de forma fechada, preservando e reproduzindo uma atitude dogmática, estimulando a preferência pela súmula vinculante, em uma reprodução do precedente judicial estadunidense; literatura penal representada pela edição de manuais práticos de direito penal, sem inovações substanciais, fulcrados nos ensinamentos meramente dogmáticos nos moldes do pensamento clássico da Escola Positiva; flexibilização ou relativização de garantias no campo penal; edição de leis mais severas e gravosas, resquícios do Movimento da Lei e da Ordem, que dramatiza a violência e incute a sensação de insegurança e impunidade na opinião pública; (Silva, 1998, p. 93).

É esse o grande Leviatã do séc. XXI, que irradia suas premissas, de maneira quase que imperceptível, nos raciocínios técnico-jurídicos que não se permitem a crítica.

Qual é marco de sustentação dessa lógica de lei e de ordem? Toda a severidade por via da lei penal. O direito penal como sendo tutelador e veículo repressivo usado em primeira instância e primeiro grau para reprimenda pelo primado da intimidação e da ferocidade.

O direito penal já está, segundo o autor, prejudicado quanto à identificação causal, seja no âmbito da expressão de racionalidade kantiana ou hegeliana, como também no pensamento sistêmico, convertido em uma lógica de custos e benefícios da conduta humana refletida: "
Cuando se confunde el deber ser com el ser, el idealismo racionalista se desvirtúa al grado de irracionalismo radical, pues no hay peor irracionalismo que dar por hecho la racionalidad humana, com su conseguinte desbaratamiento de cualquier estímulo para luchar por ella, toda vez que no se lucha por alcanzar um hecho natural" (Zaffaroni, 2000, p. 147-148) - encontrando-se a dogmática penal e as instâncias formais de controle social legitimados, dentro desse contexto, a resolver todos os problemas e casos que venham a engrossar suas fileiras, motivando aquilo que Zaffaroni (2000, p. 157) entende como um “sistema cerrado e robótico” do direito penal.

Caracterizada por mensagens virtuais de espetáculo legiferante, essa percepção poderia acarretar o aviltamento do sistema de garantias individuais, sob a escusa de atribuir funcionalidade à mitigação dos direitos processuais, em termos de resultado no controle da criminalidade. Esse modelo teórico ao qual a doutrina atribui o manto de racionalidade passaria a representar, assim, um parâmetro inspirador de gerações futuras, que irão reproduzir essa operatividade mecânica.

Tais considerações são pertinentes à análise da mudança paradigmática da função de tutela de bens jurídicos para uma finalidade de controle social punitivo, ferozmente repressivo, de expurgação do indivíduo pela mera conjectura causal não comprovada, de natureza funcionalista, a partir do denominado direito penal dos não-alinhados, desenvolvido progressivamente pela doutrina alemã no fim do séc. XX.

Em uma sociedade de massas, não haveria espaço para a percepção integrada de individualidade, mas, antes, para a visualização dos papéis desempenhados pelos indivíduos, quanto ao dever de compromisso com uma ordem caracterizada aprioristicamente pela fidelidade ao código operacional representado pelo direito penal.

Segundo Jakobs: "grau de fidelidade ao direito não é determinado segundo o estado psíquico do sujeito, mas é estabelecido como parâmetro objetivo por meio de uma pretensão dirigida a cada cidadão. Mas, exatamente, em razão desta pretensão se trata de um cidadão, uma pessoa, e não de um indivíduo sem amarras. Quem é culpável não satisfaz a medida aplicável aos cidadãos, é dizer, tem um déficit de fidelidade ao direito"(2003, p. 38).

Ante essa assertiva de identificação funcional de missões cometidas aos membros do grupo, a finalidade do direito penal necessariamente estaria voltada para a garantia de manutenção do código comunicacional, por meio da observância da norma contida no preceito legal.

Daí necessariamente advir, segundo Jakobs, a destinação reativa do direito em face de um reconhecido adversário, qual seja, aquele que não observa a destinação de seu papel em coletividade, e, insistindo, ameaça à coesão interna.

Neste sentido, o primeiro ajuste interpretativo sobre a proposta funcionalista de Jakobs é a especificidade quanto aos crimes identificados como preponderantes em um panorama de globalização. O rol acima descrito bem ilustra a realidade de anonímia nos contatos pessoais, em que se sobreleva a necessidade de substituir a individualização da conduta – eixo central da teoria finalista – para a punição pelo estabelecimento do chamado risco proibido, marcado pela exacerbação da conduta tida como ponderável em termos de cumprimento do papel individual.

O não-alinhado é um indivíduo que abandonou o direito , de maneira não meramente incidental, atacando imediatamente o mínimo de segurança cognitiva do comportamento pessoal e manifestando sua infidelidade ao direito por meio da conduta, atingindo ou colocando em risco, mediatamente, a segurança dos bens jurídicos.

A teoria funcionalista de Jakobs finda por produzir um fenômeno atual, qual seja, a concomitância de expressões normativas, ora flexíveis, ora recrudescedoras, em uma mesma realidade.

É esse, aliás, entendimento de Jésus–María Silva Sánchez em A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industrais (2002), ao desenvolver o conceito de direito penal de duas velocidades, caracterizado pela coexistência entre um modelo de direito penal “amplo e flexível” (p. 145), ao lado de um direito penal mínimo e rígido, reconhecendo, outrossim, um espaço de ampliação do direito penal, que, ao seu juízo, resultaria em um outro fenômeno, a saber, a supressão progressiva do primado garantista do direito penal, para a adoção de uma proposta funcional de neutralização do inimigo.

Um comentário:

Sidio Rosa de Mesquita Júnior disse...

Texto excelente. Jakobs tenta dizer que a teoria de sistemas não anula o homem. Porém, estou mais para ver teorias não abandonam o homem.