domingo, 1 de abril de 2012

Enfim, sobre a necessidade do "punir" e a "herança" do caldeirão de práticas punitivas

Quando falamos sobre direito penal e teoria da pena, logo vem à mente a busca da "justificativa" ou "necessidade" de se impingir a quem se considera infrator uma pena ou sanção penal. Sempre acho interessante voltar à etimologia da palavra pena, porque o resgate histórico sempre dá um norte para podermos entender nossa verve punitiva.

Seja qual for a etimologia da palavra pena, seu nascedouro sempre esteve relacionado ao sofrimento, à expiação e, sobretudo, à dor. Do latim importamos a compreensão de pena a partir do radical poena, que designa sofrimento. Dos gregos temos o radical ponos, designando dor. Do sânscrito importamos a noção de punya, purificação).

A partir de tais radicais podemos inferir que a ideia original de pena está intrinsecamente vinculada à expiação, ao suplício, à dor e à violência, o que ficou bem mais evidente a partir da forte influência do direito canônico (de matiz judaico-cristã a expressar, por exemplo, a noção de culpabilidade) e demais raízes de natureza ético-religiosa.

Independentemente dos antepassados semânticos apresentados, o ponto de partida para o entendimento da pena como veículo estatal e repressivo de imposição de dor situa-se no paulatino percurso histórico das sociedades tribais indo-européias de tradição romano-germânica (10.000 a.C. – 4.000 a.C.).

A pena, como resultado de uma miscigenação entre direito grego, romano, canônico e germânico, gravita entre uma forte tradição moral, religiosa, consuetudinária, oralmente transmitida e castigo, expiação como reação punitiva de caráter religioso, sacralizado.

O contexto das sociedades tribais revela, em diversos momentos históricos, a tônica da resposta coletiva calcada, ora na vingança perpetrada pelo ofendido ou por sua família, como reação direta dos membros do grupo e fortalecedora dos laços de coesão entre os indivíduos, ora na vingança divina, por intermédio da qual se aplacava a vontade contrariada dos deuses, posteriormente transferida para o eixo de poder regulatório do Estado, ante o desenvolvimento pelo qual as sociedades vão atingindo outras formas de organização (FRAGOSO, 1994, p. 30).

A partir da interlocução com tais realidades, podemos compreender a pena como instrumento estatal e repressivo de exercício de controle social, no intuito de produzir uma gestão regulatória de condutas a partir da imposição de uma série de restrições de liberdade, a partir da identificação, por parte do órgão judicante (juiz) da deflagração de um crime.

Para Nietzsche, a pena relaciona-se a uma compensação devida em face do prejuízo com arcado pela vítima, numa espécie de equalização entre dano e dor sentida, que está impingida ao infrator. Nunca é demais lembrar que, para o filósofo, punir também é se deleitar diante do prazer que o sofrimento expressa aos membros da sociedade, como se observa a partir do fragmento de Genealogia da Moral:

"(...)Ver-sofrer faz bem, fazer-sofrer mais bem ainda – eis uma frase dura, mas um velho e sólido axioma, humano, demasiado humano, que talvez até os símios subscrevessem: conta-se que na invenção de crueldades bizarras eles já anunciam e como que "preludiam" o homem. Sem crueldade não há festa: é o que ensina a mais antiga e mais longa história do homem – e no castigo também há muito de festivo! (Nietzsche, GM, II, § 6).”

Em Foucault temos a análise dos sistemas punitivos - sobretudo medievais - construídos em torno da ideia de reafirmação do poder, muito mais do que da busca de um ideal de justiça. O conteúdo da pena, para o francês, procura reacender, no corpo do condenado marcado pelo sofrimento da tortura explícita e aplicada em praça pública, a “consciência abstrata” do indivíduo, lembrando-o de seu status como súdito e, portanto, como EXTENSÃO ao “corpo do rei”.

Qual a finalidade da pena, então, para Foucault? Reativar o poder monárquico, por meio da adaptação de instrumentos de vigilância do comportamento e otimizando, assim, a aplicação da pena e seus efeitos enunciados de justiça e equidade que, dentro da temática de “gratificação-sanção”, hierarquiza os indivíduos como inseridos na categoria de “bons” e “maus”.

Outra lembrança que vale a pena servir de base como uma reflexão sobre os enunciados que sustentam a legitimidade do punir vem da sólida compreensão do criminólogo Alessandro Baratta no livro Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal Brasileiro, tecendo importantes considerações sobre a necessidade de se avaliar a real motivação da pena, a partir, claro, de um marco neomarxista.

Para o italiano, o crime é fruto de um processo contínuo de criminalização de comportamentos, levado a cabo por quem se habita no exercício do poder, não refletindo, necessariamente, o expediente de interesse geral que nutriu boa parte da literatura que até hoje sustenta a dogmática jurídico-penal.

Assim sendo, os interesses a serem tutelados pelo direito penal são aqueles relativos aos que detém o poder de dicção do processo de criminalização, e não os interesses comuns, acarretando uma característica essencialmente política ao crime e à pena, na medida em que exprime escolhas de mesma categoria levadas a cabo pelos detentores destes critérios de dicção.

A pena, dentro desse diapasão, exerce uma função de conservação e reprodução da realidade social estigmatizante, por intermédio da reiteração da utilização do caráter simbólico da pena, do cárcere, da disciplina exercitada, num microcosmo da estrutura capitalista (p. 166), a ponta de um sistema penal nitidamente burguês que se inicia na discriminação escolar e social.

Como Baratta chegou a tal conclusão?

Simples, analisando os processos históricos de desigual distribuição da criminalidade e da pena, observando que o status é distribuído segundo a categoria de interesses definida de acordo com interesses em expoência.

Além disso, desnudou o que era, até o século XIX, o dogma de construção da legitimidade de punir, bem como do próprio direito penal, a ideia de IGUALDADE FORMAL, que se antagoniza - e muito - à desigualdade substancial com que o direito penal e da pena tutelam determinados privilégios dos grupos dominantes.

Dessa forma, a pena, como veículo repressivo, findaria por viabilizar a imunização dos comportamento socialmente danosos em relação aos interesses tutelados, por meio da distribuição da pena entre a camada mais baixa da população, uma vez que direcionada a esta um status de exclusão do processo acumulatório. Isso explica bem porque temos uma "clientela" bem determinada no sistema prisional brasileiro, já que alguns grupos sociais se colocam imunes à aplicação da lei penal (como os que cometem crimes de colarinho branco, por exemplo).

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