quarta-feira, 30 de maio de 2012

C.S.I. à brasileira: Lei 12.654/12 em primeira reflexão

No dia 28 de maio de 2012 entrou em vigor a Lei 12.654, autorizando a coleta - para fins de catalogação e identificação criminal - de material genético, em cima da análise do ácido desoxirribonucleico (DNA).  

Segundo consta do novo art. 5o.-A, os dados deverão ser armazenados em um sistema de dados gerido pela unidade oficial de perícia criminal, o que nos faz inferir prima occuli, ser área de competência ora local, ora federal, dependendo da natureza intrínseca do crime supostamente perpetrado (se está sujeito à competência local ou federal). 

A lei tomou a cautela de trazer para o mesmo artigo acima - na figura do parágrafo primeiro - a restrição em relação aos dados, excluindo da publicização o que seria revelador de "traços somáticos ou comportamentais" para prestigiar apenas a determinação "genética de gênero". 

Ainda torna por legítima a adesão, por parte do Brasil, ao sistema internacional de proteção aos direitos humanos, ao explicitar, na parte final do mencionado parágrafo, a submissão do tema "às normas constitucionais e internacionais sobre direitos humanos, genoma humano e dados genéticos". 

Mais adiante - pois não me interessa dissecar os trechos que foram modificados na lei de identificação criminal - o art. 9o.-A da Lei 7.210/84 começou a ter a previsão obrigatória da identificação criminal para os condenados por crime praticado dolosamente, conquanto perpetrados com violência de natureza grave contra a pessoa, bem como por crimes definidos como hediondos. 

O tema é instigante e traz maior profundidade de reflexão, razão pela qual procuro, com esse simples excerto, lançar a discussão, mormente considerando que o procedimento adotado no Brasil não destoa do que é feito em outros sistemas judiciais e administrativos (de natureza policial e investigativa). 

Contextualizando o assunto ao "bom e velho" debate entre direitos individuais  (dentro os quais, o direito à inviolabilidade em sentido lato, bem como, em sede processual penal, do privilege against self incrimination ) e coletivos, outrora me posicionava - enquanto partidária de alguns posicionamentos sugestivos da Criminologia Crítica - contrária a toda e qualquer forma de ingerência estatal em sede de imersão em direitos individuais, principalmente os que se relacionam à coleta de material, invocando, para tanto, o postulado de dignidade da pessoa humana insculpido no art. 1o., III da CF/88. 

Sustentando meu anterior posicionamento, partia da concepção de desacerto dos instrumentos estatais que coajam o indivíduo à realização de exames - ou, no caso, à coleta de material - em face da vedação de auto-incriminação (self incrimination privilege), tema desenvolvido na 5a. Emenda Constitucional Estadunidense: 
No person shall be held to answer for a capital, or otherwise infamous crime, unless on a presentment or indictment of a Grand Jury, except in cases arising in the land or naval forces, or in the Militia, when in actual service in time of War or public danger; nor shall any person be subject for the same offense to be twice put in jeopardy of life or limb; nor shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself, nor be deprived of life, liberty, or property, without due process of law; nor shall private property be taken for public use, without just compensation.

A parte sublinhada me interessa aqui, em uma tradução livre: "nenhuma pessoa será compelida em qualquer que seja a causa criminal a ser testemunha contra si". Uma confusão feita aqui no meio acadêmico - e jurídico - brasileiro, é irradiar a compreensão da vedação ao self incrimination para a investigação policial, tomando como base os postulados da quinta emenda estadunidense, pois o sistema jurídico é completamente diferente do sistema jurídico brasileiro. 

Com efeito, a vedação acima descrita no sistema estadunidense limita-se ao procedimento judicial, porquanto, em matéria investigativa, ou seja, em termos de instrução policial (podemos chamar assim), a recusa de se submeter ao ofertamento de material pode acarretar a expedição de um mandado judicial (court warrant ou cort order) para a extração de material, sem que isso represente violação a direito fundamental, naquele país, tendo em vista a existência, em nível federalizado, de bancos de dados de identificação criminal. 

Isso porque, naquele país - podemos falar generalizadamente, à exceção do estado da Louisianna, o direito à informação em face de identificação criminal possui natureza preponderante - em termos de sopesamento de standarts constitucionais - se comparado à intangibilidade dos direitos individuais. 

Além disso, reside exatamente na necessidade de tutela dos direitos individuais (o direito à paz e, sobretudo, à segurança e defesa tem caráter individual, em um primeiro momento, para os estadunidenses) a prevalência de base de dados de informação, por mais que para nós, brasileiros, seja paradoxal. 

Explicando em linhas mais claras, o direito individual à segurança e, em decorrência dele - o acesso à informação - relativiza a necessidade de preservação do "anonimato" de identificação. Mas isso, repita-se, diz respeito à coleta de informações na fase policial, porquanto, em termos judiciais, mantém-se a vedação. 

Bom, a partir desta perspectiva de coleta de material probatório que, naquele país, é condição imprescindível para a elaboração do legal procedure, falemos sobre o perfilhamento brasileiro a uma "ordem jurídica internacional" que prestigia, cada vez mais, a mudança de paradigma de uma sociedade de identificação para uma sociedade de anonimato ou anonimia. 

Isto porque, são vários os doutrinadores (Régis Prado, Bitencourt, Gomes, Nucci) que têm entendido - ao meu ver, sem fundamento teórico sólido - que tais procedimentos perfilhariam o chamado "direito penal do inimigo", argumentando a violação, pura e simples, dos direitos fundamentais individuais, sem a devida contextualização. 

O primeiro problema de contextualizar a lei 12.654/12 no parâmetro reside na falta de embasamento teórico para se empreender a comparações entre o direito brasileiro ao direito alemão, baluarte de nascimento do mencionado tema (prefiro a alcunha direito penal do "não alinhado", porquanto entendo que a tradução feita por Caleghari ser mais própria, já que no funcionalismo alemão trabalha com a perspectiva de fidelização, confiança e, portanto, alinhamento). 

Mais do que isso, no caso da doutrina brasileira, o que acho mais grave é a apropriação - quando conveniente - de parte dos postulados do funcionalismo alemão mitigado de Claus Roxin, e repúdio ao que se toma como ortodoxo, no caso, do funcionalismo de Jakobs, sendo ambos originários da mesma compreensão subsistêmica de Luhman. 

O segundo problema em se alojar - pura e simplesmente - a lei 12.654  a um direito de inimigos, reside na incompreensão do sentido de tutela de individualidade, já que o sistema de identificação por DNA cumpre uma função que, em idos de incremento de métodos, é resultado direto do fluxo tecnológico nas sociedades pós-modernas, dentro das quais o boom populacional é marca maior, bem como a inexorável realidade de explosão radial de criminalidade. 

Assim, sem o aporte do que considero ingênuo na Criminologia Crítica (ou seja, o marco neo-marxista de equanimidade em um mundo de diferenças que são confundidas com desigualdades materiais), a existência de contingentes marca a especialização de métodos identificadores. 

Os baluartes do garantismo, por sua vez, irão contrapor aos meus argumentos a ideia de burla à CF/88, mas não me importo, porquanto reside exatamente no sopesamento entre os valores sociais-democratas da CF (e sua tutela em face do coletivo) e  valores liberais também lá presentes.

Esse será o eventual conflito a ser dirimido pelo Supremo Tribunal Federal quando for analisar eventual questionamento da lei em questão...até lá ficaremos na repetição incessante e infecunda a respeito da lei ser baluarte de consagração do direito de inimigos no Brasil.



3 comentários:

Camila Chagas Simões Delgado disse...

Salve, salve Alessandra!
Conversamos hoje ao final de uma defesa de monografia na UDF.
Te falei sobre minha dificuldade em tornar a escrita no meu blog algo rotineiro e flúidico...
Conto com sua ajuda, críticas e sugestões.
Quanto ao texto em tese, acho um assunto muito delicado, polêmico e muito interessante para um trabalho de monografia quem sabe...
Um grande abraço!
Camila.

Camila Chagas Simões Delgado disse...

Salve, salve Alessandra!
Conversamos hoje ao final de uma defesa de monografia na UDF.
Te falei sobre minha dificuldade em tornar a escrita no meu blog algo rotineiro e flúidico...
Conto com sua ajuda, críticas e sugestões.
Quanto ao texto em tese, acho um assunto muito delicado, polêmico e muito interessante para um trabalho de monografia quem sabe...
Um grande abraço!
Camila.

Anônimo disse...

Bom Dia Alessandra, primeiramente gostaria de parabenizar seu texto, muito bom mesmo. E pedir, por gentileza, indicações de livros acerca do tema, pois estou desenvolvendo minha monografia sobre identificação criminal pelo DNA, e infelizmente o material ainda é escasso. Desde já muito obrigada.

Att,

Marcela