quinta-feira, 10 de maio de 2012


Falar sobre estabelecimentos penais pressupõe um olhar crítico ao descumprimento as preceitos insculpidos como normas programáticas, bem como à diuturna violação dos direitos fundamentais daqueles que se sujeitam ao sistema de justiça criminal. 

A LEP dedica um título específico às regras de estruturação dos estabelecimentos penais (título IV, capítulos I a VII), utilizando, para tanto, a nomenclatura "estabelecimentos penais" no lugar de "estabelecimentos prisionais" ou ainda, "estabelecimentos prisionais". Acho relevante fazer as distinções, até mesmo porque a Lei 7.210/84 refere-se ao termo "estabelecimentos penais". Entende-se por estabelecimento penal - nos termos da LEP - a instituição onde será executada a constrição de liberdade, englobando, no caso da lei, o estabelecimento destinado à medida de segurança (para inimputável). 

Trata-se de uma interpretação meio "capenga" porque, a rigor, pena - e, portanto, estabelecimento penal - deveria ser um local destinado ao cumprimento de pena (que somente imputáveis podem cumprir, dada a capacidade de discernimento). Daí, grosso modo, estabelecimento prisional ou penitenciário seria uma terminologia mais específica, referindo-se aos locais onde há restrição de liberdade no cumprimento de pena, excluindo-se, portanto, os estabelecimentos destinados a medida de segurança. 

O importante - penso - é não confundir a natureza dos estabelecimentos, ainda que a LEP fale - de maneira genérica - em estabelecimentos penais, mantendo o foco na distinção entre os estabelecimentos onde se executa a pena e os que agregam pessoas em medida de segurança

Mas vamos lá. O art. 82 deixa claro quem são os destinatários - ou a "clientela" - dos estabelecimentos penais, referindo-se ao condenado, ao submetido à medida de segurança, ao preso provisório e ao egresso. Ou seja, duas "categorias" de " clientes", a rigor, não estão cumprindo pena: submetido a medida de segurança (pois se trata de inimputável e, portanto, sujeito ao regime de medida de segurança), bem como o egresso, que é o cidadão que já passou pelo sistema, ou que dele está quase saindo, de acordo com o art. 26 da LEP (de acordo com a lei, o liberado definitivo, pelo prazo de 1 (um) ano a contar da saída do estabelecimento,  ou o liberado condicional, durante o período de prova). 

Importante repisar as discriminações positivas trazidas pela mesma LEP em relação ao universo feminino, bem como ao idoso, como decorrência do art. 5o., XLVII da CF (a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado). Assim, o § 1° do art. 82  expressamente diz que " A mulher e o maior de sessenta anos, separadamente, serão recolhidos a estabelecimento próprio e adequado à sua condição pessoal". 

Muito importante frisar, nesse ponto, que a apartação da mulher é bem mais contundente do que a do idoso, tendo em vista ser construído prédio próprio para abrigar as mulheres, ao passo que a LEP não faz referência direta ou clara no sentido de se abrigarem idosos em prédios específicos. E mais, pois o § 2º do mesmo art. 82 diz expressamente " O mesmo conjunto arquitetônico poderá abrigar estabelecimentos de destinação diversa desde que devidamente isolados", deixando óbvia a ideia de possibilidade de alocação, em um mesmo sistema, de vários indivíduos em situações distintas, contanto que se faça o devido isolamento.Isso é decorrência da aplicação dos princípios da isonomia e da individualização. 

Seguindo a ideia de isonomia e alocação diferenciada dos indivíduos, o art. 83  da LEP traz as regras do descrímen. O que isso quer dizer? Simples: que as diferenciações autorizadas em face do comando da isonomia (tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades) servem, nesse artigo, para explicitar o rol do que é norma programática obrigatória para o Estado cumprir em termos de estabelecimento penal. 

Desta feita, segundo consta no caput, "estabelecimento penal, conforme a sua natureza, deverá contar em suas dependências com áreas e serviços destinados a dar assistência, educação, trabalho, recreação e prática esportiva", sendo obrigatória instalação destinada a estágio de estudantes universitários. Não se trata de privilégio (acredito que sim, mas isso é assunto para depois), mas de aplicação do princípio da isonomia. 

Quais as diferenciações trazidas para o estabelecimento de mulheres? Aqui vale a pena integrar todos os comandos trazidos pela LEP a respeito do tema. O tratamento diferenciado à mulher é feito, no campo de saúde, em face de sua função procriativa, e não a uma suposta fragilidade ou hipossuficiência comparada ao homem. É bem importante elucidar esse ponto, pois a reprodução de uma ideia de "deferência" da lei à mulher sob a escusa de "vulnerabilidade" pode ensejar a manutenção do preconceito de gênero. 

O art. 14. § 3o  assegura acompanhamento médico à mulher, principalmente no pré-natal e no pós-parto, extensivo ao recém-nascido, numa demonstração inequívoca de tutela da função procriativa (uso o termo procriativa diferenciando, ainda, do termo 'maternidade' por entender que este está eivado de representações de gênero que reforçam um estereótipo secundário à mulher). 

O art. 19, por sua vez, em seu parágrafo único, remonta  a uma ideia, ao meu ver, ainda preconceituosa, falando em "condição": "A mulher condenada terá ensino profissional adequado à sua condição" (a que condição remonta a lei? Importante pensar nisso, até mesmo porque, na prática penitenciária por exemplo, ainda se aparta a mulher para profissionalizações estereotipadas, tais como oficina de bijuterias, salão e culinária, reforçando, assim, um papel secundário nas relações de produção. 

O art. 83, § 2o da LEP fala que "Os estabelecimentos penais destinados a mulheres serão dotados de berçário, onde as condenadas possam cuidar de seus filhos, inclusive amamentá-los, no mínimo, até 6 (seis) meses de idade", atrelando, ainda, a OBRIGATORIEDADE de contar com um efetivo EXCLUSIVAMENTE do gênero feminino nas dependências INTERNAS (o § 3o  ainda fala em 'sexo', mas os estudos de gênero nos apontam o verbete 'gênero'). Muito cuidado aqui, pois a lei fala em 'dependências internas', sugerindo que, no ambiente externo, onde se faz a vigilância, o efetivo pode ser masculino ou feminino. Relevante ultrapassar a barreira de compreensão de "estar o homem mais apto a vigiar e empunhar uma arma em face da força", tendo em vista que atualmente as mulheres recebem o mesmo treinamento. Reproduzir isso é recair nos estereótipos de desigualdade de gênero da mesma maneira, ok?

Vale a pena inverter a ordem dos artigos, para observar todos os regramentos constantes na LEP a respeito do enfrentamento distinto conferido à mulher constrita. 

O art. 89 da LEP dispõe que "a penitenciária de mulheres será dotada de seção para gestante e parturiente e de creche para abrigar crianças maiores de 6 (seis) meses e menores de 7 (sete) anos, com a finalidade de assistir a criança desamparada cuja responsável estiver presa", dispondo, ainda, o parágrafo único.  Além disso, o parágrafo único dispõe serem requisitos básicos da seção e da creche referidas neste artigo: I – atendimento por pessoal qualificado, de acordo com as diretrizes adotadas pela legislação educacional e em unidades autônomas; e II – horário de funcionamento que garanta a melhor assistência à criança e à sua responsável". 

Outro tema polêmico - mais uma vez - diz respeito ao art. 90, que aponta para uma inferência discriminatória em face da penitenciária feminina, pois afirma que "A penitenciária de homens será construída, em local afastado do centro urbano, à distância que não restrinja a visitação". A pegunta que não quer calar: a penitenciária feminina seguiria esse expediente em face da isonomia, ou haveria de ser construída mais próximo ao centro urbano? 

Para a simplicidade de um concurso público que apenas cobre a LEP, não tem dúvida: a penitenciária feminina é construída mais perto do centro urbano, por força do disposto aqui. 

Mas, como meu propósito é sempre ir além do visível na lei, tenho por pertinente fazer uma releitura do artigo à luz da equalização de gênero. Até aqui já se percebeu que a LEP faz distinções em torno da mulher em face da atividade procriativa. Isso é uma RELEITURA da LEP a partir da literatura de gênero, que nos encaminha para observar uma necessidade de olhar anacronicamente a lei - feita em 1984 - com olhos do século XXI onde as demandas por igualdade de gênero se afirmam cada vez mais. 

Daí entender que a exigência de construção apartada também deva ser deferida à penitenciária de mulheres. Afinal, longe se vai no tempo a concepção de que a mulher, na criminalidade, era apenas "mula" do companheiro ou marido, servindo de 'leva-e-traz' de droga, já que hodiernamente as mulheres têm ocupado posição de chefia no crime organizado. Entendo que a igualdade já está permeando a atividade delituosa...

De maneira genérica, a LEP traz as particularidades em relação a garantir o acesso ao ensino, pois o art. 83, § 4o  comanda a necessidade de instalação de salas de aulas destinadas a cursos do ensino básico e profissionalizante, além do § 5o destinar um local à Defensoria Pública (agora se as defensorias públicas dos Estados e a Assistência Judiciária do DF destinam pessoal e equipamento, isso é outra história que, quase sempre, não acontece, tendo em vista a falta de dotação orçamentária para isso). 

Quando falamos em alocação de presos, surge sempre o dilema em torno do "privilégio" ou da "prerrogativa" de determinados indivíduos de ficarem apartados de outros, dada sua diferenciação de status. Tenho muitas críticas à maneira como a destinação aqui no Brasil é feita por entender que reproduz o tecido de uma desigualdade verticalizada, e não horizontalizada entre os cidadãos e as cidadãs. 

Mas, guardadas minhas críticas, concebo a apartação dos constritos, no ambiente prisional, como uma necessidade de mantença da ordem e da disciplina internas, já que poderia fomentar rebeliões a manutenção de pessoas em situação de beligerância (a exemplo do policial preso ao lado daquele que ele efetuou a prisão).

Assim, o art. 84. traz uma série de adequações ao princípio da isonomia, senão vejamos. Começa separando o preso provisório separado do condenado por sentença transitada em julgado, tendo em vista o respeito ao princípio da presunção de inocência, já que o provisório pode ser absolvido no processo penal que ensejou sua prisão cautelar. Ademais, o § 1° do mesmo artigo diz que "O preso primário cumprirá pena em seção distinta daquela reservada para os reincidentes", tendo em vista a individualização da pena pressupor uma distinção, na hora do cumprimento da sanção, entre os que estão pela primeira vez, comparados aos que são recorrentes no sistema de justiça criminal. Por fim, a especificidade do  §2°, que aponta para a apartação do preso que era, ao tempo do fato, funcionário da Administração da Justiça Criminal, sendo necessária sua apartação.

O art. 85 é risível, pois fala que "O estabelecimento penal deverá ter lotação compatível com a sua estrutura e finalidade". Um 'peguinha' aqui. A superlotação é uma decorrência da falta de adequação do estabelecimento ao numerário grande. A lei fala que o estabelecimento deverá reunir lotação que seja compatível com seu projeto diretor, ou seja, com o que seria a lotação comportada em seu projeto arquitetônico. Precisa dizer mais? A realidade carcerária brasileira mostra a contramão a esse artigo. 

Nesse sentido, ainda que o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, pelo parágrafo único do artigo, determine o limite máximo de capacidade do estabelecimento, atendendo a sua natureza e peculiaridades, a realidade nos mostrar o vilipêndio diuturno do Estado em fornecer maiores alocações, aliado ao descaso com que segmentos da sociedade veem o preso, não raro aduzindo que "sequer direitos ele tem" (senso comum de profunda imaturidade em relação à cidadania).

O art. 86 possibilita a execução das penas privativas de liberdade aplicadas pela Justiça de uma Unidade Federativa em outra unidade, em estabelecimento local ou da União, sendo que a União Federal poderá construir estabelecimento penal em local distante da condenação para recolher os condenados, quando a medida se justifique no interesse da segurança pública ou do próprio condenado. Daí, conforme a natureza do estabelecimento, nele poderão trabalhar os liberados ou egressos que se dediquem a obras públicas ou ao aproveitamento de terras ociosas.

Quem determina o local para onde será alocado o constrito? O art. 86, § 3o atribui ao juiz competente (VEP, já que temos a sectarização de competências aqui no DF), a requerimento da autoridade administrativa definir o estabelecimento prisional adequado para abrigar o preso provisório ou condenado, em atenção ao regime e aos requisitos estabelecidos.

Quais os estabelecimentos penais elencados pela LEP?

  • penitenciária
  • colônia agrícola, industrial ou similar
  • casa do albergado
  • centro de observação
  • hospital de custódia e tratamento psiquiátrico
  • cadeia pública



Um comentário:

Anônimo disse...

Interessante o texto. Gostei muito. Parabéns!