quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Notas essenciais sobre homicídio privilegiado


HOMICÍDIO PRIVILEGIADO (art. 121, §1° do CPB)

1.     Natureza jurídica e aplicabilidade:
·         causa de diminuição da pena, não constituindo, de fato, privilégio, como, por exemplo, o infanticídio, que possui faixas de pena. Mas, em face da popularização do termo, ficou como privilegiado em função do caráter de moralidade que traz um abrandamento da fixação de pena (Nucci). Redução na pena em face de peculiaridades que marcam menor reprovabilidade do ilícito. Valorações ético-jurídicas.
·         poder-dever na redução: obrigatória. Observar a edição da Súmula 162 do STF que tratou da obrigatoriedade de inclusão na quesitação, que reforça a tese de obrigatoriedade (direito subjetivo público). A referência à discricionariedade (pode) diz respeito ao quantitativo de pena, e não à aplicação ou não da redução. ? Mais uma vez um diminuto (mas clássico) dissenso doutrinário, pois há quem entenda ser uma faculdade, não vinculando o(a) aplicador(a) da lei, como pretende Magalhães Noronha (1994, p. 25), opinião compartilhada com Frederico Marques e Mirabete[1]. Entendo se tratar de uma obrigatoriedade para o(a) juiz(íza), na qual a referência a “poder” restringe-se à escolha da faixa de diminuição de pena. Dito de outra maneira, penso que o(a) legislador(a) atribuiu uma regra de obrigatoriedade, na medida em que especificou as condições – na redação do parágrafo, bem precisas e pontuais - para que se processe a diminuição, estabelecendo limites para o(a) aplicador(a) da lei. Assim, a palavra “pode” não está relacionada à obrigatoriedade ou não de se reduzir, mas ao limite de quanto se reduzirá a pena.

2.     Análise do tipo: art. 121, § 1º: “Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço
·         Motivo[2] é a razão pela qual atuamos no mundo, o centro irradiador do direcionamento da ação, fundamento contido em nosso querer. Quando se fala em motivo de relevante valor social, o que está por trás é o fundamento ético-social que sensibiliza a coletividade e que esteia a razão pela qual o agente cometeu o ato. Alguns autores citam o exemplo de se matar o indivíduo que trafica drogas em uma escola, conclamando a causa de diminuição de pena como fundamento do extermínio[3]. Não sei bem se é possível legitimar uma situação assim, porque, com isso poderíamos cair na armadilha dos “justiceiros”, o que é incompatível com um Estado de garantias individuais.
·         Relevante valor social: interesse coletivo (amor à pátria, comoção pública).
·         Relevante valor moral: valor superior, numa moral objetivada, predominantemente individual, ao que é importante para a pessoa do agente (cidadão que mata o estuprador da filha) Eutanásia.  Vide concurso com art. 65, III, “a” do CPB (bis in idem). a) eutanásia[4] (homicídio piedoso); b) ortotanásia (homicídio piedoso omissivo- eutanásia moral ou terapêutica – autorizado pelo art. 66 do Código de Ética Médica); c) distanásia (morte lenta e sofrida por processo “terapêutico”).
·         Sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima: critério complexo (violenta emoção + instantaneidade + provocação valorada como injusta). Diferenciação entre emoção (estado afetivo passageiro) e paixão (estado crônico de emotividade que se prolonga, monopolizando o ser). Vide art. 65 “c” e entendimento do STJ: “Cumpre ressaltar que, no homicídio privilegiado, exige-se que o agente se encontre sob o domínio de violenta emoção, enquanto na atenuante genérica, basta que ele esteja sob a influência da violenta emoção, vale dizer, o privilégio exige reação imediata, já a atenuante dispensa o requisito temporal” (AgRg no Ag 1060113 / RO - Ministro OG FERNANDES - SEXTA TURMA - 16/09/2010). A injustiça da provocação (não é agressão) está relacionada à equidade, não razoabilidade. Instantaneidade deve ser observada com ponderação, sendo que o limite é a premeditação, bem como a vendeta (tempo decorrido para estabelecer a vingança do ato). Necessário que o agente esteja vinculado de maneira irresistível – daí a razão de se falar em agir “impelido” – ao passo que, para a incidência da atenuante é necessário apenas a existência do relevante valor, sem que seja um estado mais contundente e inafastável. Não se comunica aos eventuais autores e partícipes, segundo o art. 30 do CPB.
·         Rompante de ciúme: não constitui uma variável definitiva a categorizar o crime como privilegiado (por exemplo, excesso de zelo, amor, cuidado, carinho) ou qualificado (ciúme dito egoístico).
·         Homicídio privilegiado-qualificado: concurso possível entre privilégio (subjetivo) e qualificadoras objetivas (meios executórios), tendo em vista o caráter de eticidade que exclui a concomitância de valores e anti-valores (ou seja, privilégio e qualificadoras subjetivas). PRECEDENTES NO STJ: Não incompatibilidade na coexistência de circunstâncias que qualificam o homicídio e as que o tornam privilegiado. - O reconhecimento pelo Tribunal do Júri de que o paciente agiu sob o domínio de violenta emoção com surpresa para a vítima não é contraditório, tendo em vista que as circunstâncias privilegiadoras, de natureza subjetiva, e qualificadoras, de natureza objetiva, podem concorrer no mesmo fato-homicídio”. (REsp 326118 / MS Ministro VICENTE LEAL SEXTA TURMA - 14/05/2002)
·         Não é considerado hediondo (precedentes no STJ e TJDFT). HC 23408/MT, 6ª Turma, Min. Hamilton Carvalhido (STJ), por “por incompatibilidade axiológica e por falta de previsão legal” (ex vi HC 153728 / SP). Vide parte do relatório vencedor, que buscou o precedente no  REsp 180.694-PR (julgado em 02/02/99), in verbis: “A Lei nº 8.072/90 alterada pela Lei nº 8.930/94, em seu art. 1°, considerou como hediondo, entre outros, o delito de homicídio qualificado, consumado ou tentado. Não faz nenhuma referência à hipótese do homicídioqualificado-privilegiado. A extensão, aqui, viola o principio da reserva legal, previsto entre nós tanto na Carta Magna como em regra infra-constuciona1 (v. g., art. 5º, inciso XXXIX da Lex Maxima e art. 1° do C.P.). E, por óbvio, que tal regra basilar se aplica, também, à fase de execução da pena visto que esta sem execução seria algo meramente teórico ... sem sentido (v. g. Nilo Batista in “Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro”, REVAN, p. 68 e Sainz Cantero in “Lecciones de Derecho Penal”, 3ª ed., Bosch, p. 333). A afirmação da que o homicídio privilegiado não é figura típica refoge á melhor posição na dogmática jurídico-penal. Decorre, em verdade, de interpretação gramatical dos dispositivos (ou da formulação de nomen iures) do C. P. É tipo derivado colocado na mesma categoria dos qualificados (v. “Lições de Direito Penal” de H. C. Fragoso , Parte Geral). Assim, também, o furto privilegiado, o estelionato privilegiado, etc. Não é, vale dizer, mera (tão só) minorante (causa legal de diminuição de pena) tal como se vê dos arts. 26, parágrafo único, 21, caput, 2ª parte ou, ainda, 16, etc. O efeito é de minorante (causa específica, agregada) mas a figura típica existe. Nesta linha, de exclusão do homicídio qualificado-privilegiado como hediondo, tem-se as ensinanças de Alberto Silva Franco, Damásio E. de Jesus e Assis Toledo (in “Leis Penais Especiais e sua Interpretação Jurisprudencial”, vol. 2, 6ª ed., p. 575), in verbis: “Resta, ainda, enfocar a hipótese do homicídio qualificado-privilegiado. Damásio Evangelista de Jesus, com inteira propriedade, no seu artigo “O Homicídio, Crime Hediondo”, in “boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais”, nº 22, de outubro de 1994, excluiu tal hipótese da categoria de crime hediondo: “se, no caso concreto, são reconhecidas ao mesmo tempo uma circunstância do privilégio e outra da forma qualificada do homicídio, de natureza objetiva, aquela sobrepõe-se a esta, uma vez que o motivo determinante do crime tem preferência sobre a outra. De forma que, para efeito de qualificação legal do crime, o reconhecimento do privilegio descaracteriza o homicídio qualificado. Assim, quando o inciso I do artigo 1º da Lei n. 8.072/90 menciona o “homicídio qualificado” refere-se somente à forma genuinamente qualificada. Não ao homicídio qualificado-privilegiado. Tanto que, entre parênteses, indica os incisos I a V do § 2° do art. 121. Suponha-se um homicídio eutanásico cometido mediante propinação de veneno, ou que o pai mate, de emboscada, o estuprador da filha. Reconhecida a forma híbrida, não será fácil a tarefa de sustentar a hediondez do crime. Como disse o Ministro Asis Toledo, do STJ, “seria verdadeira monstruosidade essa figura: um crime hediondo cometido por motivo de relevante valor moral ou social. Seria uma contradictio in terminis ” Há, ainda, aspecto que reputo relevante. O menor desvalor de ação (na linha de Bacigalugo, Welzel, Zielinski e outros) do privilegiado, aliás, ex vi legis, acentuada redução, afeta, em essência, o acentuado desvalor de ação do qualificado. Isto, do cotejo entre o valor negativo de ação do tipo qualificado e o do privilegiado, com grande destaque no homicídio, revela que o homicídio qualificado-privilegiado
está abaixo do patamar fixado em lei para o delito hediondo (a lei diz: consumado ou tentado ). A inclusão da conatus, por outro lado, no rol, se justifica por sua característica de peculiar incongruência por excesso subjetivo (S. Mir Puig) ou de problema de congruência (R. Maurach ) porquanto o menor desvalor do resultado decorre, aí, de circunstância alheia à vontade do agente. Na forma privilegiada, o réu age por motivo ou situação anímica de grande redução no desvalor de ação. Já, as minorantes não específicas (genéricas) são conseqüências de hipóteses extra-típicas, escapando à vexata quaestio . Por fim, se as situações estabelecidas no § 1°, em outros delitos hediondos, só podem produzir o efeito de atenuantes, deixando intactos os tipos, tal resulta de posicionamento axiológico adotado pelo sistema”. Outros precedentes: "HABEAS CORPUS . DIREITO PENAL. "HOMICÍDIO QUALIFICADO-PRIVILEGIADO". REGIME PRISIONAL. PROGRESSIVIDADE NO CUMPRIMENTO DA PENA.POSSIBILIDADE. REGIME INICIAL SEMI-ABERTO. DEFERIMENTO. 1. O "homicídio qualificado-privilegiado" é estranho ao elenco dos crimes hediondos. 2. Em se cuidando de pena superior a 4 anos e inferior a 8 anos de reclusão, autoriza a lei penal o deferimento do regime semi-aberto ao réu não reincidente, que deve ser estabelecido, se favoráveis as circunstâncias judiciais e se trata de homicídio privilegiado. 3. Ordem concedida." (HC 23.408/MT, 6ª turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJU de 01/03/2004). "HABEAS CORPUS . PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO-PRIVILEGIADO. CRIME HEDIONDO.PROGRESSÃO DE REGIME PRISIONAL. POSSIBILIDADE. "Se a Lei nº 8.072/90, que elenca os crimes hediondos, não faz qualquer alusão à hipótese do homicídio qualificado-privilegiado, possível é a progressão de regime". Precedentes desta Corte Ordem concedida." (HC 23.973/MS, 5ª Turma, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJU de 11/11/2002). "PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO-PRIVILEGIADO. REGIME PRISIONAL. CRIME HEDIONDO. 1. Ante a inexistência de previsão legal, bem como o menor desvalor da conduta em comparação ao homicídio qualificado, consumado ou tentado, o homicídio qualificado-privilegiado não pode ser considerado como crime hediondo. Precedente. 2. Pedido de Habeas Corpus deferido, para reconhecer ao paciente o direito à progressão do regime prisional." (HC 13.001/SP, 5ª Turma, Rel. Min. Edson Vidigal, DJU de 09/10/2000).

3.     Alguns exercícios de fixação em relação aos pontos:

3.1. Em relação ao crime de HOMICÍDIO, julgue os itens a seguir em V ou F:
a)      considera-se início da vida extrauterina o momento do parto.
b)      tem-se como objeto material a pessoa cuja vida foi exterminada.
c)      o dolo eventual é incompatível com a qualificadora de motivo torpe.
d)      para fins de tipificação como homicídio privilegiado, considera-se a mera influência de um estado de ânimo ou excitação.
e)      a figura do homicídio qualificado-privilegiado encontra-se presente no rol descrito na lei de crimes hediondos (Lei 8.072/90).

3.2.Em relação ao homicídio, assinale a opção correta:
a)     Trata-se de crime comum, material, de perigo.
b)    A modalidade simples prevista no caput não constitui crime hediondo.
c)     Para fins penais considera-se a morte no momento da cessação das atividades cardíacas.
d)    O objeto material é a vida.
3.3. Em relação ao homicídio, assinale a opção correta:
a)      O dolo eventual é incompatível com qualificadora relacionada a motivo torpe.
b)      O ciúme egoístico, baseado no puro sentimento de posse, pode ser considerado motivação fútil ou torpe, independentemente do caso concreto.
c)      Configura a hipótese de homicídio privilegiado quando o sujeito está dominado pela excitação dos sentimentos, e não apenas influenciado.
d)      Considera-se violenta emoção quando a agressão verbal provocada pela vítima é feita reiteradamente, durante grande período de tempo, em relação ao ofensor.



[1] Sustenta Magalhães Noronha a clássica distinção semântica entre poder e dever, pensamento bem razoável para sua época. A essa literalidade prefiro, contudo, encarar a expressão “poder” em seu sentido de “poder-dever”, prestigiando, assim, a tutela de direitos subjetivos que um Direito Penal garantista atribui como comando interpretativo ao aplicador ou à aplicadora da lei. Com isso, a faculdade estaria restrita apenas ao quantitativo da redução, e não à possibilidade de redução da pena.
[2] Importante diferenciar motivo de dolo, tendo em vista que esse último relaciona-se à justificativa que embasa o conteúdo de vontade a desencadear o comportamento humano rumo à consecução, no mundo físico, do tipo penal (o desiderato de “matar”). Já o motivo é a razão que impele o agir, ou seja, o que está por trás da intencionalidade dirigida ao objetivo, bem diferente de dolo.
[3] Embora Nucci reconheça a necessidade de ponderação no reconhecimento de privilégio, para não se banalizar, como diz, “a eliminação da vida alheia” (2012, p. 631), entendo infeliz qualquer exemplo que relativize a tutela da vida – mormente sob a bandeira da eugenia relacionada às drogas – por entender que o tema é bem mais complexo do que a pretensão do Direito Penal em deflagrar bandeiras pedagógicas contra o crime e a criminalidade.
[4] Eutanásia é o auxílio médico para fazer eclodir a morte de um paciente que já se encontra em uma situação prolongada de intenso sofrimento.

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