domingo, 16 de fevereiro de 2014

O "jeitinho brasileiro" de punir: das mazelas coloniais ao Código Penal em plena reforma

Fonte da imagem: http://c8.quickcachr.fotos.sapo.pt/i/b2c0626b3/7959532_zOBsn.jpeg

“Arriscar-se no sentido mais amplo é precisamente tomar consciência de si próprio”
Soren Kierkegaard

Dialogando com Kierkegaard coloco-me sempre na berlinda em relação a buscar me contextualizar em determinado momento histórico, para, nessa dialógica (ou seja, na interação entre o "eu" e a alteridade [o ambiente]) possa eu, não sem dificuldade, refletir um pouco mais sobre o direito. Mais especificamente sobre o direito penal.

Mais atrás falei sobre esse anacronismo, exemplificando com o termo "vingança" (pública ou privada), inadequado para alcançar as práticas punitivas de outros povos - bárbaros - na medida em que esse seja predominantemente um olhar etnocêntrico e romanizado para instituições e institutos de outras culturas (repleto de preconceito e ausência de adequada compreensão). 

Com isso me pergunto sempre: Direito penal brasileiro? Que direito penal brasileiro? De que direito penal brasileiro estamos falando? O que, afinal, significa isso? Como teria sido elaborado nosso ordenamento jurídico penal?

Ou, ainda, "nossa"  doutrina? Jurisprudência? Qual herança trazemos para a maneira com a qual pretendemos "racionalizar" e "equacionar" uma doutrina penal que defina juridicamente quais comportamentos humanos são catalogados como criminosos e passíveis de imputação penal?

Mas à frente - bem mais, mas se eu me esquecer disso alguém me lembre - procurarei demonstrar que inexistem critérios científicos, precisos ou objetos, pois além do positivismo não produzi-los, nenhuma outra sorte de escola jurídica o faz adequadamente, já que a seleção do que é considerado crime é um critério político, bem como as chamadas "teorias do crime" (que não são teorias, mas doutrinas) uma profissão de pura fé dogmática que se diferencia de autor para autor apenas em um nominalismo para distinções meramente acadêmicas. 

Sou reticente em relação à utilização da referência "direito penal" a ambas (doutrina e/ou jurisprudência), pois não percebo produção brasileira em relação à dogmática penal desde a remota era de ocupação territorial até as formulações pós-modernas, na medida em que nos utilizamos de referenciais estrangeiros para definição de critérios quanto à ontologia do crime, especificamente, à montagem de uma doutrina do crime. 

Recuso-me a falar, destoando dos colegas doutrinadores, em "teoria" do crime, por entender que no Direito inexistem teorias, e sim doutrinas - já que teoria supõe estruturação em face de hipóteses que podem ser refutadas, ao passo que doutrinas são corpos de pensamento que não comportam falseabilidade ou até mesmo questionamento quanto às premissas, o que não ocorre na tradição jurídica brasileira, que acaba, ao meu ver, trazendo uma discrepância entre conhecimento e ação.

Outra crítica sempre relevante em relação à elaboração de um Direito genuinamente brasileiro (quer seja por parte da doutrina ou, ainda, por uma "racionalização" jurisprudencial) remonta à ideia de acionamento de doutrinas estrangeiras, o que dá aporte ao etnocentrismo (ou seja, a compreensão de que nossos valores são superiores aos valores de outros povos e culturas). 

Na tradição jurídica brasileira, essa bricolagem fica mais nítida a partir da mescla entre direito português (que agrega, por sua vez, a herança do direito romano, grego, germânico, canônico), práticas coloniais punitivas severas, autolegitimadas e autocráticas (juízes de fora e donatários) e práticas das sociedades indígenas, todas contextualizadas numa estrutura colonial na qual inexistiam organização ou regras claras de imputabilidade e definição escorreita do que era considerado crime, dando azo a despotismos, autocracias, desmandos que encaminhavam a punição para a intimidação feroz (para que os casos sirvam de exemplo).

Lembrando sempre dessa contextualização, o/as destinatário/as da punição no Brasil eram o/as negro/as, o/as indígenas e o/as degradado/as vindos de Portugal, submetido/as às legislações vigentes na metrópole, sempre "temperadas" pela dissintonia com a qual os juízes de fora aplicavam, ao seu bem-prazer, as leis e as penas nesse país. 

Nossa "herança" portuguesa inicia-se no Codex Legum, o primeiro corpo de leis elaborado em 693 d. C a partir de um direito penal feroz, vingativo, intolerante e religioso [lembrando aqui que Portugal acolhe a vaga romanística de cristianização, sendo um dos países mais ferozes na perseguição do/as hereges e tido/as como pagão/ãs]. 

As Ordenações Afonsinas (1446), elaboradas à época de Afonso V previam pena de morte, crueldade na aplicação da pena e forte influência do clero. As Ordenações Manuelinas (1521) da época de D. Manuel I previram e instalaram a inquisição e a tortura. Por fima, as Ordenações Filipinas (1603), elaboradas sob a ocupação espanhola em Portugal (e consequentemente no Brasil) impulsionaram a fúria religiosa contra criminoso/as. 

Até 1822 ficamos imerso/as em uma mescla de legislações que perpetuaram até 1830, quando foi promulgado o Código Penal (1830) com forte influência iluminista (tanto da tradição francesa como do republicanismo estadunidense), abolindo a tortura (açoite, ferro quente), institucionalizando a reparação do dano, o princípio da anterioridade, liberdade mitigada, bem como proibindo a condenação por autoria presumida.

Manteve, contudo, a pena de morte, pena de galés com a calceta no pé, a corrente de ferro, bem como o trabalho forçado, o  banimento do país, o desterro e o açoite para réu escravo, refletindo, com isso, as contradições de um sistema de governo e uma sociedade escravagista e conservadora que pretendia ser vista como liberal em termos de sistematização de direitos. 

O Código de 1890, por sua vez, foi marcado por uma forte influência positivista, tendo sido muito criticado por manter a base conservadora de suas linhas centrais, já que seu nascedouro se deu em um contexto supostamente "republicano", mas que refletia o acessoem uma base militarizada e hierarquizada (incongruente até com os pilares do republicanismo que tanto inspirou o movimento). A título de exemplo, foi proibida a capoeira, institucionalizada a pena de prisão com trabalho, bem como mantida a pena de morte, as galés e a prisão perpétua. 

O Código de 1940 foi marcado por uma forte influência alemã, sendo tomizado em uma parte geral e outra especial. Houve uma modificação das modalidades de sanção, para abrigar multa, bem como foram abolidas as penas degradantes. Estruturou-se a teoria de aplicação da lei penal, do crime e da pena, com ênfase na inspiração da doutrina finalista, que estava em voga na Europa. Algumas reformulações posteriores foram feitas, destacando-se a de 1984, que não apenas modificou o Código, mas contemplou a elaboração da Lei 7.210/4 (Lei de Execução Penal). 

O PLS 236/2012 trouxe algumas mudanças. Não listarei todas, pois a lista é ampla, mas ela pode ser vista no site do Senado Federal, de acordo com o link. Basta clicar no PLS anterior para ter acesso ao inteiro teor. O rol exemplificativo: 


  1. punibilidade para indígena;
  2. responsabilidade penal da pessoa jurídica em relação aos crimes contra a administração pública, ordem econômica, o sistema financeiro, bem como as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente;
  3. obrigatoriedade de realização do exame criminológico;
  4. aumento no rol de crimes considerados hediondos: redução à condição análoga à de escravo, tortura, terrorismo, financiamento ao tráfico de drogas, racismo, tráfico de pessoas, crimes contra a humanidade (contexto de "ataque sistemático dirigido contra a população civil, num ambiente de hostilidade ou de conflito generalizado, que corresponda a uma política de Estado ou de uma organização”);
  5. previsão do instituto da barganha para abreviar a pena condições;
  6. ampliação da delação premiada para todos os crimes; 
  7. previsão da eutanásia, com possibilidade de perdão judicial;
  8. aborto autorizado até a 12ª semana (vontade de gestante), quando for atestado (por médico ou psicólogo) que ela não tem condições psicológicas de ser mãe (arcar com a maternidade); no caso de risco à vida ou à saúde da gestante; no caso de gravidez resulta de violação da dignidade sexual; ante o emprego não consentido de técnica de reprodução assistida; em caso de anencefalia comprovada ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que o impeça de sobreviver fora do útero (vida extrauterina), em ambos os casos atestado por dois médicos (art. 128);
  9. tipificação da perseguição obsessiva ou insidiosa, caracterizada pela conduta de perseguir alguém, de forma reiterada ou continuada, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica;
  10. tipificação do bullying e do cyberbullying cometido contra crianças e adolescentes; 
  11. aplicação exclusiva de multa para o furto, se o agente for primário e a coisa furtada tiver pequeno valor;
  12. extinção da punibilidade no furto simples ou com aumento de pena, se houver reparação do dano, aceito pela vítima (a vítima precisa aceitar a reparação), até a sentença de primeiro grau;
  13. ação penal pública condicionada à representação; 
  14. equiparação à coisa móvel do documento de identificação pessoal, da energia elétrica, da água ou do gás canalizados, do sinal de televisão a cabo ou de internet ou de item assemelhado que tenha valor econômico;
  15. no caso de violação de direito autoral, a reprodução integral de obra intelectual, fonograma (música gravada – discos) ou videofonograma (é a música associada a imagens – vídeo musical – filmes e vídeos), em um só exemplar, para uso privado e exclusivo do copista, sem finalidade de lucro – NÃO SERÁ CRIME; 
  16. redefinição do tipo penal do estupro, simplificando a redação para prática de ato sexual: vaginal, anal ou oral”;
  17. molestamento sexual e manipulação e introdução sexual de objetos serão tipificados; 
  18. no estupro de vulnerável reduziu-se a idade de vítima de 14 para 12 anos;
  19. embriaguez ao volante será tipificada como crime, com pena de prisão de um a três anos, sem prejuízo da responsabilização por qualquer outro crime cometido. No caso, a prova poderá ser feita por intermédio de prova: exame clínico, testemunhas, vídeos, fotos e contraprova (bafômetro ou de exame de sangue);
  20. racha“ ou “pega” será tipificado, com pena de 4 a 8 anos;
  21. os cybercrimes serão tipificados, sendo considerados como tais os acessos sem autorização ou indevida a sistema de informática, com aumento de pena no caso de divulgação ou utilização indevida das informações e sabotagem informática. O projeto ainda conceituou sistema informático, dados informáticos, provedor de serviços e dados de tráfego;
  22. previsão de descriminalização (exclusão do crime) das drogas para uso pessoal, com a presunção do uso pessoal em cima das seguintes variáveis: consumo médio individual de cinco dias; grau lesivo da droga; estipulação pela Anvisa e avaliação da situação concreta da pessoa, sua conduta no momento e circunstâncias sociais e pessoais;
  23. no caso de uso ostensivo de drogas em lugares públicos próximos a escolas ou em outros locais de concentração de crianças ou adolescentes ou na presença destes (mesmo em ambiente privado) o infrator poderá receber uma reprimenda de advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo;
  24. tipificação dos crimes de associação criminosa, organização criminosa e organização miliciana;
  25. criminalização de perturbação do sossego, jogos de azar e jogo do bicho;
  26. criminalização do enriquecimento ilícito de funcionário público;
  27. criminalização de abandono e maus-tratos a animais;
  28. previsão de tráfico de pessoas, nacional ou internacional, para a exploração sexual, para o trabalho forçado ou qualquer trabalho em condições análogas à de escravo e para remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo da pessoa traficada (comercio de órgãos);
  29. criminalização mais abrangente para racismo e discriminação: por gênero, orientação sexual e procedência regional ou nacional, sendo  imprescritíveis, inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia (alteração na Lei 7.716/1989).
  30. criminalização do escarnecimento e vilipêndio de cerimônia, rito, costumes ou tradições indígenas, bem como a venda de drogas e bebida para indígenas.
A reforma vem em um momento de muita turbulência, sendo que o anteprojeto tem recebido severas críticas de vários grupos de estudos criminológicos e político-criminais, pela previsão de utilização mais contundente do direito penal (intervenção penal mais severa). Em relação a tais tendências, prefiro postar algo mais substancial mais tarde, ocupando-me, por agora, de apontar as modificações. Como gosto que provocar as mentes inquietas, contento-me em reproduzir parte da letra da música Índios de Renato Russo:

“(...)
Quem me dera, ao menos uma vez,
Ter de volta todo o ouro que entreguei a quem
conseguiu me convencer
Que era prova de amizade
Se alguém levasse embora até o que eu não tinha. 
Quem me dera, ao menos uma vez,
Esquecer que acreditei que era por brincadeira
Que se cortava sempre um pano-de-chão
De linho nobre e pura seda. 
Quem me dera, ao menos uma vez,
Explicar o que ninguém consegue entender:
Que o que aconteceu ainda está por vir
E o futuro não é mais como era antigamente. 

Quem me dera, ao menos uma vez, 
Provar que quem tem mais do que precisa ter 
Quase sempre se convence que não tem o bastante 
E fala demais por não ter nada a dizer 
Quem me dera, ao menos uma vez, 
Que o mais simples fosse visto como o mais importante 
Mas nos deram espelhos 
E vimos um mundo doente. (...)”
Renato Russo

Nenhum comentário: