sábado, 15 de fevereiro de 2014

De que (re)início estamos falando? Práticas punitivas e sistematização do direito penal

Fonte da imagem: http://cafehistoria.ning.com/
Tribo celta
Quando abrimos um livro de dogmática logo encontramos uma referência histórica a contextualizar o "nascimento" do direito penal nos anais romanos ou, quando muito, na elaboração feita pelos gregos, que teria sido espoliada pelos conquistadores latinos em seu movimento expansionista. Com isso, não raro solidificamos nossa compreensão sobre o direito penal a partir desse vetor, esquecendo-nos, contudo, que a História é uma narrativa que se apresenta em versões relativizáveis, interpretações de fatos (Geertz, 1983), e não necessariamente verdade fática incontestável. 

Somos tentado/as a acreditar no pertencimento a um mundo cívico, civilizado, ordenado, higienicamente deduzido do pragmatismo romano e sua maneira burocrática de simplificar o direito e estruturar as instituições. "Somos romano/as", enfim, herdeiro/as de um povo cordato, culto e que dignificou a Europa imersa na superstição dos chamados bárbaros. 

Nada mais digno de aplausos, pois, afinal, ilusões e quimeras românticas talvez sejam importantes para não se perder a esperança diante do desânimo que um mundo assolado pela desigualdade, pelo sofrimento e pela violência nos apresenta como devenir. [os romanos nunca foram cordatos, pacíficos ou piedosos, mas, antes, cruéis, perversos, conhecidos pelas técnicas de suplício mais vexatórias e dolorosas da ocidentalidade]

Mas para a compreensão adequada de como estruturamos nossa concepção punitiva, bem como o direito penal brasileiro, ilusões nada agregam. Antes, minam a contemplação de outras tantas interpretações que, por si só, oferecem mais plausibilidade para a compreensão de nosso "pequeno mundo cívico penal" (ironia, nosso perverso mundo cívico penal). 

Pedro May, um estudioso e mitólogo espanhol, retrata no livro Os mitos celtas essa inquietação diante de uma História estabelecida como eixo de verdade, ao afirmar que 
(...) O homem comum gosta de vangloriar-se de qualidades que não possui, mesmo quando acredita sinceramente desfrutar delas. Gostamos de pensar que somos corajosos e imparciais exploradores da verdade e que estamos dispostos a fazer o que for preciso para chegarmos a ela; que estamos abertos a tudo que o mundo nos oferece de novo nesse sentido(...),
referindo-se à maneira pela qual o "mito colonizador" romano foi elaborado em torno de uma concepção gloriosa quando, a bem da verdade, esconde uma trajetória etnocêntrica de submissão e sofrimento impelidos aos povos conquistados. Com isso, estudar o direito penal como um mecanismo de controle social é, antes de tudo, estudar uma história que desmistifique a herança de "sina gloriosa" de que se cerca o Império Romano, bem como remonte a tempos mais antigos, quando a punição se articulava em cima de pressupostos ético-religiosos. 

Antes, muito antes do Império Romano ousar existir como estrutura política, sociedades tribais indo-europeias (10.000 a.C. – 4.000 a.C.) já praticavam punições ante as transgressões praticadas em face do clã, uma estrutura unida por laços de sangue e parentesco, na qual o poder era exercido por uma figura central que representava a ancestralidade do grupo. 

Estruturadas inicialmente como sociedades colaborativas e, posteriormente, matriarcais e patriarcais[1], os clãs mantinham o politeísmo e a reverência aos deuses e às deusas que não raro eram os próprios ancestrais - outrora humanos - que zelavam pela integridade do grupo. Diferentemente da ideia cristã de um Deus transcendente e inerentemente isento de atributos negativos, os deuses e as deusas clânicos incorporavam todas as características humanas (claro, quando vivo/as eram humano/as), situação essa que fazia os membros do clã temerem qualquer situação que pudesse acarretar a ira das divindades.

Nesse contexto a transgressão era vista como um ato de desagrado às divindades[2], ruptura da ordem e do respeito ao totem ancestral, sujeito à reação familiar ou individual que incorporava na punição como via de castigo, punição e expiação, uma reação punitiva de caráter predominantemente religioso, sacralizado e revestido de todas as reverências e formalidades na forma de execução, não raro no meio da praça central do clã e capitaneada pelo sacerdote ou pelo chefe político da tribo. 

Precisamos compreender melhor algumas questões em torno do tema. Estamos falando de um momento histórico no qual as relações causais (principalmente aquelas relacionadas aos fenômenos da Natureza) não eram explicadas cientificamente, uma vez que não existia um conhecimento específico (Física, Química, Matemática). 

Assim, quando uma enchente assolava um clã, ou quando uma praga dizimava uma plantação inteira, os membros do grupo acreditavam se tratar de uma resposta das divindades a alguma transgressão sofrida. Com isso, aplacar a ira - por meio da punição do responsável - era essencial para manter a ordem, a coesão e a existência.

Não seria desarrazoado afirmar que a primeira forma com que se conceberam as práticas punitivas deu-se a partir da articulação entre religião e normas vigentes no clã, de natureza consuetudinária e transmitidas oralmente, não existindo, com isso, um direito penal propriamente dito, mas, antes, uma noção de protodireito (MIRANDA, 2004) articulado em uma base religiosa bastante arraigada. 

Os livros de direito penal chamam esse período de fase de "vingança privada" do direito penal, mas acredito que essa terminologia está equivocada por dois motivos. Primeiro porque não pôde ter sido uma "fase do Direito Penal", já que "direito penal", como "ciência" só começa a despontar - quando muito, estou exagerando - a partir dos séculos 11-12, quando os glosadores iniciam o trabalho de sistematização do direito como um todo e, dentro dessa organização, iniciam os primeiros aportes de uma epistemologia penal (principalmente observando no Codex Iuris Civilis) algumas disposições codificadas sobre as punições praticadas em Roma. 

Segundo motivo: a menção à "vingança" leva em consideração - a partir de uma perspectiva etnocêntrica (ou seja, que valora o outro de maneira inferior e baseada nos valores de quem está julgando, tidos como superiores) - a devolução de dor com carga emocional de ira, destruição e negatividade, o que, a bem da verdade, era a maneira com que os romanos - e não os bárbaros - observavam o mundo e agiam nele. 

Os "bárbaros" (sujos, feios, barbudos, não latinizados e incultos segundo os romanos) não agregavam às suas ações em grupo - a não ser em guerra contra outros povos - essa carga, por entender que o clã e os laços de parentesco devem ser preservados a qualquer custo [prova disso é a "herança" do que vemos de "frieza" nos europeus, sobretudo setentrionais, em contraste ao ímpeto latino, que reúne emoção e passionalidade].

Dessa fase de "punição privada" [porque a pena era predominantemente um exercício clânico auto-executável, também chamada auto-tutela] forneceu os romanos conquistadores algumas modalidades de pena baseadas principalmente em negociações. Enquanto os romanos enviavam criminosos para as bocas dos leões na arena do Coliseu, ou, ainda, para a crucificação, os bárbaros (celtas, ostrogodos, visigodos, germânicos, saxões, pictos etc.) tinham práticas interessantes sob a perspectiva histórica.

faida era a entrega do ofensor, por sua família, à família do ofendido, para que ela pudesse decidir o destino do transgressor. Já a blutrache constitui uma vingança de sangue, proporcional à ofensa. Não se trata de uma "lei de Talião", tendo que vista que essa ofensividade pari passu era típica do sistema babilônico, vingativo por excelência. Lembremos aqui que se trata de um sofisticado sistema de aplicação de penas reconhecidas como legítimas e que tinham  propósito maior de produzir coesão no grupo, e secundariamente o amedralhamento. Ou seja, blutrache não é Talião!

wergeld consistia no pagamento feito pelo ofensor à vítima ou à sua família, cuja estipulação dependia da quantia que era estipulada por esses últimos. Admitia-se a barganha com o ofensor, mas era, de regra, o preço para que outra pena - por exemplo, a blutrache - não fosse aplicada. A blusse consistia na compra do direito à vingança que uma pessoa também agredida pelo mesmo ofensor pagava à vítima mais recente. Com isso, a vítima antiga tomava o lugar da vítima atual para executar a reprimenda. Nesse caso o ofendido não estaria exercendo a pena pela vítima recente, mas em nome próprio, tendo em vista que negociou e comprou o "direito de punição". Por fim, o fredus era o preço de paz que o ofensor pagava ao chefe do clã para que tudo fosse apaziguado (o clássico "vamos passar a borracha?"). 

Esse sistema ancestral de punição - doravante chamarei de "punição privada", e não "vingança privada", pelos motivos declinados acima - paulatinamente vai cedendo espaço para a "punição pública" da civitas romana emergente, por vários motivos. 

densificação populacional[3] a partir do sedentarismo e dos casamentos exogâmicos findavam por produzir afrouxamento dos laços de parentesco, de modo que que ligação política se torna menos parental, o bastante para permitir a elaboração de uma estrutura política mais afastada da noção de sangue, o Estado. 

Em Roma (753 a.C) as práticas punitivas publicizam-se na "punição pública" ou, como dito equivocadamente pela doutrina  vingança pública” ao mesmo tempo em que religião e faz separam-se na tentativa frustrada de laicização estatal (já que posteriormente Roma se cristianiza-se e passar a perseguir o/as cristão/ãs). 

Os crimes passam a ser analisados pelo praetor segundo sua natureza - crimina publica delicta privata[4] - ensejando um processo penal - actio legis - que se perfazia segundo o casuísmo [o julgamento levava em consideração as peculiaridades do caso concreto, analisadas sob o pálio da jurisprudentia, ou seja, do crivo de ponderação e equidade com o qual o pretor valorava a situação]. O ápice da produção de leis romanas consolidou-se na Lei das XII Tábuas (462 a.C) e Corpus Juris Civilis (Justiniano – 533 d.C.), legislações mistas e que, portanto, continham dispositivos penais. 

Ao conquistar outros povos, bem como tangenciar outras culturas, Roma travou contato com algumas legislações, tais como o Código de Hamurabi (Babilônia), escrito no século XVIII a.C e agregador da ideia de vingança pública. Além disso, o Código de Manu Dharma-Satra, escrito provavelmente entre I a.C a II d.C (Índia), agregando às normas figura mística (Brahma). A influência da Bíblia sagrada e do Pentateuco, Talmude foram expressivas. 

Com a queda de Roma (476 d.C, bem como 1453 d.C.) já se delineiam regras a partir da herança católica, na figura do kánon (regra). O apogeu se dá com o Corpus Iuris Canonici (1140): que apregoava maior disciplina na apuração dos crimes, bem como humanização” das penas. Além disso, elaborou, a partir da experiência monástica, a noção de penitenciária, além de criar o Tribunal do Ofício da Santa Inquisição. 

Com a feudalização da Europa, em decorrência da fragmentação imperial, o conhecimento passa a ser alojado nos grandes monastérios, locais de compilação e tradução de grandes obras reunidas pelo império. Com isso, os primeiros excertos de direito penal passam a ser elaborados com cientificidade, principalmente no trabalho dos glosadores da Itália (Bolonha e Milão: 1088 a 1125). 

De outra sorte, o poder rei setoriza-se na relação de suserania e vassalagem, dando azo para um sistema punitivo - e um direito penal - atroz, feroz, vingativo, pautado na arbitrariedade e no processo inquisitivo (bastava uma notícia de crime para que a pessoa apenas fosse chamada para declinar culpa ou inocência, sem advogado, e, com isso, a pena era executada de antemão). 

Esse contexto punitivo esteve presente na criação de Portugal a partir da fragmentação de Navarro e Aragão, ao mesmo tempo em que esse país igualmente viveu um processo de feudalização mais tardio, o que corroborou para que a estruturação de um sistema punitivo fosse ainda mais atroz e perversa. 

Com isso, nosso direito penal, ao contrário do que se imagina, advém de uma miscigenação entre o direito grego, romano, germânico, canônico, além do encontro - por parte dos portugueses - com as práticas locais dos indígenas. Além de todo esse colorido, não se pode deixar de lembrar a existência de um sistema local punitivo fortemente marcado pela autocracia dos juízes de fora, bem como dos donatários, que exercitavam uma autoridade descomunal, uma vez que o poder real se encontrava distante e sem comunicação. 

Essa combinação de ferocidade, vingança, ira, corrupção e desmandos foram nosso background nos primórdios da sistematização do direito penal. Olhar o passado nos traz tranquilidade e transparência para a compreensão do nosso direito, não como deveria ele ser, mas como de fato ele é: seletivo, anti isonômico, cruel e perverso em sua aplicação. Com isso é possível se pretender mudar algo em termos de direito penal, diferentemente da ilusão, que apenas sedimenta uma amálgama de ignorância na mente.


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[1] Riane Eisler no livro O cálice e a Espada faz uma interessante revisão antropológica a respeito das controvérsias relacionadas ao suceder de tais tipos de sociedades, correlacionando a violência como herança de um sistema patriarcal, predatório e caçador. 
[2] Para Durkheim, o crime, além de ser uma constante histórica - ou seja, um fator de normalidade - trazia um sentimento de coesão do clã a partir da noção de dor repartida. Para ele, quanto mais fortes os sentimentos em torno de determinados valores, mais o crime era repudiado. Era, assim, um "termômetro" para se aferirem os valores do grupo. 
[3] Além dessas variáveis podemos citar a privatização progressiva da propriedade, bem como as disputas de território, o desenvolvimento tecnológico (fogo, cobre) e, por fim, a estruturação política e expansionismo (Grécia, Roma).
[4] A crimina publica era a denominação dada para a ofensa direcionada ao todo, à coletividade, enquanto a delicta privata consistia na ofensa a bem ou valor privado. 


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