sábado, 21 de agosto de 2010

Funcionalismo penal e teoria dos subsistemas sociais de Luhman: menos ctrl c e mais leitura, advogado(a)s!!!

O que torna um pensamento, uma doutrina, uma teoria ou hipótese um paradigma? Importante responder a tal indagação, já que a proposta de mudança aqui é revelada e anunciada como sendo paradigmática.

Do finalismo para o funcionalismo: como seria esse “salto quântico” de imputações? Como o comportamento humano – e, portanto, sua densa gama de complexidades ligadas à consciência – poderia ser transposta para um ente?

A fim de responder essa pergunta, necessitamos do conceito de paradigma, palavra advinda do grego “paradeigma”, que significa padrão ou modelo, acepção posteriormente desenvolvida pelo físico Thomas Kuhn a partir do livro A estrutura das revoluções científicas.

O autor apresenta ali um diferencial entre paradigma e um modelo, pois, ao contrário deste último, o paradigma surge como uma idéia aceita pela comunidade científica e acadêmica, uma resposta possível para explicação de um fenômeno, não constituindo um modelo fechado de induvidosa certeza.

O termo ‘paradigma’ aparece nas primeiras páginas do livro e sua forma de aparecimento é intrinsecamente circular. Um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma. (1970, p. 43)

Uma revolução científica viria a existir, para Thomas Kuhn, a partir do momento em que um novo paradigma ocupasse integralmente um topos explicativo no lugar de um outro, que é, então, superado. Até a superação do modelo antigo, os paradigmas coexistiriam cada qual, em sua proposta descritiva e causal do fenômeno científico, num movimento de repulsa recíproca – já que são antagônicos.

Não constitui tarefa difícil, dentro disso, observar como o finalismo consolidou-se como paradigma dominante para atribuição de critérios de imputação pelo comportamento delitivo, ao mesmo tempo em que, dadas as mudanças, não mais consegue resolver todos os problemas originados numa sociedade de massas, anônima, que se lança rumo ao descumprimento de expectativas.

É exatamente nessa lacuna explicativa que a substituição paradigmática passa a ser possível, não sem antes existir uma verdadeira “batalha campal” entre as teorias, pois um paradigma sempre procura subjugar o outro na explicação e no enfrentamento do problema focado.

No início da proposta falou-se na superação de um problema sob a perspectiva de teorização em outro nível, citando, para tanto, o pensamento de Albert Einstein a respeito do assunto.

Pois bem, fazendo um cotejo com a situação aqui revelada, poderia ser afirmado que o finalismo não cumpriu as exigências do projeto de pós-modernidade que, enfrentando uma criminalidade de massa, eclodiu num descompasso com a necessidade de controle penal.

Daí a identificação pontual do problema, que não pode ser enfrentado na mesma planificação em que foi gerado: palco fecundo para o funcionalismo.

Em contraponto ao paradigma finalista, despontou, pouco a pouco, o funcionalismo, como modelo proemitente a responder aos anseios de sociedades pós-modernas, pós-industriais, marcadas pelo descompromisso com cumprimento de papéis, em vários níveis, pelos elementos que as compõem.

Os que perfilham o finalismo (não são poucos os doutrinadores e intérpretes do direito) advogam o argumento de sua característica essencialmente garantista e, portanto, assegurador da efetiva punição pela concretização do que volitivamente o agente almejou cumprir e cumpriu, numa proposta que se baseia – diga-se de passagem – nos antigos postulados iluministas, que partem da premissa de liberdade da vontade.

O que, por ora, discute-se em nível de funcionalismo (e que é importante para nossas futuras conclusões) é a imputação em função de cognição, de consciência, e não mais apenas a demarcação de vontade.

Reside na relação mente e corpo, vontade e cognição a mudança de paradigma, pois, ao se transpor a vontade de ação para a cognição como orientadora da vontade, rompe-se a segregação, considerando-se, assim, mente, matéria e consciência como processos interligados, e não apenas como domínios ou coisas distintas, cuja compreensão poderia ser engendrada em termos de descrição meramente objetiva .

Concentrando o foco, portanto, na consciência, Capra aponta um processo cognitivo emergente de uma atividade neural complexa, derivada de dois tipos diferenciados de experiências cognitivas: uma “consciência primária”, que surge quando os processos cognitivos passam a ser acompanhados por uma experiência básica de percepção, sensação e emoção, acrescida de um segundo tipo de consciência, uma noção de si mesmo, formulada por um sujeito que pensa e reflete (2002, p. 55).

Nesse contexto, conceitos outrora tidos como irretocáveis, tais como o de lei e de causalidade, cedem espaço para um “caráter probabilístico, aproximativo e provisório” (2001, p. 31), na qual a simplicidade de redução do fenômeno é um reducionismo simplificado da realidade.

Segundo Santos, as noções de lei têm cedido espaço, principalmente na biologia, às noções de sistema, estrutura, modelo e, por fim, de processo, culminando, assim, no questionamento acerca das respostas dadas pela causalidade, em sua difícil percepção de ontologia e alcance – o que é considerado como nexo causal.

No que diz respeito à desconsideração do indivíduo como parâmetro para uma percepção sistêmica, o ser humano pode ser redimensionado unidade orgânica definida em termos de estrutura componente de um sistema, sendo o mesmo o foco cognitivo de onde parte a percepção de sua realidade construída, na medida em que se prostra como observador e construtor operacional da realidade circundante.

Nesse pensamento, a compreensão de vida, vontade e cognição, poderiam ser igualmente redirecionadas para o conceito de atividade cognitiva, de modo a concentrar na comunicação e nos códigos lingüísticos a essência da montagem e da articulação de uma estrutura de rede que permitiria, portanto, a imputação de responsabilidade a um ente.

E como isso poderia ser possível no ordenamento jurídico brasileiro? Como atribuir sentido de cognição a uma pessoa jurídica?

O tema não traz muita novidade, pois a Constituição Cidadã, na inovação de um pensamento voltado para a proteção de valores comunitários, incorporou em seu texto o art. 225, §3°, punindo penalmente as pessoas jurídicas que ocasionem lesão ao meio ambiente.

O legislador constitucional, ao contemplar na redação da Carta a previsão de punição pela responsabilização penal da pessoa jurídica, deu o primeiro passo para a mudança paradigmática que se revela nessa pesquisa, pois agregou ao texto uma nova possibilidade de leitura das regras de imputação penal, a partir da percepção de risco.

Reconheceu o legislador o declínio da clássica relação de causalidade objetiva, por observar os riscos existentes na vida social, gerando, dessa maneira, um mecanismo auto-regulatório caracterizado pela atribuição de pena ao criador de uma conduta criadora de um risco relevante e juridicamente proibido.

Se uma conduta criou um perigo relevante e juridicamente proibido ao bem jurídico e se o resultado produzido correspondente à concretização do perigo juridicamente desaprovado, a intervenção do direito penal será necessária, municiando-se o intérprete, a partir da proposta constitucional, de produzir, em termos infraconstitucionais, uma modificação na maneira como realiza a aplicação das regras de imputação.

Torna-se, portanto, tarefa menos árdua a mutação interpretativa para abranger outras possibilidades, bastando intérprete harmonizar o texto constante do art. 13 do Código Penal Brasileiro às novas exigências delimitadas pela Constituição, texto que recepcionou o antigo e obsoleto Código Penal de 1940.

Deveria a sociedade aguardar a mudança legislativa para promover a modificação nas regras de imputação? Pode-se avaliar que não, uma vez que o texto legal contém, no art. 13, uma regra de causalidade que pode ser interpretada à luz do funcionalismo.

Quando se afirma que “o resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa” o texto não faz referência alguma a alguma teoria em especial, deixando abertas as portas para de entender na imputação ali descrita o incremento do risco produzido pelo agente.

Assim, não poderia o finalismo, por intermédio da teoria da conduta (comportamento humano voluntário, consciente e consistente num fazer ou não fazer, doloso ou culposo) ajustar-se ao comando constitucional, no caso de grandes empresas, que encobrem interesses escusos, utilizarem o expediente do funcionário para a realização de um ato criminoso atentatório à Administração.

Por essa teoria, o conglomerado – que se esconde por trás do agente-laranja – não cometeria crime, já que ausente o atributo de vontade organicamente direcionada ao fim. Em casos assim, pela teoria finalista do crime, a imputação deve ser feita a partir da individualização da conduta, por intermédio da busca de responsabilização pessoal.

Quando não se descobrisse, por outro lado, a identidade do agente envolvido, pelo benefício da dúvida, o indivíduo por ventura processado seria declarado inocente e a sociedade, insatisfeita na impunidade.

É exatamente nesse posicionamento que a grande criminalidade de astúcia locupleta-se à custa da Administração Pública e do bem comum, pois se infiltra no Poder Público, por meio da atividade de uma advocacia antiética e criminosa, que integra uma verdadeira organização-cascata, ou seja, disposta em vários níveis de estruturação.

No meio de tamanha burocratização da criminalidade – geralmente amparada por uma pessoa jurídica “de fachada” – a responsabilização não é possível, já que o paradigma de imputação ainda prestigia um direito penal liberal, que não se adequa à sociedade de contatos anônimos.

Os indivíduos que compões o vasto rol das sociedades, associações, fundações e demais entes personalizados, passam incólumes pela teia de controle e captação penal por conta da insistência do modelo em seguir as regras de demonstração de atos volitivos, o que não mais se ajusta à necessidade de conformidade de conduta à evitabilidade de risco, por este figurar no processo cognitivo (que tanto pode ser cometido pela pessoa natural quanto pela jurídica, pois as regras e as normas já são, de antemão, conhecidas e reveladas).

Mas, ao se transpor o paradigma finalista de volição individual, bem como de autonomia fechada do direito penal para um modelo de riscos e de processos cognitivos que contemplam pessoas e entes, a imputação é possível. Possível e viável, possibilitando, assim, o alargamento do controle social punitivo formal, contribuindo, assim, para uma proposta vanguardista de adoção do funcionalismo para desvendar o véu da impunidade em crimes correlatos à corrupção praticados por pessoas jurídicas.

Não se trata de simplesmente aplicar a teoria funcionalista, pois na frívola tentativa de transposição da volição para cognição que reside a maior crítica feita pelos finalismos aos funcionalistas, acusando-os de robóticos e violadores das garantias fundamentais individuais (Zaffaroni, 1998, p. 157), pois a mudança de paradigma pressupõe a mudança de entendimento e compreensão sobre a finalidade do direito penal.

Assim, diante da falaciosa “proteção de bens jurídicos” (Toledo, 1999, p. 13-14) propalada ao longo de 50 anos de doutrina penal, uma transformação vetorial torna-se necessária, para se assumir uma nova função a ser desempenhada por um direito penal pós-moderno: o controle social punitivo e a estabilização de um sistema normativo, com a ponderação no recuo e na intervenção do direito penal, de acordo com regras de imputação pelo incremento de risco proibido, ou seja, que se encontra além do que é permitido pela convivência.

É na compreensão de constituir o direito penal um subsistema integrado à política criminal, como código que atribui uma linguagem que elege o controle social punitivo como foco principal de orientação, não mais sendo concebido como mecanismo atuante quando outros métodos falhavam, mas sim como processo ativo de seletividade do que será punido, garantido pela lei e por outros sistemas de controle aglutinados na tarefa de manutenção da ordem social, em uma relação de implicação na qual o controle conduz ao desvio, não o contrário.

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