sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Por que é tão importante falar na Lei Maria da Penha?

Fonte da imagem: http://cantinhodoterapeutamassa.blogspot.com/2010/01/retorica.html

Para onde nos voltamos, o assunto da violência doméstica reúne séquitos de debatedores, quase sempre numa dualidade perniciosa - típica do contraditório exterminador de dissensos - que aponta o sentido de uma batalha campal de prós e contras, como se o humano fosse realmente uma entidade simples em sua configuração, e não um complexo de riqueza existencial que demanda muita sensibilidade de compreensão.

"Sou contra", ou "sou a favor" NADA resolvem em termos de discussão ampla e irrestita sobre a lei, porque, além de serem reducionistas, afastam do debate a conflituosidade e encampam, a fórceps, a lógica do autoritarismo no discurso.

Ah, mas, ao final, o direito (com letra minúscula mesmo porque definitivamente não é ciência, mas arremedo de tecnocracia verborrágica) e os operadores jurídicos lidam bem com autoritarismo, já que, para desenvolverem "teses" (que nada têm de teses, são demonstrações de pseudo-argumentos, balizados no "recurso a autoridade" (e não na autoridade contida no discurso).

Assim, muito simples: basta contrapor DUAS (apenas DUAS) "teses" e correr atrás - no mundo maravilhoso com ctrl c + ctrl v - dos autores/doutrinadores que "legitimam" o 'argumento"apenas proque foram eles a fonte áurea de criação da tese.

Ressalvadas as críticas que são feitas, e piadas à parte, por que é importante falar da Lei 11.340?
Porque é importante enxergá-la como mecanismo constitucionalmente hábil a exercer uma discriminação autorizada, ante sua inserção num panorama de mudança paradigmática, como via concretizadora de ação afirmativa em defesa da mulher.

Trata-se de uma mudança de mentalidade jurídica (se é que o jurídico tem alguma mentalidade, pois particularmente entendo viver em coma profundo, resultado de modificações paradigmáticas na maneira como se concebe a dogmática jurídica.

Tem-se como paradigma, segundo Thomas Kuhn, modelo ou padrão de um novo parâmetro explicativo, partilhado pela comunidade científica (1970, p. 43), no qual a inovação da teoria que chega coexiste, de maneira satisfatória, com aquela em relação a qual ocupou o espaço.

Dentro de tal enfoque, o novo paradigma, ou seja, o novo modelo explicativo exsurge superando o anterior, mas não necessariamente o destruindo ou invalidando por completo.

O novo paradigma aqui seria representado pela lei Maria da Penha, que se insere no resultado inovador de luta de movimentos sociais (no caso, do movimento de mulheres e no movimento feminista), foco de numa ação afirmativa em prol da mulher, que passa a coexistir com os postulados de um direito penal mínimo, de natureza descriminalizante e despenalizante, fomentado pelos auspícios dos princípios político-criminais que ensejaram a criação dos Juizados Especiais Criminais.

Isto porque, a proposta dos Juizados Especiais Criminais, em essência, insere-se numa nova ordem jurídica de redução da atuação estatal no controle punitivo, reduzindo, ainda, por resultado, o alcance do cárcere como sanção penal.

Esse paradigma de intervenção mínima, por seu turno, viria da necessidade de salvaguardar um sistema de proteção aos direitos fundamentais, adotando medidas de descarcerização, ante a constatação de falência do cárcere.

Pois bem, tomando como paradigma globalizante da tendência do início do século XXI o advento de legislações penais de redução de intervenção do Estado, a exemplo das Leis 9.099/95 e 10.259/2001, não seria desarrazoado afirmar que a lei Maria da Penha, com a ampliação do recrudescimento penal constitui o vetor de mudança paradigmática acima descrita.

Isso porque, antes do advento da Lei 11.340/2006, o art. 129 do Código Penal Brasileiro contava com uma gradação de pena dentro da faixa, para o caput, situado entre três meses e um ano, acarretando a via de atração de competência quanto ao julgamento para os Juizados Especiais Criminais, em virtude do disposto no art.61, verbis: “Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa”.

Tal mudança, diga-se de passagem, veio em prestígio ao que a Lei 10.259/2001 tomou como faixa de definição de crime de menor potencial ofensivo, produzindo, assim, no corpo da Lei 9.099/95 a modificação, por intermédio da Lei 11.313/2006. Desta feita, sujeitavam-se ao império dos institutos despenalizantes e descriminalizadores dos Juizados Especiais Criminais os crimes cuja pena máxima não seja superior a dois anos.

A lesão corporal, inserida no art. 129 do CPB trazia, contudo, uma latente preocupação, porquanto os delitos praticados no âmbito das relações domésticas, não raro subsumiam-se ao caput, quando captados, uma vez que o artigo é expresso, no sentido de tutelar apenas a integridade corporal ou a saúde, silenciando, contudo, em relação às agressões sub-reptícias e veladas, praticadas no seio do lar e visível apenas para os moradores – família.

Dentro da definição de crime de menor potencial ofensivo, toda a agressão que se enquadrasse na definição do art. 129 resultaria no encaminhamento, de imediato, para o Juizado Especial Criminal, que propõe, dentre tantas medidas, a substituição da pena constritiva de liberdade pela possibilidade de transação penal, não raro consistente no pagamento de uma cesta básica, ou ainda, na prestação de serviços à comunidade.

Tais medidas, para a problemática da violência doméstica, longe estavam de atribuir um caráter pedagógico, muito menos de represália retributiva, ou de qualquer natureza quanto à finalidade que se atribua à pena, uma vez que o ofensor continuaria a residir no mesmo lugar, a ocupar o mesmo espaço e a conviver com a vítima, que o “denunciou” à justiça. Isso, sem mencionar a possibilidade da agressão se perpetuar e, nesse sentido, até mesmo de se agravar, a exemplo do cometimento de ameaça, lesões graves ou gravíssimas ou, até mesmo, de homicídios .

Com a Lei 11.340/2006 adveio a modificação paradigmática anteriormente mencionada, em vários níveis de concretização de ação afirmativa. Primeiro, porque o diploma legal deixou explícita sua submissão, em nível internacional, à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.

Em nível de direito público interno, a mencionada lei expressamente guarda subsunção ao §8° do art. 226 da Constituição Federal, deixando clara sua adequação à ordem constitucional, bem como à tendência mundial ocidental de preservação dos direitos da mulher no bojo das relações domésticas, repisando, nesse sentido, que a Emenda 45 trouxe a absorção dos tratados e das convenções internacionais como emenda constitucional.

Com base na autorização expressa dada pelo art. 98, I da CF/88, a Lei 11.340/2006 estabeleceu a competência para o julgamento da agressão à mulher, definindo-a como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. Ou seja, o art. 2° da mencionada lei alarga o espaço de definição do que vem a ser agressão, para compreender, a teor do expõe mais à frente, por ocasião do art. 7o.

O ponto nodal da análise relaciona-se à discussão sobre a inserção de tal parágrafo, uma vez que ele aparentemente se antagoniza aos ditames do Direito Penal Mínimo, de reduzida natureza intervencionista, mormente ao se comparar à tendência descriminalizante e descarcerizante dos Juizados Especiais Criminais.

Isso porque, ao se confrontar o núcleo central do caput do art. 129 do CPB com o teor do que dispõe o parágrafo nono desse mesmo artigo, vislumbrava-se, antes do advento da Lei 11.340/2006, a atração de competência para os Juizados Especiais Criminais, mesmo que a violência fosse direcionada à mulher, no âmbito das relações domésticas e familiares.

Portanto, não seria desarrazoado afirmar que, nesse sentido, a lei Maria da Penha trouxe uma majoração penal, materializada no tratamento penal mais recrudescido, antagonizando-se aos mencionados preceitos contidos da teleologia de uma política criminal de intervenção mínima.

Como, então, avaliar esse aparente paradoxo?

Eis o sentido da mudança paradigmática propalada antes. Se a lei Maria da Penha for avaliada apenas e tão-somente em termos de superficial exame, pode ensejar o entendimento de ser a lei a contramão de um sistema de intervenção mínima e, dentro disso, representar um retrocesso na aplicabilidade da sanção penal.

Porém, de acordo com toda a exposição efetuada até então, vislumbra-se o acerto no recrudescimento penal motivado pela mencionada lei, como via de materialização de verdadeira ação afirmativa, em razão de ser a Lei 11.340/2006 uma medida que visa, especificamente, a eliminação ou redução da realidade histórica de hipossuficiência cometida ao gênero feminino no Brasil, de modo a estabelecer uma minimização dos efeitos acumulados em virtude das discriminações contra a mulher, ocorridas no passado histórico e que se projetam no presente e na possibilidade de futuro brasileiro.

Marcelo Lessa Bastos adverte para a peculiaridade da lei, criticando os Juizados Especiais Criminais, ante o desacerto das medidas de barganha em face da agressão à mulher:

"Nenhum dos antecedentes empolgou. A violência doméstica continuou acumulando estatísticas, infelizmente. Isto porque a questão continuava sob o pálio dos Juizados Especiais Criminais e sob a incidência dos institutos despenalizadores da Lei 9.099/95. Alguma coisa precisava ser feita: era imperiosa uma autêntica ação afirmativa em favor da mulher vítima de violência doméstica, a desafiar a igualdade formal de gênero, na busca de restabelecer entre eles a igualdade material." (2006, p. 1)

No âmbito de análise de uma proposta de punição penal baseada na prevenção e na efetividade de submissão à normatividade, o advento da Lei 11.340/2006 marca a transposição de um panorama de falência de um instituto penal, a exemplo das transações barganhadas na Lei 9.099/95, para a efetividade de um modelo de reprimenda que, pela sua especificidade, bem como pelos instrumentos jurídicos que traz em seu arcabouço, consolidam a busca de um sentido de retorno à fidelização à norma penal.

É dentro da prevenção geral positiva fundamentadora que a ação afirmativa em prol da mulher encontra a concretização de seus postulados, já que se trata de uma legislação complexa, que envolve a medidas de proteção em vários níveis, no intuito de assegurar o cumprimento das disposições sancionatórias a que se vincula. Eis o mencionado reforço à lealdade do indivíduo ao cumprimento dos postulados do sistema penal.

Dessa feita, diante de um compromisso de restauração da dignidade da mulher, sucateada ao longo do processo histórico brasileiro de violação ao gênero, o advento da Lei 11.340/2006 constitui medida afirmativa, de justificada discriminação, provocada no sentido de alcançar uma igualdade material, já que, no plano de igualdade formal, a mulher, não-raro, ao contrário de se firmar como sujeito de direitos, diuturnamente era tomada como objeto, vitimizada em face da agressão sofrida no ambiente familiar e doméstico.

Assim sendo, considerando que, ao contrário dos postulados descriminalizantes orientadores dos Juizados Especiais Criminais, a Lei 11.340/2006 formula seus pressupostos no aumento da severidade penal, pautada na razoabilidade da discriminação está a adoção de uma política pública preventiva, para fomentar no potencial agressor a submissão à lei penal, uma vez que o possível ofensor, observando o aumento da severidade penal, bem como a efetividade das medidas adotadas, poderá internalizar o contra-estímulo à agressão, para que a frase “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher” passe a povoar, apenas, o imaginário popular.

Referências:


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