quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Considerações sobre o estudo constitucional da tutela sobre a VIDA e o PATRIMÔNIO

Sempre que entro numa sala de aula de direito penal (escrito com letra minúscula porque entendo que não se trata de ciência, mas de teknè, ou seja, técnica) para conversar a respeito dos chamados "crimes em espécie" (descritos a partir da parte especial, desde o art. 120), reflito sobre a precariedade do estudo de uma dogmática penal que não considere a articulação com o direito constitucional.

Afinal, sendo hierárquica e imediatamente posicionado em um locus (local) de supremacia, nào seria desarrazoado afirmar que a Constituição (e não o CPB) é o primeiro foco de ordenamento jurídico a esquadrinhas e escalonar os bens jurídicos que serão tutelados infraconstitucionalmente.

Dentro disso - penso - o estudo de direito penal começa na CF/88, conjugando, ainda, a preocupação com a dimensão moderna de interpretação que prestigie o princípio da dignidade humana, desde o art. 1o. até a "primeira lista" de bens jurídicos tutelados, o caput do art. 5o.

O estudo analítico do tipo penal contido no art. 121 possui uma vasta estrutura - densa estrutura - de análise, sendo necessário, com isso, começar a argumentação jurídica de tutela a partir o eixo central, numa construção bem interessante...

O art. 5o., caput, da CF/88 elenca, de acordo com o texto, os primeiros bens jurídicos: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade".

Vida, liberdade, segurança e propriedade, enunciados ou referências (modelos ou valores) denominados bens jurídico, que nada mais são do que zonas de interesses (de cunho ético-social) DEFINIDOS politicamente por quem exerce o exercício do poder tido como legítimo e, dentro disso, elabora um rol de valores que entende ser relevante para estabilização e administração de conflituosidades.

É importante lembrar, dentro disso, que a atribuição do valor não reside na coisa em si mesma, mas no sujeito cognoscente (ou seja, no ser humano, quem CRIA e ELABORA valores, no mundo da cultura) que, em nível político, traz a taxatividade e, a partir daí, elabora juridicamente a norma.

Com isso, oportuno lembrar que os bens jurídicos são definidos legalmente, de acordo com situações políticas! Por isso que Nilo Batista sempre afirma SER TODO CRIME POLÍTICO, na medida em que a seletividade do que irá ser objeto de tutela depende de um ato de motivação política que se plasma na norma.

Em um contexto de exame crítico do direito penal, bem como a partir da severa crítica feita pelo abolicionismo (ver Zaffaroni, Hulsman, Wacquant etc.) precisamos refletir sobres os seguintes aspectos:

  • a "listagem de bens jurídicos" trazidos para a CF/88, CPB e leis extravagantes corresponde os bens jurídicos tutelados à satisfação geral?
  • é possível realizar uma lista que satisfaça razoavelmente a todos os segmentos ou grupos e subgrupos sociais? Em outras palavras, a dimensão de valor com que cada grupo vê os bens jurídicos é a mesma em termos de adequação de conduta à norma penal?
  • existem BENS JURÍDICOS disponíveis para O USUFRUTO DE TODOS E TODAS EM SOCIEDADE?
  • todos e todas têm acesso aos bens jurídicos?
  • quem realmente define quais os bens a serem tutelados?
  • os membros da sociedade (grupos, minorias, maiorias etc.) reconhecem, de maneira igualitária, os bens jurídicos escolhidos?
  • a igualdade formal (no plano abstrato) corresponde à igualdade material em relação ao acesso e gozo dos bens?

As respostas a tais reflexões - feitas pelos abolicionistas e críticos do direito penal e do sistema penal - levam a um profundo caminho de descrença nas "missões" de igualdade que o direito penal e o sistema penal pretendem cumprir. Isso é importante...o básico para se falar em direito, justiça e proteção penal-constitucional, principalmente quando se agrega à reflexão a agenda de compromissos que o Estado Democrático de Direito assume diante do postulado de dignificação do ser humano...Ufa, que árdua tarefa nossa!

Acho particularmente interessante começar o estudo dos crimes contra a pessoa e patrimônio a partir do rol feito no art. 5o., caput, pois - para quem gosta de "dimensões de direitos" - trata-se da "primeira linhagem" de preocupações concernentes aos chamados direitos de primeira geração (o EU, expressão da individualidade).

Não gosto de hierarquizar direitos, pois isso pode dar a falsa sensação de primazia, hierarquia e importância aos direitos liberais, ou seja, à expressão máxima de uma INDIVIDUALIDADE que esqueça o grupo.

Daí apreciar bastante o trabalho dos comunitaristas que, como Michael Walzer, Charles Taylor, Michael Sandel e Alasdair Maclntyre, A. Honneth, vêem o indivíduo como um ser historicamente situado, em oposição a um caráter universalista a-histórico, que rejeita as multiplicidades culturais e as identidades sociais presentes na sociedade contemporânea.

Ou seja, ao invés de focar o primado da lei como razão (constitucionalismo liberal), opto pelo penalismo-constitucionalismo comunitário: primado da lei como vontade política de uma comunidade histórica, que olha para os grupos. É o cerne do debate no STF atualmente...

Qual a consequência disso? Ponderar analítica e criticamente o sentido do que "vida" e "patrimônio" representam, a partir da CF/88, para a diversidade presente na sociedade brasileira, principalmente considerada a partir dos grandes contrastes (divisão de renda injusta, linha de miséria, falta de acesso aos bens de consumo, impunidade de criminalidade de colarinho branco etc.).

Acho que é mais ou menos isso...

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