quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Globalização, modernidade e crise: o neoliberalismo e a transnacionalização de códigos jurídico-repressivos

O que tem a globalização a ver com o direito penal?

Hahaha, muito mais do que pode supor nossa vã filosofia...

A globalização uma tênue e superposta fronteira de segregação entre setores econômico, político, social e jurídico na pós-modernidade, onde ressalta o paradoxo entre a tendência não-intervencionista do Estado nacional, com a perda de sua autonomia e centralização, concomitantemente à revalorização do indivíduo.

Advém o pilar da emancipação como princípio organizador de manifestações sociais, como expõe Santos em relação ao paradigma pós-moderno de agravamento da injustiça social, materializado na concentração de riqueza, bem como na exclusão social que, em larga escala, propagam-se pari passu com a globalização (1999, p. 83).

O intervencionismo do Estado-Providência é substituído por uma expressão bicéfala, ora atuante, ora ausente nas relações com os grupos formadores das comunidades, a exemplo do intervencionismo mínimo de mercado, acompanhado do aumento da repressão da criminalidade, na defraudada “guerra” pelo estabelecimento da lei e da ordem.

Restam reunidas, assim, condições propícias para que o mundo passe a experimentar uma progressiva interconexão de fronteiras culturais, econômicas e políticas, como resultado da panoramização de mercados e conseqüente aproximação entre comunidades, Estados e indivíduos.

Este fenômeno finda por modificar os contornos espaço-temporais do mundo ao longo dos últimos 20 anos de pós-modernidade, a exemplo da formação de oligopólios transnacionais e mercados regionais consolidados, assentados em uma divisão do trabalho de origem descentralizadora, propiciadora da formação de espaços de produção globalizados, resultado direto de uma tendência de internacionalização do capitalismo verificado a partir do pós-guerra (CORSI, 1997, p. 102-108).

Como conseqüência, salienta-se a coexistência de centros imanentes de conhecimento e poder, por meio do rompimento abrupto de padrões isolados ou localizados, para abranger a diluição de valores e parâmetros decorrentes da planetarização da economia, aliada à orientação política, social e jurídica que lhe dá suporte.

Pode ser inferida desta conjunção de fatores a latente crise nos paradigmas pós-modernos do Estado-nação, na medida em que a noção de soberania - reconhecida como poder político-jurídico incontrastável de supremacia interna e irrestrita independência - sofre uma necessária redução de alcance, para se ajustar às novas necessidades de coexistência de múltiplos focos injuntivos de poder (IANNI, 1997, p. 18).

Disto desponta a reflexão sobre a existência de fenômenos de verticalização e horizontalização nas relações entre os Estados, o que denota eventuais vínculos de atributividade hegemônica de um país em outro, findando por reduzir a globalização a uma mera disputa política de jogos de espaço, onde os países periféricos representam apenas satélites geopolíticos de manipulação de interesses.

Este modelo contraditório encontra nos primados éticos os limites de sua atuação, por não haver respostas aos seguintes questionamentos: existe uma lógica valorativa? Em caso afirmativo, é possível a homogeneização de estruturas – políticas, sociais e jurídicas, ante à diversidade cultural firmada e revelada pelo mesmo fenômeno? Sendo confirmada tal assertiva, quais são os novos parâmetros e os agentes responsáveis pela dicção de tais valores?

Pelo exposto até o momento, o fenômeno globalizante é o resultado de um maciço movimento assentado nas modificações proporcionadas pela irradiação e sedimentação da lógica operacional da expansão do capitalismo de mercado, erigido em escala transnacional, com o suporte oferecido pelos coetâneos movimentos culturais, políticos e jurídicos hegemônicos.

Por esta razão, antes de representar uma proposta emancipatória, na qual o mundo, reunido em torno de uma idéia partilhada de crescimento auto-sustentável, a globalização é dimensionada, no âmbito dos objetivos que o presente trabalho almeja, em uma realidade excludente, em que as promessas do capitalismo não alcançaram as propostas nas quais assentaram seu suporte ideológico e operativo.

Ao contrário de uma propalada “aldeia global”, o fenômeno globalizante exsurge como resultado da existência de pólos hegemônicos e contra-hegemônicos de poder, presentes nas distintas áreas do conhecimento humano, na qual a bivalência de percepções distintas do fenômeno convida o leitor à confrontação do tema a partir da reflexão.

Resta sobrelevar, dentro das opções dimensionadas, a localização do direito, do sistema penal, e do controle social como subsistemas inseridos nesta realidade fenomenológica, pois, contrariamente à lógica kelseniana de neutralidade do direito, este está sobremaneira permeado, no âmbito de um suporte sistêmico, pelos influxos pulsantes qual processo multifacetado.

Dallari aponta os possíveis reflexos da globalização no campo do direito, com base na coexistência de duas tendências antagônicas e complementares: “uniformização do direito no plano global e a diferenciação do direito em função das particularidades do Estado ou de ente dotado de poder que o substitua” (1999, p. 255). Acredita o autor na valorização do direito internacional público, bem como na adoção, por parte do direito interno de Estados, de normas e instituições similares ou idênticas.

A questão, contudo, é bem mais complexa do que o enfrentamento jurídico-normativo, abarcando reflexos no subsistema social que o direito, o direito penal e o sistema , penal, bem como o controle social representam.

As transformações ao longo da expansão de um capitalismo de livre mercado representam o marco de modificações por meio das quais o Estado liberal veio sendo paulatinamente convertido em instrumento operacional da consecução de objetivos concretos, compatibilizado à tônica de promoção do crescimento econômico operacional que o direito representa como domínio lingüístico, de modo que a centralização do Estado cede espaço à articulação de microestruturas normativas, segundo Bicudo em A globalização e as transformações no Direito Penal (1998):

"Diante desta realidade, a concepção do direito como um sistema fechado, hierarquizado e axiomatizado de normas de conduta, concepção proveniente do constitucionalismos, foi sendo substituída por um direito visto como conjunto de microssistemas legais aptos a captarem a crescente complexidade da realidade socioeconômica.
Enquanto no paradigma do direito positivo oriundo do Estado liberal, o sistema jurídico é caracterizado pela completude do ordenamento jurídico, no qual predomina a coerência formal e logicidade interna, isento de lacunas e antinomias ; esse sistema jurídico emergente se caracteriza pela multiplicidade de suas regras, pela variabilidade de suas fontes e pela provisoriedade de suas estruturas normativas, que são quase sempre parciais, mutáveis e contingentes.
Essa situação torna-se ainda mais complexa com o fenômeno da globalização econômica, no qual, os sistemas técnico-científicos, produtivos, financeiros e comerciais especializam-se e subdividem-se continuamente, produzindo suas próprias regras, seus próprios procedimentos e suas próprias racionalidades e concepções de justiça, dificultando, assim, o trabalho do legislador e, ainda, condicionando a aceitação das prescrições produzidas pelo Estado aos distintos sistemas. (1998, p. 99)"


Como consectário direto, Bicudo sustenta que o fenômeno da globalização econômica é precursor de um pensamento funcionalista no primado intervencionista do direito penal, antagônico a sua função outrora garantista, resultado de uma globalização hegemônica de moldes estadunidenses e japoneses, mormente no que diz respeito à orientação do direito na atribuição de concretude às metas definidas por um modelo programático de multiplicidade de regras e variabilidade de fontes (1998, p. 98). Ou seja, O NEGÓCIO É A CIFRA RENTÁVEL DO NEGÓCIO!

A soberania jurídico-positiva do Estado é, portanto, constantemente questionada, por meio de estruturas e técnicas de descentralização, desinformalização, deslegalização e desconstitucionalização que, segundo Bicudo, estão dispostas a partir das seguintes constatações:
ampliação da incompatibilidade entre o tempo da legislação processual em matéria civil e penal e o tempo do processo decisório no âmbito dos mercados transnacionalizados, ensejando o desenvolvimento de procedimentos de arbitragem;
progressiva redução do grau de coercibilidade do direito positivo;
reprivatização do direito, com a paulatina substituição da tutela governamental pela livre negociação;
enfraquecimento progressivo do direito do trabalho;
internacionalização dos Estados;
aumento no ritmo de regressão dos direitos sociais e humanos, em face da relativização da soberania dos Estados;
fortalecimento da sociedade civil em face do Estado, ante à deslegalização;
expansão hegemônica dos modelos jurídicos anglo-saxônicos, com base no discurso da eficiência, do pragmatismo e da flexibilidade, em detrimento da garantia do processo e segurança do direito (1998, p. 100-101).

O direito penal identifica-se com a política criminal, inserido como subsistema social, onde “o conteúdo das categorias do sistema dogmático deve determinar-se em função do que resulte mais adequado ao sistema social em geral ou a um subsistema social em particular, tal qual o subsistema do direito penal. Funcional, neste sentido, é tudo o que se requer para a manutenção do sistema.” (1998, p. 104). Daí a ressalva realizada pela autora, que percebe nesta conexão o esvaziamento do direito penal enquanto previsão valorativa e garantista, para representar uma opção política e reacionária de retribuição jurídico-repressiva.

O questionamento sobre os fins a que se destina o direito penal encontra na mudança teleológica de proteção de bens jurídicos para uma missão funcionalista de manutenção do sistema, de acordo com a autora:

"Inicialmente, a mudança do foco da finalidade do direito penal, de defesa dos bens jurídicos caracterizados por interesse essenciais à convivência humana , para a manutenção do ordenamento jurídico, traz em si algumas conseqüências.
O direito penal deixa de ser a ultima ratio para a resolução dos conflitos sociais, passando a ser a prima ratio. O direito penal, neste contexto, passa a ser instrumento da política criminal vigente, para a qual se faz necessária a proteção jurídico-penal para os hipossuficientes da sociedade. Assim, problemas ambientais, drogas, criminalidade organizada, economia, informática, controle bélico, feminismo, são aéreas das quais se encarregará o direito penal. A resposta penal surge como primeira, se não a possível saída para controlar esses problemas.
O direito penal funcionalizado pela política criminal apresenta uma justificativa mais fácil perante a opinião pública , mas encerra em si um perigo, qual seja, o de que são dadas tarefas ao direito penal que ele não pode cumprir, ou que cumpre a despeito de assegurar as garantias e princípios que lhe são básicos. (BICUDO, 1998, p. 104-105)
"

Em Globalização e Direito Penal Brasileiro: Acomodação ou Indiferença?, Silva aproxima diretamente a globalização do direito, entendendo o fenômeno como “um processo uniforme no qual os Estados-nação, culturas nacionais e, consequentemente, o Direito são transformados pela integração econômica.” (1998, p. 81).

Neste sentido, tende o direito a ser açambarcado pela economia, sendo, por conseqüência, convertido em “simples instrumento de afirmação dos ditames do mercado e dos interesses dos setores produtivo e financeiro” (SILVA, 1998, p. 84), despontando a predileção por padrões jurídico-positivos diferentes da tradição romano-germânica.

O direito penal atravessa um momento contraditório, pois, se de um lado a desregulamentação, descodificação e a desestatização acompanham um movimento globalizante, de outro, há um nítido intervencionismo estatal, consubstanciado na ampliação da repressão ao crime, quer seja construindo novos tipos penais ou incriminando atividades em todos os ramos sociais.

O sistema jurídico-repressivo firma-se como necessidade premente, dentro da lógica sistêmica de impulso aos postulados de eficiência, pragmatismo e operatividade, quer seja por meio da relativização dos princípios da legalidade e tipicidade, como, ainda, a redução paulatina do sistema de proteção dos direitos fundamentais do indivíduo (SILVA, 1998, p. 85).

Resulta daí, a estruturação jurídico-repressiva num corpus aberto às necessidades do livre mercado, na medida em que este deflui da lógica neoliberal marcada pelo fluxo de valores e estratégias globalizadas pelos pólos hegemônicos de poder (econômico, cultural ou político).
Sintetiza Silva alguns consectários de uma globalização hegemônica experimentados pelo direito penal brasileiro:

promulgação de excessivas leis extravagantes, com a criação de novos tipos penais;
sentenças penais embasadas em jurisprudências estanques da realidade, compartimentadas de forma fechada, preservando e reproduzindo uma atitude dogmática, estimulando a preferência pela súmula vinculante, em uma reprodução do precedente judicial estadunidense;
literatura penal representada pela edição de manuais práticos de direito penal, sem inovações substanciais, fulcrados nos ensinamentos meramente dogmáticos nos moldes do pensamento clássico da Escola Positiva;
privatização do direito penal, por meio da adoção de parâmetros e institutos processualísticos civis, com o desvio de perspectiva de utilização do princípio da oportunidade;
aumento da segurança privada;
flexibilização ou relativização de garantias no campo penal;
edição de leis mais severas e gravosas, resquícios do Movimento da Lei e da Ordem, que dramatiza a violência e incute a sensação de insegurança e impunidade na opinião pública;
reforma judicial e ensino jurídico calcados no dogmatismo acrítico e descompassado com a realidade, de modo a não propiciar a multidisciplinariedade e o humanismo (SILVA, 1998, p. 93).


Zaffaroni entende no fenômeno globalizante um processo irreversível de implementação de um poder planetário, revestido não somente de um novo eixo, mas também de uma ideologia legitimante, centrada principalmente num paradigma centro-periferia, como aponta em La globalización y las actuales orientaciones de la política criminal (2001).

Segundo o autor, podem ser sintetizadas as características desse novo poder planetário:

existência de uma revolução tecnológica, de natureza comunicacional;
redução do poder regulador econômico, favorecendo, assim, um mercado internacional;
concentração de capital, com a predominância do capital financeiro;
predileção pelo custo zero, bem como pela redução de custos, por meio do corte de pessoal e da busca por menor tributação;
competitividade do poder político dos Estados pela atração dos capitais, principalmente em países periféricos;
uso do salário, do emprego e da tributação como variáveis de ajuste, provocando desemprego e deterioração salarial;
perda da capacidade de mediação do Estado entre o capital e o trabalho;
carência de poder, por parte dos sindicatos, para o exercício de contestação
limites mais vaporosos entre o ilícito e o lícito, ante à especulação financeira e sua ética;
reconhecimento irrestrito de todos os paraísos fiscais, sem que nada seja feito para obstaculizá-los;
inversão do sistema tributário, para compensar a menor tributação do capital com a maior taxação do consumo;
conseqüente reflexo desse fenômeno de poder direcionado à amplitude de uma relação excluído-incluído. (2001, p. 142-143)


Zaffaroni aponta para o predomínio do poder econômico planetarizado, em detrimento do poder político nacional, sob a égide de uma globalização valorativa, na qual inexiste efetivamente uma sociedade global, nem tampouco organizações internacionais fortes, ou um Estado global.
Entende o autor que a transposição desta realidade para o âmbito de análise do sistema penal igualmente gera o referido desconcerto ideológico, uma vez que:

"A la carga emocional del observador como partícipe de esa realidad, se añade la del especialista y se transciende cualquier capacidad humana de tolerancia a lo incomprensible. Vemos la criminalidad de mercado a escala macroeconómica sin ninguna contención y sus réditos en refugios fiscales conocidos, consentidos y seguros . (2001, p. 144)"

Sintetiza sua crítica à compreensão do mundo-circundante enquanto um grande sistema social autopoiético, ao asseverar:

"El mundo parece sin timón: cada personaje, por poderoso que se crea o manifeste serlo, aparece con um microchip descartable en un enorme ingenio electrónico: no puede dejar de hacer lo que hace, so pena de inmediato reemplazo. Los teóricos del sistema lo celebran com el nombre de autopoiésis, en función de la cual de nada sirve hacer discursos advirtiendo sobre los riesgos de cataclismos sociales, de crisis total del sistema financeiro o de recalentamiento planetario, frente a un montón de microchips insertados en el ingenio o en oferta al mismo a un buen número de personas que sonríen frente a los espejos . (2001, .p. 145)"

Zaffaroni entende estar superada pela globalização o antigo paradigma etiológico simplista, uma vez que a complexidade causal ante ao panorama globalizante é emaranhada pela interconexão de fatos e circunstâncias.

O direito penal está, segundo o autor, prejudicado quanto à identificação causal, quer seja no âmbito de uma expressão de racionalidade kantiana ou hegeliana, como também em sede de um pensamento sistêmico, convertidos em uma lógica de custos e benefícios da conduta humana refletida:

"Cuando se confunde el deber ser con el ser, el idealismo racionalista se desvirtua al grado de irracionalismo radical, pues no hay peor irracionalismo que dar por hecho la racionalidad humana, con su conseguiente desbaratamiento de cualquier estímulo para luchar por ella, toda vez que no se lucha por alcanzar um hecho natural . (2001, p. 147-148)"

A globalização socorre-se em ideologias do passado, fomentando uma lógica estruturante de livre mercado, que acarreta anomia generalizada, propiciadora de exclusão social e violência estrutural, inviabilizando qualquer política-criminal de prevenção primária.

O direito penal, bem como as instâncias formais de controle social estão legitimadas, dentro deste contexto, a resolverem todos os problemas e casos que venham a engrossar suas fileiras, motivando aquilo que Zaffaroni entende como um “sistema cerrado e robótico” do direito penal, caracterizado por mensagens virtuais de espetáculo legiferante, que traz como resultado direto o aviltamento do sistema de garantias, sob a escusa de não funcionalidade, prisma de racionalidade elencado como parâmetro inspirador de gerações futuras, que irão reproduzir essa operatividade mecânica (2001, p. 157).

MATRIX, MINHA GENTE, MATRIX!

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