quinta-feira, 16 de agosto de 2012

O empoderamento das advogadas no Distrito Federal: mais cidadania e menos beneplácito


Transformar não significa inverter pólos de poder, nem criar novas dominações. Transformar é detectar os pontos de inflexão do poder e os mecanismos que ensejam seu exercício; é eliminar a diferença simbólica dos sexos, geradora de desigualdade política, é mostrar o ilusório das construções sociais. Afinal, tudo que foi construído pode ser modificado”. Tania Navarro Swain

Uma noite inesquecível, por certo, a de ontem, por envolver matizes tão diferenciadas de vivências do feminino, o bastante para que o debate fosse muito rico e produtivo em termos de metas a serem cumpridas para que possamos elaborar, concretamente, vivências paritárias de empoderamento e atuação política no âmbito da Ordem dos Advogados do Brasil [ou deveria ser Ordem dos Advogados e das Advogadas do Brasil?]

A fala anterior à minha - da nobre colega Estefânia Viveiros - mostrou profunda honestidade na percepção dos preconceitos latentes que nossa classe traz para com o ingresso da mulher no espaço público de tomada de decisões. Desde piadas de duplo sentido até desqualificação em face de uma suposta vulnerabilidade, tudo ainda denota preconceito, de modo que a indiferença a ele - chamamos isso na literatura feminista de INVISIBILIZAÇÃO - acaba se convolando na mais pífia e perversa maneira de se manter o status quo, pois a conveniência da omissão acaba, ao final, legitimando, ainda mais, o preconceito. 

O tema proposto para minha fala "Propostas para chegar ao poder" trouxe muita preocupação, pois, dependendo do viés a contextualizar o assunto, poderia até ser incompreendida na dimensão qualitativa do que, ao final, desejei compartilhar. Na experiência da militância, incompreensão gera ruído e, como sabemos, o ruído traz lacunas interpretativas que podem muito bem ser preenchidas com qualquer conjectura ideológica e, no caso, uma que me traz prevenção: a leitura ANDROCÊNTRICA do mundo. 

Dentro disso, alguns pressupostos são necessários para podermos elaborar discussões sérias e balizadas sobre a equalização de poder entre gêneros, e não ficar na exposição superficial de confabulamento de experiências sem a reflexão a respeito delas. Não pretendo, com essa afirmação, negar validade às experiências e vivências de discriminação de gênero na profissão de advogada. Nunca, pois seria uma incoerência incompatível com o trilhar que até então tenho feito na existência. 

Experiências são o colorido de nossas vidas e o substrato que nos impele, até aqui, ao exame de consciência em relação ao nosso papel no mundo, ou melhor, aos nossos papeis (múltiplos e distintos). Mas pautar uma política pública ou delimitar uma agenda efetiva de demandas apenas no primado de uma experiência irrefletida - ou seja, com lastro na reprodução de uma matiz vitimizante,  representa, para mim, cegueira bruta em relação ao que viés acadêmico e ativista traz de completude em interpretar a vivência de discriminação. 

Apenas desejo compartilhar a reflexão sobre o fato de não sermos mais vítimas, pois, enquanto advogadas, devemos exercitar a superação do estado de impotência na fala e na ação, bastando lembrar, dentro disso, que ad + vocare é chamar ao lado de, o que nos coloca em uma posição de horizontalidade em relação aos nossos pares. 

Nesse viés, recuso-me a me enxergar como vítima de um sistema "voraz", por igualmente me recusar a reproduzir a lógica escalonada que os milhares de anos de patriarcado impuseram às mulheres. Ser vítima é repetir a história de discriminação, e não se emancipar. Isso é um sofisma que ainda cerca muitas mulheres que se enxergam como empoderadas (geralmente economicamente empoderadas) mas que, a despeito do nominalismo sedutor que a palavra "empoderamento" traz, acorrentam-se nos grilhões dos papeis sociais androcêntricos que ainda insistem em cumprir. 

Ainda justificam omissões num binário de exercício de papeis essencializados, conclamando um ethos biologicista para acionar alguns conceitos e algumas agendas feministas para justificar a abstenção em relação à luta. Importante, dentro disso, resgatar a pauta feminista da diferença entre viveres e experienciações do que é "ser mulher". 

Parafraseando Beauvoir, nascemos fêmeas - ethos biologicista - mas nos tornamos mulheres ao longo de nossas experiências, que não são iguais, não são homogêneas e, com isso, não nos colocam em um ponto obscuro do Universo a clamar por direitos que, a bem da verdade, representam o primado da apropriação masculinista de nossas vontades e de nossos corpos. Com isso, nem toda demanda da mulher resume-se à reflexão sobre a maternidade, sobre ética comportamental e, sobretudo, sobre como esperar a benesse do androcentrismo para com as mulheres que desejam ingressar no espaço público de tomada de decisões. 

Dialogando com experiências distintas das minhas, nunca me vi como frágil, bem como nunca me senti humilhada na atuação como advogada, porque, de fato, minha opção, desde minha socialização primária - fruto do ativismo feminista de minha própria mãe, que rompeu barreiras para me transmitir a igualdade - foi de me lançar no mundo em paridade de armas, tendo consciência das iniquidades de gênero, mas não me prevalecendo dos estereótipos fomentados pelo androcentrismo para que minha voz fosse ouvida aos quatro cantos. 

Com isso, reconheço, de outra sorte, que apenas se firmar no mundo abstração das leituras acadêmicas pode representar um apego a utopias inexequíveis, sagas quixotescas de "busca" de algo que, a bem da verdade, se não for pontuado, nem ao menos saberemos o que é...

Dentro disso tudo, entendo existir um projeto inacabado em relação ao que se depreende de uma "proposta para se chegar ao poder". Na verdade, não vejo exatamente uma chegada, mas um processo que se renova diante de cada conquista e se revitaliza ante cada derrota, de modo a permitir o progressivo exercício paritário de poder político. O que se alcançou até aqui não representa o esgotamento das possibilidades de trajetórias das mulheres, mas, antes, pontos de irradiação de novas pautas de exercício político na tomada de decisões ante o espaço público - que é de todas e todos. 

Outra desmistificação que precisa ser feita diz respeito ao exercício de poder na ação, sem que este poder seja algo a ser alcançado. Em Microfísica do Poder - a despeito de eu tomá-lo, muitas vezes, como um estruturalista estático - Foucault já delineava o exercício microcapilarizado de poder, numa atuação, a todo o tempo, por todos e todas as pessoas, e não como um objeto apreensível de captação. Por isso não consigo validar uma chegada em poder algum, mas, antes, um exercício pessoal, no aqui e no agora, em escala radial, praticado por todos e todas em sociedade. Acho mais honesto, democrático e, acima de tudo, igualitário.

Nesse contexto, o que haveria de ser empoderamento? Processo contínuo de decisão, por intermédio do movimento pessoal e coletivo de conscientização e tomada de controle de nossa própria vida, por intermédio de ações no mundo, a partir da reflexão mas, sobretudo, da atitude dialogada com o outro - qualquer que seja esse ou essa outro ou outra. Empoderamento pressupõe uma dimensão cognitiva, que nos remete à ideia de conscientização desse nicho ainda existente de disputas e discriminações, bem como o desejo de mudança. 

Além disso, supõe uma vinculação psicológica, de cunho sentimental, inerente a todo ser humano, no sentido de produzir o empuxo necessário para o implemento da mudança. Sem deixar de mencionar a dimensão política de executoriedade dessa mudança, acrescida à dimensão de autonomia econômica, para que os pactos de subordinação ao masculinismo não encontrem espaço. 

Toda reflexão, assim, sobre empoderamento, esbarra na concepção de contextualização do tema no reconhecimento de uma estrutura política, cultural, econômica e simbólica (esta mais real e perversa, por sustentar as demais) patriarcal, extrapolando o sentido estático, que remete, em geral a um sentido fixo, uma estrutura fixa que mediatamente aponta para o exercício e presença da dominação masculina[1]

Esse é, para mim, o ponto central: superar a ingenuidade de se entender como aniquilado o preconceito de gênero, pois, a rigor, nunca antes o androcentrismo esteve tão arraigado como hoje, mas de maneira simbólica e perversamente sutil, pois só assim queda difícil sua deflagração. 

O pequeno número de advogados na palestra de ontem retrata bem esse quadro, pois legitima a ideia de ser, ainda, tabu, falar em equalização de gêneros na Ordem dos Advogados e das Advogadas do Brasil. Escusas das mais diversas foram dadas para as abstenções masculinas de ontem. Desde a "falta de divulgação" - que, obviamente, não corresponde à verdade do que as redes sociais nos dão de suporte para a transmissão da informação, até mesmo os jogos de futebol, passando por escusas de ordem "pessoal" (como se o político também não fosse pessoal). Tudo foi colocado à mesa para encobrir a verdade: OMISSÃO ante propostas de alocação das advogadas para o efetivo espaço paritário de representatividade na Ordem. 

Aliás, esse jogo não é novo, pois é o cenário que está deflagrado há 3.000-5.000 anos, por meio de uma dinâmica sectarizada e elitizada de poder, onde o privado passou a ser domínio secreto das mulheres (bruxas, sacerdotisas e detentoras do sacerdócio tido como emocional, hermético e histérico), enquanto o público foi visibilizado e reconhecido como cenário masculino. Essa percepção, ao meu ver, trabalha num binário patriarcado-matriarcado que, embora útil como categoria de interpretação, necessita oxigenação, para que possamos resgatar a ideia de um modelo de parceria, sustentáculo de uma proposta paritária de representatividade no cenário da OAB.  

Um problema muito sério é a pressuposição de existência de uma constante histórica de matriarcado no lugar de patriarcado, pois, segundo algumas propostas de releitura histórica, isso era perceptível em sociedades pré-patriarcais, que não foram necessariamente matriarcais (Riane Eisler).

Partindo para dados...o que temos? Claro que a mulher ingressa mais na faculdade de Direito. Inegável, bem como inegável o contingente de mulheres no mercado de trabalho, bem como, em termos de Estado, fazendo parte da Administração. O que se discute, por agora, é o ínfimo numerário de mulheres que estão à frente de posições constitucionalmente instituídas como eixos de decisões jurídicas, políticas e administrativas. 

Elaborei um quadro bem simples de dados alarmantes...

ÓRGÃO
TOTAL COMPONENTES
TOTAL DE MULHERES
PORCENTAGEM
SENADO
81
12
14,81
CÂMARA
513
45
8,77
MINISTROS DE ESTADO
24
10
41,66
STF
11
2
18,18
STJ
31
5
16,12
TJDFT
40
7
17,50
TJDF – TITULARES
181
64
35,35
TJDF – SUBSTITUTOS
114
45
39,47
CÂMARA LEGISLATIVA
24
5
20,83
OAB/DF
54
8
14,81
OAB*
81
8
9,87
ELEITORAS


40-50%
PROMOTORES
TITULARES
DF
248
99
39,91
PROMOTORES
SUBSTITUTOS
DF
50
22
44
PROCURADORES
DE
JUSTIÇA
DF
39
18
46,15
SUB PROCURADORES
61
19
31,14
*DF tem uma situação anômala, pois dos 3 conselheiros, 2 são mulheres, num total de 66,66%.

Como se percebe, ainda temos muitos espaços e muito percurso a ser trilhado.  No âmbito do Poder Executivo, a discrepância é menor, pois, além da Presidenta Dilma, temos um universo de 41,66% Ministras de Estado, sem deixar de mencionar o significativo acervo de mulheres compondo o segundo escalão do governo. 

Em termos de Poder Judiciário, pífia é a incursão feminina no universo de decisões jurídico-políticas, bastando observar que somos respectivamente 18,18%, 16,12% e 17,50% do STF, STJ e TJDFT. Essas cifras colocam por terra a igualdade de acessos aos cargos de expoência no Brasil, fazendo-nos lembrar que a discriminação está ainda operante em nosso país. 

No âmbito da Ordem dos Advogados e das Advogadas do Brasil ainda é mais trágico o cenário, pois, em nível de Distrito Federal, nossa participação chega a 14,81%, reproduzindo, assim, a falta de paridade na representatividade do órgão. Quando muito, somos titulares de uma comissão de assuntos relacionados às mulheres, quando, a bem da verdade, num pluralismo em que somos pares, o que se demanda é paridade na composição do Conselho. Ao menos é o que vejo em termos de isonomia.

Se é bem certo que existem sistemas de cotas no Brasil, que alcançam cifras de 30%, importante lembrar que a legitimidade dessa "deferência" cai por terra se lembrarmos se tratar de beneplácito de quem está no poder, ainda à maioria - universo masculino - para com as mulheres, o que é contraproducente em termos de sucesso em demandas de equalização de gênero.

Cheguei a ouvir ontem, em alguns momentos, concitações a respeito de se proporem concretamente medidas em relação a isso e, salvo melhor juízo, entendi na paridade de composição de chapas, por exemplo, uma boa medida de equalização. Ao invés de se pugnar os beneplácitos que adviriam da parcimônia de quem está no epicentro do poder, façamos diferente a partir de nossa prática. Só acreditarei em equalização de gênero na OAB o dia em que abrir o site e contabilizar o mesmo número de conselheiros e conselheiras. O que estiver distante disso é, para mim, diletantismo puro e simples...






[1] Patriarcado se refere a uma forma, entre outras, de modos de organização social ou de dominação social. Conceito clássico weberiano: “chama-se patriarcalismo a situação na qual, dentro de uma associação, na maioria das vezes fundamentalmente econômica e familiar, a dominação é exercida (normalmente) por uma só pessoa, de acordo com determinadas regras hereditárias fixas.” (Weber, 1964, t.1.p.184).

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