O Cadastro Interacional de Doenças (CID) traz o capítulo relacionado às complicações do parto e nossos problemas começam aqui, pois, lendo o cadastro, nessa parte, em especial, observamos não existir sequer menção ao que está colacionado no art. 123 do CPB sob a alcunha de "estado puerperal".
Primeiro porque no CID 10, bem como na medicina, puerpério é um processo ou estado de transformações decorrentes da preparação do corpo da mulher para o exercício da maternidade. Ele começa, a rigor, da nidação do óvulo na parede do endométrio, pois é nesse instante que todo o sistema orgânico (fisiológico, emocional, hormonal etc) feminino passa a se transformar. Segundo porque estado puerperal não é taxonomicamente definido do doença - pois envolve uma gama de perturbações. Daí não existir consenso sequer em relação à sua efetiva existência enquanto entidade ôntica.
Mas, então, o que fazer diante do tipo penal que traz uma expressão tão duvidosa?
Primeiro entendê-la não como pontualmente uma espécie de patologia pontual e específica, mas a resultante de um conjunto de transformações fisiopsíquicas de que se acomete a mãe durante todo o contexto de sua gravidez e que eclode a partir do parto, que traz uma intensidade de sentimentos, sensações e dor. stado puerperal
Para ROGÉRIO GRECCO “[...] tem-se entendido que o chamado estado puerperal não é tão-somente aquele que se desenvolve após o parto, incluindo-se nesse raciocínio o período do parto e também o sobreparto. Durante esse período, a parturiente sofre abalos de natureza psicológica que a influenciam para que decida causar a morte do próprio filho [...] Entretanto, para que se caracterize o infanticídio, exige a lei penal mais do que a existência do estado puerperal, comum em quase todas as parturientes, algumas em menor e outras em maior grau [...] Assim, o critério adotado não foi o puramente biológico, físico, mas sim uma fusão desse critério com o outro, de natureza psiocológica, surgindo daí o critério chamado fisiopsíquico ou biopsíquico [...]” (Curso de direito penal: parte especial. 6. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009. p. 218-219). (grifei)pressupondo uma convergência, ao final, num arrebate ou lampejo, rumo à ocisão da vida do nascente ou do neonato.
Uma linha qualitativa é necessária ser descrita em termos de perturbações inerentes ao parto, diferenciando-se estado puerperal de depressão pós-parto, melancolia pós-parto e de psicose pós-parto.
Entendo na psicose pós-parto, escoimando-me na literatura médico-legal, uma conjuntura capaz de produzir mudança de perspectiva em relação à própria noção de realidade, com a perda - segundo escalas - de discernimento em relação à conduta, de modo a atrair, grosso modo, a declaração de inimputabilidade total (art. 26 do CPB), ou, ainda, de parcial (art. 26, parágrafo único do CPB). Mas, enfim, inimputabilidade em relação a que crime?
Não seria, por certo em relação ao infanticídio, porque, para a materialização deste - por enquanto - a lei penal exige o estado puerperal, que não é sinônimo de psicose pós-parto. Daí eu entender pelo deslocamento para o delito do art. 121, caput (em princípio) e, com isso, a imersão na avaliação do grau de inimputabilidade.
Depressão pós-parto e melancolia pós-parto (chamado baby blues) são situações intermédias, nas quais a mulher pode manifestar, em maior ou menor escala (depressão e melancolia, respectivamente) cansaço, mau-humor, tristeza, desespero, impotência, choro frequente, falta de energia e motivação, distúrbios na alimentação, distúrbios no sono, dificuldade de concentração e de memória, sentimentos de culpa, perda de interesse em atividades, dores de cabeça, ou problemas de estômago.
Distinguem-se do estado puerperal, bem como entre si, pela gradação dos sintomas, bem como pela sua duração, uma vez que a melancolia constitui um quadro sintomatológico mais abrandado.
Nesse diapasão, não se pode ter como deflagrado o infanticídio, tendo em vista que o estado de comprometimento fisiopsíquico não é o bastante para incorrer na zona de punição de semi-imputabilidade que é o infanticídio [importante aqui ressaltar isso: a figura do art. 123 do CPB constitui um caso específico de homicídio privilegiado que se perfaz a partir de uma situação de comprometimento fisiopsíquico da mulher, em face das significativas mudanças hormonais].
Como depreender a existência do estado puerperal?
Eis a mágica omnisciente do campo jurídico... Franca doutrina (Nucci, Grecco, Capez, Bitencourt, dentre outros) pendem pela prescindibilidade do laudo para averiguar, em concreto, a existência de puerpério, por correlacioná-lo a outra expressão do tipo penal, qual seja, "durante o parto ou logo após", deixando clara a ideia de estado puerperal e parto estarem correlacionadas até mesmo em face da lacuna legal em torno da fixação de tempo.
Por um lado, não faria o menor sentido o legislador fixar tempo, tendo em vista que tais estados variam temporalmente, podendo apresentar sintomatologias que duram dias e até mesmo anos. Daí uma fórmula "mágica" apresentada por Nucci: quando mais próximo ao momento do parto, mais de presume o estado puerperal, sendo ônus da acusação afastar, com elementos de prova (daí eu entender pela importância do laudo), a presunção. De outra sorte, quanto mais afastado o evento do curso causal do parto, mais se presume pela não ocorrência - ou pelo abrandamento - do estado puerperal, sendo, assim, ônus da defesa provar o estado.
Outro ponto que merece relevo diz respeito à comunicabilidade do estado puerperal para o partícipe, em prestígio à manutenção da teoria monista, que preceitua a imputação dos mesmo tipos penais para todo/as as pessoas que realizam a conduta.
Isso porque, a rigor, estado puerperal é uma condição que apenas a mulher pode experimentar e, grosso modo, sendo especialíssima (pois não é toda a mulher, mas a parturiente, em face da modificação pela qual passa e que tem como ponto culminante o parto), grosso modo não teria muito sentido se pensar em se comunicar para quem não se encontra sob esta égide de perturbação. A respeito do tema o art. 30 do CPB menciona que "Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime", seduzindo-nos a acreditar, olhando-se de primeira vista, que o estado puerperal é condição de caráter pessoal.
Não está equivocado quem acha ser, pois é condição inerente ao estado sui generis da mulher. O problema em alocar o estado puerperal como condição de caráter pessoal reside na quebra com a teoria monista adotada até então pelo CPB, rezando o compartilhamento dos mesmo tipos penais para autore/as e partícipes. O que se faz?
Quebra-se o monismo e se mantém a incomunicabilidade?
Mantém-se o monismo e se irradia um estado que, a rigor, acomete apenas a mulher em situação de parturiência?
A solução - não sem críticas, claro - diz respeito ao alojamento do estado puerperal como elementar do tipo, e não como condição de caráter pessoal. Isso porque, mesmo sendo especialíssima a condição, sua concepção como elementar traz o condão de - na supressão do estado - desnaturar o tipo penal, fazendo com que, especificamente, o art. 123 feneça. Aliás, essa sempre é uma boa dica para se diferenciar uma elementar de uma circunstância, na medida em que uma circum + stare [estar ao redor de] é um dado acessório e, portanto, subsidiário ao tipo, de modo que sua supressão não modifica ontologicamente o tipo, ao passo que a elementar é condição sine qua non para o tipo permanecer.
No infanticídio o assunto é delicado e, a respeito do tema, existe um consenso doutrinário em torno da ideia de desnaturação do tipo para uma forma de homicídio privilegiado, o que, aliás, é realmente a natureza jurídica do crime.
De qualquer sorte, isso manteria, ainda, a teoria monista, tendo em vista que, a rigor, tanto a mãe quanto o auxiliar, receberiam a reprimenda em termos de tipificação no homicídio. Um problema, contudo, decorre daí, ao meu ver: ainda que se fale em privilégio, a pena do art. 121, parágrafo primeiro é superior - e consideravelmente superior - à pena do art. 123, o que apontaria para um desacerto em face da dosimetria, bem como uma burla em relação à legalidade, já que o parágrafo não contempla essa hipótese.
Daí a mantença da comunicabilidade, a despeito de sujeitar críticas em relação à aferição de uma régua de justiça...Non omne quod licet honestum est...
Um comentário:
Saudades de ler um bom texto! Obrigada por isso, conteúdo muito rico..
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