sexta-feira, 21 de junho de 2013

Jusnaturalismo, direito natural e Justiça:

Escolas jurídicas (ou, como alguns falam, "correntes jurídicas", apesar de eu preferir chamá-las de paradigmas, por serem modelos aceitos pela comunidade acadêmica [ver Thomas Kuhn]) marcam os modelos explicativos de como, em determinado momento histórico e em certos locais (Brasil, mundo) sociedades vivenciavam e construíram seus ordenamentos jurídicos, bem como as concepções sobre o Direito. 

Com isso, entender o Direito passa necessariamente por entender o suceder desses movimentos intelectuais.

Nossa "herança" mais perceptível reside no chamado jusnaturalismo, uma expressão de pensamento jurídico baseado numa concepção denominada "direito natural" (ou seja, jusnaturalismo e direito natural são não sinônimos, depois veremos isso). Um (jusnaturalismo), representa o paradigma, enquanto o outro (direito natural), o conjunto de preceitos que formam o conteúdo do paradigma. 

A pergunta que logo vem à cabeça: o que é direito natural? O que significa estritamente estar de acordo com a "natureza"? De que natureza estamos falando? Aquela do IBAMA? Do panda, do mico-leão-dourado? Não, é mais profunda a ideia. Vejamos. 


Sófocles (Antígona) expressa bem a existência de leis não escritasque não são de hoje nem de ontem”, eternas e imutáveis, sujeitas à ira divina, como no diálogo entre a protagonista e Creonte: 

CREONTE: Tu te inclinas a cabeça para o solo, confessas ou negas haver sepultado a Polinice? 

 ANTÍGONA: Confesso. Não nego haver-lhe dado sepultura. CREONTE: Conhecias o edito que proibia fazer isso? 

ANTÍGONA: Eu o conhecia. Todos o conhecem. 

CREONTE: E tu ousaste violar a lei? 

ANTÍGONA: É que Zeus não faz estas leis, nem as fez a Justiça que tem seu trono no meio dos deuses imortais. Eu não acreditava que teus editos valessem mais que as leis não escritas e imutáveis dos deuses, pois que tu és um simples mortal. Imutáveis são, não de hoje nem de ontem; e eternamente poderosas; e ninguém sabe quando nasceram. Não quero, por medo às ordens de um só homem, merecer o castigo divino. Eu já sabia que algum dia devo morrer – como ignorá-lo? – mesmo contra tua vontade: e se eu morrer prematuramente! Oh! Será para mim uma grande fortuna. Para os que, como eu, vivem sempre inumeráveis misérias, a morte é um bem...

Detalhes interessantes. Antígona invoca uma lei ancestral, antiga e cujo nascimento se desconhece, imutável e em relação a qual se deve obediência, sob pena de se incorrer em expiação. 

O direito natural clássico englobaria, assim, um acervo de leis imutáveis, escritas ora segundo a vontade divina (direito natural de cunho teológico), ora derivados da razão (direito natural de cunho racional) e presentes em todas as épocas em todos os povos. 

Segundo DIMOULIS (p.87) o direito natural relaciona-se ao conjunto de normas de dever ser que são estáveis, necessárias, adequadas e regulamentam o comportamento de todos os seres da natureza”. Citei um autor coetâneo nosso porque, a despeito de não ser um jusnaturalista como os gregos antigos, ele arrisca um conceito de Direito. 

Mas, confesso, acho mais interessante apresentar a fonte, para que tenhamos a exara dimensão de como esse paradigma foi e é tão forte na história do Direito, ao ponto de até hoje ser invocado como sustentáculo de um conceito universal. 

Para Cícero, o direito natural constitui lei verdadeira, norma racional, conforme à natureza, inscrita em todos os corações, constante e eterna, a mesma em Roma e em Atenas; tem Deus por autor; não pode, por isso, ser revogada nem pelo Senado nem pelo povo; e o homem não a pode violar sem negar a si mesmo e à sua natureza, e receber o maior castigo”. Verdadeira porque exclui toda outra que contra ela colida. 

Racional e conforme a natureza porque construída em cima da noção divina, internalizada pela especulação filosófica. Deus é o epicentro dela. Antes da cristianização, OS DEUSES eram os responsáveis, já que a ordem cósmica (Physys), ou seja, Natureza - força normativa divina (em seu sentido mais amplo, como ordem universal das coisas e pessoas) - era obra de criação além-matéria, a irradiar modelos de comportamento no mundo real (Nomos, normas de conduta). 



Para Ulpiano representa “viver honestamente (honeste vivere), não ofender ninguém (neminem laedere), dar a cada um o que lhe pertence (suum cuique tribuere)". Essa concepção engloba um dos pilares da aproximação entre Direito e Justiça (dar a cada um o que é seu). Roberto Lyra Filho, no opúsculo O que é Direito? faz essa pergunta: dar o que a quem? O que significa viver honestamente?

Com isso - essa visão de um mundo onde se separam as pessoas segundo uma ordem ou hierarquia cósmica - não seria exagero afirmar que o Jusnaturalismo sustentou, ao menos nesse primeiro momento (clássico) o status quo nas sociedades grega e romana: o escravo como escravo, segundo ordem cósmica, o senhor como senhor, a mulher como coisa. Tudo devidamente justificado como inerente à condição humana de ser criado pelos deuses com indeléveis diferenças

Assim, longe de um modelo perfeito de alcance de justiça, pode ter servido para se legitimar a perpetuação de grupos no poder que, sustentando-se na ideia das diferenças ditadas pela Natureza (Physys), exerciam controle e potestade em relação a outros grupos. 

Depois da cristianização e, sobretudo, na Idade Média, o trabalho dos escolásticos e da Patrística (que reuniam o clero como precursores dos trabalhos de compilação das leis romanas antigas), a ideia politeísta de criação do ser humano e a sua sujeição ao fatal destino de leis eternas e imutáveis se converte para a concepção jusnatural de visão monoteísta, que elege Deus como centro de ordenação de toda a sociedade (à sua imagem e semelhança, o que nos faz pensar que, embrionariamente, essa ideia de Direito Natural nos move à crença de sermos, no estado de natureza, bons como Deus, mas caídos em face do pecado). 

Os séculos XVII/XVIII marcam a trajetória para uma compreensão do direito natural, saindo-se de um enunciado cósmico (e divino), para um modelo abstrato e baseado na própria natureza humana. São precursores: Grotius, Puffendorf, Locke, Rousseau, Montesquieu, Kant. Para Montesquieu, inclusive, o direito natural baseia-se na relações necessárias que derivam da natureza das coisas [rol de valores básicos]. 

Quais seriam essas relações necessárias? Para quem? E natureza das coisas? Percebem como entramos em buracos cada vez mais profundos com esses conceitos que não trazem um conteúdo preciso e empiricamente relacionado a uma elaboração histórica mutável?

Bom, quem quiser olhar uma pérola jusnaturalista, basta ver a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão na França revolucionária, bem como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).

Algumas críticas são pontuadas ao direito natural. 

Aliás, muitas.

Miguel Reale o acusa de ser imbuído de princípios vazios de conteúdo (justiça, igualdade, dignidade, vida, honorabilidade), bem como denuncia a ausência de sentido de concretude -ou seja, conceitos dogmaticamente construídos em cima da universalidade, mas que são abstratos demais para permitirem que seus respectivos conteúdos advenham da experiência histórica nas sociedades.

Além disso, a questão da externalidade do elemento valorativo (ou seja, a discussão sobre axiologia) aponta para a necessidade de uma teorização sempre mutável, ao contrário do caráter imutável de que se cerca o direito natural.

Já para Roberto Lyra Filho, o direito natural constitui uma ideologia (conjunto de crenças não criticadas, refletidas, reproduzidas sem questionamentos) que, juntamente com o Positivismo (redução do Direito ao que está positivado ou normatizado sistematicamente, limitando-se ao que está ordenado), constitui desdobramento entre o que está nas normas e o que deveria estar (direito natural). 

Aliás, segundo Lyra Filho existem três correntes positivistas: a legalista (que aponta a lei como único elemento válido); o positivismo historicista ou sociologista (com formações jurídicas pré-legislativas, como um produto espontâneo do 'espírito do povo', que dariam origem às leis, estabelecendo o controle social), o positivismo psicologista (busca do 'direito livre' dentro das 'belas almas', revelaria a essência fenomenológica do Direito, ou seja, a partir da essência percebida pelo magistrado). Tanto em uma como em outra, o elemento dogmático e pretensamente universal se repete. 

César Augusto Ramos no texto Hegel e a crítica ao Estado de natureza do jusnaturalismo moderno, traz importantes contribuições para a crítica ao paradigma jusnaturalista, partindo do calcanhar de Aquiles: o ficcional estado de natureza, condição natural, empírica e imediata a partir da qual se indaga a "essência" do humano. 

Fortemente balizado em Hegel e seu pensamento sobre a realidade ética que formula o conceito de Estado, Ramos sintetiza o estado de natureza como um momento histórico marcado pela brutalidade, violência, bem como pela realização de atos e sentimentos não humanos. Dialogando com Hobbes, Hegel, revisitado pelo autor, expõe a fragilidade de uma concepção de bondade indelével e universal, para se firmar na concepção de que o ser humano, no estado de natureza, sequer é livre, uma vez que liberdade supõe escolha racional e não pautada no instinto (que, no caso, é de caos). 

O estado de natureza, com isso, é incapaz de fundamentar uma teoria jusnaturalista, já que a perspectiva é de dominação e controle de uns sobre os outros, o que é incompatível com o conceito de coerção presente em Hegel como formulação de liberdade (reciprocidade e mútuo reconhecimento). À natureza falta determinação auto referencial (liberdade), pois tudo é regido por leis de causalidade, contingência, regularidade e necessidade instintiva. Ou seja, o oposto do que se formula na teoria clássica. 



Nenhum comentário: