segunda-feira, 18 de novembro de 2013

O colorido da conduta: do mecanicismo causal para o funcionalismo penal

Pegue-se o exemplo da poça de sangue: um indivíduo jaz no meio de uma sala de aula imerso na poça, um buraco de bala em sua têmpora, uma arma ao lado e, agora, acrescente-se a tal um outro cidadão que está ali. O que podemos dizer desse cenário? 

É possível coligar inexoravelmente o cidadão à causação desse evento? Aliás, como na postagem anterior, que evento? Homicídio? Suicídio? Fatalidade? Quando entramos no mundo do Direito Penal somos logo tentados a fazer conexões, o tempo inteiro, entre resultado (eventos ilícitos segundo a lei) e agente, pela mera e objetiva factividade do que observamos a olho nu.

Assim, se vimos um cadáver - desculpe falar tanto nisso, mas são ótimos exemplos - já automaticamente depreendemos do que se coloca à nossa frente - o "presunto", corpo, cadáver etc. um homicídio que, de repente, qualificamos porque a imprensa mostra a foto (principalmente se for uma criança branca e de olhos azuis) e nos faz sentir empatia e revolta.

Tudo para desviar a atenção do que é essencial para o Direito Penal de responsabilidade SUBJETIVA: análise da conduta. Em outro momento vimos a parte mecanicista de causação de resultado, quando definimos conduta como ação ou omissão voluntária, consciente, humana, consistente em um fazer ou não fazer. Essa situação marca no mundo físico, manifestada no ato mecânico em si mesmo. Por exemplo, puxar um gatilho e atirar. Para a teoria da conduta em um primeiro momento direcionamos toda uma elaboração físico-química que envia mensagens em ondas cerebrais no sentido de comandar os músculos para tal atividade.

Mas, claro, em um segundo momento essa atividade não é cega ou aleatória, mas, antes, coliga-se a uma finalidade perceptível e valorada pelo Direito Penal. Para isso os doutrinadores elaboraram teorias explicativas das condutas, notadamente algumas mais famosas: causalista ou naturalista, finalista, social, jurídico-penal e funcionalista, no intuito de entender - para imputar responsabilidade - como é o processo psíquico de produção de resultados.

Com isso, importante considerar dois momentos que, embora distintos, unem-se para a formulação de uma coesa teoria da conduta: um primeiro momento em que as relações de causa-efeito se colocam no plano causal-mecanicista (lembrando das sinapses nervosas que puxam o gatilho) e um segundo momento, que é o conteúdo de vontade contido na conduta. 

Para a teoria causalista a conduta é um mero fator de causalidade, em uma relação de causa e efeito, sob o ponto de vista do resultado. Inexiste valoração dos fins colimados pelo autor, concentrando-se o foco meramente no resultado produzido pelo agente. 

Não importa o conteúdo da vontade. Por ela, por exemplo, o que vimos de resultado é o que se estabelece no plano da vontade ou intencionalidade. O desacerto dela? Muito simples, independentemente do meu querer, se eu acertasse um tiro de raspão em alguém (mesmo desejando trucidar essa pessoa), eu seria responsabilidade por uma leve lesão (supondo que meu porte de arma esteja legal). 

Já a teoria finalista desenvolve a percepção de estudo da conduta em si, dos fatores motivantes que estão adstritos à ação do agente. O ser humano, neste sentido, sempre motivaria seus atos segundo um fim colimado. Esta é a visualização da diferença, por exemplo, entre a lesão corporal e a tentativa de homicídio, a partir do fato “tiro”. A ação, neste sentido, é um exercício da atividade finalista, internamente e concretizada. Teoria majoritária. 

Tenho refletido muito sobre ela, pois sua base é kantiana, que vê na racionalidade a única via de seleção de vontade e direcionamento de atos. Com a proposta firmada no final do século XIX e início do século XX pela Psicologia, bem como pela Psicanálise acredito piamente que os processos volitivos não sejam deliberados pela razão dissociada de aspectos cognitivos para os quais a emotividade contribui. Isso já seria, de plano e pronto, um fator de correção para tal teoria, que se firma na explicitação de uma vontade que nem sempre é demonstrável mas cujo conhecimento do risco leva, depois, a outras propostas de imputação, a exemplo do funcionalismo penal e da imputação objetiva. 

A teoria social da ação questiona a insuficiência do conceito de finalismo, tendo sido desenvolvida por Jeschek e Wessels a partir do enfoque na importância social da conduta ou da omissão, sua relevância entendida em termos coletivos. Mero aspecto do causalismo, ao meu ver, porque afrouxa as regras de imputação para relativar o desvalor da conduta em face do que é entendido como importante ou relevante ela sociedade (na verdade desconfio muito disso em um Estado como o brasileiro no qual essa alegada coesão social pode dar azo à autocracia).

A teoria jurídico-Penal foi desenvolvida por Francisco Assis Toledo (in memoriam), complementando o finalismo de Welzel para entender na conduta um comportamento dominável ou dominado pela vontade, dirigido para a lesão ou para a exposição a perigo de um bem jurídico ou, ainda, para a causação de um previsível lesão a um bem jurídico. Não vejo muita diferença entre essa teoria e a welzelniana, apenas um envernizamento.

A teoria da imputação objetiva que se lança como lastro do funcionalismo penal baseia-se em uma mudança de paradigma. Isso porque a teoria finalista liga-se à concepção liberal de livre arbítrio, bem como de uso da razão como uma forma de prever acontecimentos, escolha de opções e direcionamento de vontades, o que acarreta, no caso do Direito Penal, lesividade. Para os funcionalistas o Direito Penal não constitui apenas um ramo do conhecimento que protege bens jurídicos, mas sim um subsistema autônomo que tem como finalidade salvaguardar a ordem jurídico-normativa para que os indivíduos se mantenham fiéis a ele.

Entendendo melhor, os funcionalistas - Jakobs e Roxin - partem do conceito de sociedades anônimas, nas quais dado o incremento populacional, tecnológico etc. torna-se impossível trabalhar com a noção de volição para se definirem condutas. O ser humano pós-moderno para Jakobs não avaliaria esses passos pontuais de escolha, desejo, desiderato, numa espécie de "robotização" para a qual as regras de imputação são distintas. Com isso, para os funcionalistas a cognição - e não a volição - é o ponto-chave do conceito de conduta, a partir do binário risco permitido e risco proibido pela norma. Incorrem em condutas imputáveis aqueles ou aquelas que, com seu comportamento agregam um risco proibido pela norma. 

Vou explicar melhor com um exemplo trabalhado em sala. Para o finalismo, por exemplo, uma pessoa que diante de uma placa impondo o limite de 80km/h para uma via (risco permitido, pois andar em uma rodovia, dirigir, é arriscado, mas é um risco PERMITIDO. Quando a norma dispõe limites ela cria a barreira cuja ultrapassagem gera o risco proibido, que é conhecido pelo agente porque ele ou ela conhecem as regras de trânsito - estudam, fazem testes etc.). anda a 90km/h e atropela alguém é punida em face de culpa por imprudência (prática de fato perigoso, que é dirigir acima da média). 

Pois bem, pela teoria do incremento do risco, ela tinha compreensão, conhecimento e o querer agrega-se à cognição, não sendo uma unidade dele dissociada. Poderíamos pensar aqui na imputação por dolo considerando que o conteúdo de uma vontade aglutinou COGNIÇÃO+COMPREENSÃO+VOLIÇÃO.

Pois bem, fazendo um cotejo com a situação aqui revelada, poderia ser afirmado que o finalismo não cumpriu as exigências do projeto de pós-modernidade que, enfrentando uma criminalidade de massa, eclodiu num descompasso com a necessidade de controle penal.

Daí a identificação pontual do problema, que não pode ser enfrentado na mesma planificação em que foi gerado: palco fecundo para o funcionalismo.

Em contraponto ao paradigma finalista, despontou, pouco a pouco, o funcionalismo, como modelo proemitente a responder aos anseios de sociedades pós-modernas, pós-industriais, marcadas pelo descompromisso com cumprimento de papéis, em vários níveis, pelos elementos que as compõem.

Os que perfilham o finalismo (não são poucos os doutrinadores e intérpretes do direito) advogam o argumento de sua característica essencialmente garantista e, portanto, assegurador da efetiva punição pela concretização do que volitivamente o agente almejou cumprir e cumpriu, numa proposta que se baseia – diga-se de passagem – nos antigos postulados iluministas, que partem da premissa de liberdade da vontade.

O que, por ora, discute-se em nível de funcionalismo (e que é importante para nossas futuras conclusões) é a imputação em função de cognição, de consciência, e não mais apenas a demarcação de vontade.

Reside na relação mente e corpo, vontade e cognição a mudança de paradigma, pois, ao se transpor a vontade de ação para a cognição como orientadora da vontade, rompe-se a segregação, considerando-se, assim, mente, matéria e consciência como processos interligados, e não apenas como domínios ou coisas distintas, cuja compreensão poderia ser engendrada em termos de descrição meramente objetiva .

Concentrando o foco, portanto, na consciência, Capra aponta um processo cognitivo emergente de uma atividade neural complexa, derivada de dois tipos diferenciados de experiências cognitivas: uma “consciência primária”, que surge quando os processos cognitivos passam a ser acompanhados por uma experiência básica de percepção, sensação e emoção, acrescida de um segundo tipo de consciência, uma noção de si mesmo, formulada por um sujeito que pensa e reflete (2002, p. 55).

Nesse contexto, conceitos outrora tidos como irretocáveis, tais como o de lei e de causalidade, cedem espaço para um “caráter probabilístico, aproximativo e provisório” (2001, p. 31), na qual a simplicidade de redução do fenômeno é um reducionismo simplificado da realidade.

Segundo Santos, as noções de lei têm cedido espaço, principalmente na biologia, às noções de sistema, estrutura, modelo e, por fim, de processo, culminando, assim, no questionamento acerca das respostas dadas pela causalidade, em sua difícil percepção de ontologia e alcance – o que é considerado como nexo causal.

No que diz respeito à desconsideração do indivíduo como parâmetro para uma percepção sistêmica, o ser humano pode ser redimensionado unidade orgânica definida em termos de estrutura componente de um sistema, sendo o mesmo o foco cognitivo de onde parte a percepção de sua realidade construída, na medida em que se prostra como observador e construtor operacional da realidade circundante.

Nesse pensamento, a compreensão de vida, vontade e cognição, poderiam ser igualmente redirecionadas para o conceito de atividade cognitiva, de modo a concentrar na comunicação e nos códigos linguísticos a essência da montagem e da articulação de uma estrutura de rede que permitiria, portanto, a imputação de responsabilidade a um ente.

E como isso poderia ser possível no ordenamento jurídico brasileiro? Como atribuir sentido de cognição a uma pessoa jurídica?

O tema não traz muita novidade, pois a Constituição Cidadã, na inovação de um pensamento voltado para a proteção de valores comunitários, incorporou em seu texto o art. 225, §3°, punindo penalmente as pessoas jurídicas que ocasionem lesão ao meio ambiente.

O legislador constitucional, ao contemplar na redação da Carta a previsão de punição pela responsabilização penal da pessoa jurídica, deu o primeiro passo para a mudança paradigmática que se revela nessa pesquisa, pois agregou ao texto uma nova possibilidade de leitura das regras de imputação penal, a partir da percepção de risco.

Reconheceu o legislador o declínio da clássica relação de causalidade objetiva, por observar os riscos existentes na vida social, gerando, dessa maneira, um mecanismo auto-regulatório caracterizado pela atribuição de pena ao criador de uma conduta criadora de um risco relevante e juridicamente proibido.

Se uma conduta criou um perigo relevante e juridicamente proibido ao bem jurídico e se o resultado produzido correspondente à concretização do perigo juridicamente desaprovado, a intervenção do direito penal será necessária, municiando-se o intérprete, a partir da proposta constitucional, de produzir, em termos infraconstitucionais, uma modificação na maneira como realiza a aplicação das regras de imputação.

Torna-se, portanto, tarefa menos árdua a mutação interpretativa para abranger outras possibilidades, bastando intérprete harmonizar o texto constante do art. 13 do Código Penal Brasileiro às novas exigências delimitadas pela Constituição, texto que recepcionou o antigo e obsoleto Código Penal de 1940.

Deveria a sociedade aguardar a mudança legislativa para promover a modificação nas regras de imputação? Pode-se avaliar que não, uma vez que o texto legal contém, no art. 13, uma regra de causalidade que pode ser interpretada à luz do funcionalismo.

Quando se afirma que “o resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa” o texto não faz referência alguma a alguma teoria em especial, deixando abertas as portas para de entender na imputação ali descrita o incremento do risco produzido pelo agente.

Assim, não poderia o finalismo, por intermédio da teoria da conduta (comportamento humano voluntário, consciente e consistente num fazer ou não fazer, doloso ou culposo) ajustar-se ao comando constitucional, no caso de grandes empresas, que encobrem interesses escusos, utilizarem o expediente do funcionário para a realização de um ato criminoso atentatório à Administração.

Por essa teoria, o conglomerado – que se esconde por trás do agente-laranja – não cometeria crime, já que ausente o atributo de vontade organicamente direcionada ao fim. Em casos assim, pela teoria finalista do crime, a imputação deve ser feita a partir da individualização da conduta, por intermédio da busca de responsabilização pessoal.

Quando não se descobrisse, por outro lado, a identidade do agente envolvido, pelo benefício da dúvida, o indivíduo por ventura processado seria declarado inocente e a sociedade, insatisfeita na impunidade.

É exatamente nesse posicionamento que a grande criminalidade de astúcia locupleta-se à custa da Administração Pública e do bem comum, pois se infiltra no Poder Público, por meio da atividade de uma advocacia antiética e criminosa, que integra uma verdadeira organização-cascata, ou seja, disposta em vários níveis de estruturação.

No meio de tamanha burocratização da criminalidade – geralmente amparada por uma pessoa jurídica “de fachada” – a responsabilização não é possível, já que o paradigma de imputação ainda prestigia um direito penal liberal, que não se adequa à sociedade de contatos anônimos.

Os indivíduos que compões o vasto rol das sociedades, associações, fundações e demais entes personalizados, passam incólumes pela teia de controle e captação penal por conta da insistência do modelo em seguir as regras de demonstração de atos volitivos, o que não mais se ajusta à necessidade de conformidade de conduta à evitabilidade de risco, por este figurar no processo cognitivo (que tanto pode ser cometido pela pessoa natural quanto pela jurídica, pois as regras e as normas já são, de antemão, conhecidas e reveladas).

Mas, ao se transpor o paradigma finalista de volição individual, bem como de autonomia fechada do direito penal para um modelo de riscos e de processos cognitivos que contemplam pessoas e entes, a imputação é possível. Possível e viável, possibilitando, assim, o alargamento do controle social punitivo formal, contribuindo, assim, para uma proposta vanguardista de adoção do funcionalismo para desvendar o véu da impunidade em crimes correlatos à corrupção praticados por pessoas jurídicas.

Não se trata de simplesmente aplicar a teoria funcionalista, pois na frívola tentativa de transposição da volição para cognição que reside a maior crítica feita pelos finalismos aos funcionalistas, acusando-os de robóticos e violadores das garantias fundamentais individuais (Zaffaroni, 1998, p. 157), pois a mudança de paradigma pressupõe a mudança de entendimento e compreensão sobre a finalidade do direito penal.

Assim, diante da falaciosa “proteção de bens jurídicos” (Toledo, 1999, p. 13-14) propalada ao longo de 50 anos de doutrina penal, uma transformação vetorial torna-se necessária, para se assumir uma nova função a ser desempenhada por um direito penal pós-moderno: o controle social punitivo e a estabilização de um sistema normativo, com a ponderação no recuo e na intervenção do direito penal, de acordo com regras de imputação pelo incremento de risco proibido, ou seja, que se encontra além do que é permitido pela convivência.

É na compreensão de constituir o direito penal um subsistema integrado à política criminal, como código que atribui uma linguagem que elege o controle social punitivo como foco principal de orientação, não mais sendo concebido como mecanismo atuante quando outros métodos falhavam, mas sim como processo ativo de seletividade do que será punido, garantido pela lei e por outros sistemas de controle aglutinados na tarefa de manutenção da ordem social, em uma relação de implicação na qual o controle conduz ao desvio, não o contrário.


Para que um comportamento seja punido pelo Estado, necessária a adoção, por parte do órgão responsável (magistrado) de critérios objetivos descritos na lei penal (no caso, tanto no Código Penal, como, também, no Código de Processo Penal) e na doutrina, para que a decisão não seja arbitrária e resulte em injustiça desmotivada.

Eis a razão pela qual uma orientação político-criminal colocou o Brasil na predileção pelo modelo de imputação (ou responsabilização) subjetiva, na qual o sujeito (indivíduo) é punido pelo que psiquicamente imantou, projetou e realizou, ao contrário do que se observa, por exemplo, na responsabilidade objetiva, que se atém apenas na deflagração de um resultado, colocado a olho nu a frente do observador.

Para o finalismo de Hans Welzel (década de 40) – teoria que explica a natureza da conduta – torna-se impossível atribuição de sanção penal a quem, no mínimo, não houver agido com dolo ou culpa, afastando-se, dessa feita, a responsabilização pela mera causação material do fato, sem indagação quanto ao liame de produção.

Assim, restando evidenciada a inexistência de dolo e culpa em determinado caso trazido à apreciação do Poder Judiciário, poderia ser afastada a conexão entre o comportamento e o tipo penal (denominada tipicidade), afastando, também, como via direta, a culpabilidade como sinônima de responsabilização penal subjetiva.

O raciocínio não é difícil, pois, conforme anteriormente desenvolvido, o princípio da legalidade é o fundamento da construção jurídico-penal, por intermédio dos conceitos de tipo e tipicidade. Assim, não seria equivocado afirmar que o tipo penal é uma irradiação do princípio da legalidade para o direito penal.

Isso quer dizer que somente os tipos penais podem criar hipóteses de encaixe (também chamada subsunção) entre um comportamento e o modelo que descreve o crime, atribuindo, assim, um critério seguro e objetivo de aplicação de pena, dentro dos limites a que se agrega o direito penal num Estado Democrático de Direito.

O tipo penal constitui, assim, um molde, uma fórmula legal, um modelo descritivo de uma conduta penalmente relevante, formatado a partir da elaboração técnico-jurídica que o legislador faz, mediante a seleção dos valores e interesses merecedores da categorização como bem jurídico.

Mediante um juízo de tipicidade (ou seja, de encaixe), o magistrado avalia o amoldamento da conduta ao molde descrito em lei: uma verdadeira amálgama entre comportamento e descrição prévia, legal, manifestada no tipo.

Para cumprir essa atividade, empreende o juiz a um minucioso exame do que a doutrina penal entende por elementos constitutivos do tipo, a saber: a) elementos objetivos, relacionados à descrição do dispositivo legal; b) elementos subjetivos, relacionados ao estado anímico do sujeito ativo, aferindo a voluntariedade direta ou indireta de ataque, ou a assunção do risco em face da conduta praticada (figuras dolosas); como também pela aferição de existência de lesão pela ausência de dever de cautela ante a previsibilidade objetiva do resultado (figura culposa) .

É na análise do conteúdo de vontade do comportamento no momento de uma ação (ou omissão) direcionada à Administração Pública que reside a chave para a compreensão de toda a sustentação da responsabilidade pessoa e individual pela prática de condutas definidas como crime e, portanto, para qualquer proposta de mudança paradigmática a respeito da inclusão da pessoa jurídica no rol de imputabilidade.

Isso porque, o art. 13 do Código Penal Brasileiro constitui importante referência para que a análise seja feita, uma vez apontar para o que o legislador considerou importante como definição da chamada relação de causalidade:O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. A relação de causalidade é, por definição legal, um elo ou uma conexão entre a causa (comportamento) e a conseqüência (o resultado decorrente do praticado), sendo imprescindível observar, no texto da lei, que a imputação é efetuada “a quem lhe deu causa”.


A ideia de funcionalismo não é recente, pois já nos idos dos anos 80, o sociólogo alemão Niklas Luhmann desenvolveu a compreensão na qual o direito passa a constituir um subsistema autônomo, decodificador da linguagem dos demais – sociais, políticos, econômicos, culturais, gerando, a partir da conjugação de todos eles, um próprio código ordenatório, concomitante aos demais subsistemas componentes da sociedade .

Diferentemente da compreensão de fechamento epistemológico com que a dogmática penal estabeleceu suas regras de imputação nos idos de 40, o que aqui se observa é a ampliação de um campo, para que o direito penal reconheça outros subsistemas e, dentro disso, possa normalizar o sistema do qual todos fazem parte.

Pode, assim, ser delineada a interpretação que a funcionalidade da dogmática jurídico-penal e do direito penal são códigos que ocupam um lugar bem definido no interior do sistema jurídico: conexão efetiva entre “dever-ser” à sua operacionalização, o “ser”. (1980, p. 20-21), em contraposição a uma promessa não cumprida pela direito penal clássico, já que esse não tem minimizado a incidência de comportamentos criminosos.

O direito penal, assim, findaria por se identificar com as projeções que lhes são esquadrinhadas pela com a política criminal, inserido aquele primeiro como subsistema social, motivando, assim, uma mudança paradigmática, que vai função de tutela de bens jurídicos para uma finalidade de controle social punitivo, marcada pela neutralização de quem não se alinha ao papel de componente de uma sociedade complexa de respeito e fidelização à normatividade.

Qual a razão de tamanha mudança? Bem simples: as sociedades pós-modernas não mais se ajustam aos modelos antigos, em virtude do afrouxamento de laços que caracteriza uma sociedade massificada.

Em uma sociedade de massas, não haveria espaço para a percepção integrada de individualidade, mas, antes, para a visualização dos papéis desempenhados pelos indivíduos quanto ao dever de compromisso com uma ordem caracterizada aprioristicamente pela fidelidade ao código operacional representado pelo direito penal.

Segundo Jakobs : "O grau de fidelidade ao direito não é determinado segundo o estado psíquico do sujeito, mas é estabelecido como parâmetro objetivo por meio de uma pretensão dirigida a cada cidadão. Mas, exatamente, em razão desta pretensão se trata de um cidadão, uma pessoa, e não de um indivíduo sem amarras. Quem é culpável não satisfaz a medida aplicável aos cidadãos, é dizer, tem um déficit de fidelidade ao direito" (2003, p. 38).

Ante essa identificação funcional de missões cometidas aos membros do grupo, a finalidade do direito penal necessariamente estaria voltada para a garantia de manutenção do código comunicacional, por meio da observância da norma contida no preceito legal.

Daí necessariamente advir, segundo Jakobs, a destinação reativa do direito em face de um reconhecido adversário, qual seja, aquele que não observa a destinação de seu papel em coletividade, e, insistindo, ameaça à coesão interna.

Neste sentido, o primeiro ajuste interpretativo sobre a proposta funcionalista de Jakobs é a especificidade quanto aos crimes identificados como preponderantes em um panorama de globalização, a exemplo do que acontece no crime organizado, tráfico de drogas, crimes contra o meio ambiente e, no caso específico do presente trabalho, dos crimes correlatos à corrupção, praticados por pessoas jurídicas.

O rol acima descrito bem ilustra a realidade de anonímia nos contatos pessoais, em que se sobreleva a necessidade de substituir a individualização da conduta – eixo central da teoria finalista – para a punição pelo advento do chamado risco proibido, marcado pela exacerbação da conduta tida como ponderável em termos de cumprimento do papel individual.

O não-alinhado é um indivíduo (ou ente) que abandonou o direito , de maneira não meramente incidental, atacando imediatamente o mínimo de segurança cognitiva do comportamento e manifestando sua infidelidade ao direito por meio da conduta, atingindo ou colocando em risco, mediatamente, a segurança dos bens jurídicos.

Por que esse modelo constitui um novo paradigma? E como esse paradigma pode encontrar aceitabilidade no sistema jurídico penal, que se pauta em regras específicas de legalidade? Eis os desafios.


Nenhum comentário: