Uma das indagações mais
freqüentes por parte do atento estudante da dogmática jurídico-penal
relaciona-se ao conceito e à ratio
essendi do primeiro elemento constitutivo do crime[1],
qual seja, a noção de tipo penal, com a subseqüente idéia acerca de tipicidade
como adequação do fato ao conteúdo descritivo da lei[2].
Isto porque, antes de
ingressar na ontologia e lógica descritivas do crime, o entendimento premente
trazido pelo acadêmico para as discussões em sala de aula - e não raro repetido
pelo uso indiscriminado de terminologias propaladas no senso comum – volta-se
para a compreensão do tipo penal como sinônimo irrestrito do próprio conceito
de crime, quando se discute, por exemplo, acerca do “crime do art. 121” , do “crime previsto no
art. 155” ,
entre outras expressões do cotidiano, de modo a reunir, em uma mesma acepção,
sob a com a designação de “crime”, o conteúdo do que vem a ser um de seus aspectos
constitutivos, incorrendo-se em um paradoxo no qual a parte é designativa do
todo e vice-versa, findando por redundar ao estudioso da dogmática
jurídico-penal equivocadas, posto que confundidas.
Por esta razão, faz-se
necessária uma digressão ao tema atinente, pois, ainda que realizado sob uma
tímida perspectiva de análise da compreensão do tipo penal para alguns
doutrinadores alemães do séc. XIX e XX, bem como seus reflexos na doutrina
brasileira, tal abordagem servirá de espelho para o melhor entendimento acerca
da multiplicidade de concepções que se sucederam na montagem de um pensamento
jurídico-positivo sobre a constituição do crime por intermédio de seus
elementos essenciais, do qual o tipo é o primeiro componente.
Assim sendo, serão
delineadas, prima facie, as
principais teorias explicativas da essência do tipo penal, desde a primeira
obra de Ernst Beling até o pensamento finalista de agregação do dolo e da culpa
ao tipo penal, buscando-se, posteriormente, definir a função do tipo penal
dentro da estrutura do delito, que servirá, ao final, de suporte para a
sistematização das considerações finais sobre uma proposta de entendimento
sobre o tipo.
Partindo de um postulado
lógico-jurídico definidor do crime como sendo toda e qualquer conduta típica,
ilícita e culpável, tem-se como necessário o entendimento de seu primeiro
elemento constitutivo, o tipo penal, de modo a se avaliar, posteriormente, se
os demais componentes – ilicitude[3] e
culpabilidade – encontram-se presentes como conformadores da conduta, pois
somente assim haveria de se falar na existência jurídica de crime.
Desta feita, seria correto
afirmar que, após a análise efetuada sobre a própria conduta – pressuposto de
existência do crime – deve-se proceder ao estudo pormenorizado dos elementos
constitutivos da noção de crime, que, coexistentes (tipicidade, ilicitude e
culpabilidade), fazem com que haja a adequação integral do caso concreto à
aplicação da norma contida na lei penal, por intermédio da ligação entre o
enunciado e a sanção.
Neste particular,
acrescenta-se o registro de uma concepção remota sobre o conceito de tipo,
remontando-se à tradução alemã – Tatbestand[4] – da
expressão latina de corpus delicti, contida nas Ordenações Prussianas de 1805 (ex
vi §133), donde se apura o sentido da palavra como designativa de mera ação
punível, ou fato objetivo (apud ASÚA, 1976, p. 751).
Assim sendo, partiu-se da
construção inicial do Tatbestand como soma de todas as características
materiais dos elementos do delito, em seu conteúdo de ação, de modo a denotar, prima
facie, a descrição atinente a cada delito, pensamento este seguido também por
Geyer, Kärcher e Schaper, que acrescentaram o dolo e a culpa ao elemento tipo[5], em um
gérmen do que viria a se constituir na maior crítica à teoria causalista da
ação, para a qual o dolo e a culpa seriam elementos contidos na culpabilidade.
Haurindo de outra
importante fonte, Welzel entende o tipo penal como sendo a descrição concreta
de uma conduta entendida como sendo proibida[6],
manifestando, pois, a noção de modelo, padrão ao qual a conduta encaixar-se-á,
ou não, segundo um critério de associação integral do fato com o conteúdo
prescrito no tipo.
Por outro lado,
extraindo-se a noção valorada de Welzel, Jimenez de Asúa define tipo penal como
“la abstracción concreta que há trazado el legislador, descatando los detalhes
innecesarios para la definición del hecho que se cataloga en la ley como delito”
(ASÚA, 1976, p. 747). (grifos não são do texto), restando, pois, da leitura de
tais entendimentos uma importante questão que permeará a análise em comento, na
medida em que se observa a adoção de conteúdo valorativo nos entendimentos
sobre o tipo penal, cujo reflexo encontrar-se-á nas obras de juristas
brasileiros, como será visto a seguir.
Avaliando as principais
orientações pátrias de entendimento sobre o conceito de tipo, encontra-se na
obra de ASSIS TOLEDO importante referência, na medida em que o mestre avalia o
tipo como sendo “um modelo abstrato de comportamento proibido”, caracterizado
como uma “descrição esquemática de uma classe de condutas que possuam
características danosas ou ético-socialmente reprovadas, a ponto de serem
reputadas intoleráveis pela ordem jurídica” (TOLEDO, 1994, p. 126).
O professor NEY MOURA
TELES, em sua obra, afirma ser o tipo “o modelo de comportamento humano, ao
qual se segue, em regra, uma conseqüência, que constitui o fato proibido, o que
não deve ser”, aproximando sua concepção descritiva da doutrina alemã do Tatbestand
(TELES, 1998, p. 183-184), desenvolvida principalmente por Ernst Beling em sua
obra Die Lehre vom Verbrechen, datada de 1906, seguida por Die Lehre vom
Tatbestand, em 1930.
BITENCOURT compreende o
tipo como “modelo abstrato que descreve um comportamento proibido” (BITENCOURT,
1997, p. 233), oriunda de um escalonamento feito pelo legislador em relação a
condutas tidas como delitivas, ao menos em tese[7],
pensamento seguido por DÁMASIO EVANGELISTA DE JESUS[8], LUIZ
RÉGIS PRADO[9], entre
outros renomados doutrinadores.
CAPEZ encontra no tipo
penal um “modelo descritivo das condutas humanas criminosas, criado pela lei
penal, como função de garantia do direito de liberdade” (CAPEZ, 2001, p. 136),
de modo a acrescentar um importante componente teleológico ao conceito, qual
seja assegurar o status libertatis do indivíduo, que tão-somente poderia ser
elidido, em tese, quando a conduta do mesmo se aproximasse do molde legal.
A apreciação analítica
sobre o conceito de tipo penal leva em consideração a própria estrutura de
incidência das normas que a teoria geral do direito oferece, pois o tipo penal
nada mais é do que a expressão de um modelo descritivo e tipológico de conduta,
elencado em termos genéricos e abstratos, de modo a incidir quando o caso
concreto, representado pela conduta, guarde encaixe ao comando da lei[10].
Assim sendo, o tipo penal,
que tem na expressão do conteúdo da lei sua materialização, erige-se como uma
definição preconstituída da conduta entendida pelo legislador como sendo
aparentemente delituosa, antagônica, portanto, aos valores do corpo social e
passível de uma resposta estatal ante à conformidade da conduta do agente em
relação ao molde definidor que inicia a definição do crime, a se completar com
o exame da ilicitude e da culpabilidade.
Por este raciocínio,
quando um indivíduo, por exemplo, ofende a integridade de terceiro por
intermédio de um soco, há que se analisar primeiramente tal ato sob o plano da
existência de um comando normativo previsto na lei penal definidor de tais
condutas - tipo - a fim de se saber se
existe o molde de comportamento ao qual tais atitudes poderiam se encaixar.
Em relação a tal,
encontra-se no art. 129 do Código Penal o padrão descritivo acima evidenciado,
mas que, sozinho, não constitui, de per se, o crime em sua integralidade, já
que necessário avaliar os demais componentes de sua definição jurídico-penal –
ilicitude e culpabilidade.
De fato, não se sabe, por
exemplo, se a ofensa à integridade se deu em defesa própria e legítima, ou,
ainda, em estado de necessidade, demonstrando-se, pois, ser necessária a
compreensão pormenorizada dos elementos constitutivos do delito, pois, do
contrário, poder-se-ia incorrer em mera responsabilização penal objetiva,
vedada no ordenamento pátrio.
Colacionada a questão em
termos de enfrentamento, torna-se vital a percepção da natureza do tipo penal,
mormente quando se evidenciam as denominadas causas dirimentes – ou, como preferem
alguns – exclusões de ilicitude, que trazem hipóteses de não completude do
crime no delineamento de seus demais requisitos constitutivos, conforme resta a
seguir.
A sistematização de um pensamento
explicativo acerca da ratio essendi do tipo encontrou, ao longo do
desenvolvimento da dogmática jurídico-penal, uma multiplicidade de teorias de
justificação para a natureza deste modelo descritivo de condutas, extraindo-se,
desta feita, as correntes de pensamento mais difundidas entre os doutrinadores,
quais sejam: a teoria da independência ou avaloração de Beling; teoria
indiciária de Mayer, teoria da identidade ou da ratio essendi de Mezger-Sauer e
teoria dos elementos negativos do tipo de Merkel.
Conforme se extrai do já
citado trabalho de Von Liszt, acompanhado por Beling[11] em uma primeira
fase de sua análise e concepção sobre o tipo penal (primeira metade do séc.
XX), este se caracteriza como um elemento autônomo e completamente independente de qualquer noção
valorativa acerca de eventual aproximação com a ilicitude, em uma percepção
meramente descritiva, objetiva e neutra,
condizente, neste sentido, com a noção tripartida do crime como conduta típica,
ilícita e culpável, opção de pensamento mais condizente com a então difundida
idéia de causalismo, na qual o juízo de valor centralizar-se-ia na
culpabilidade.
Por este raciocínio, o
comportamento de um cidadão que se encontre preso em um apartamento de outrem
durante um incêndio não provocado pelo primeiro, destruindo alguns móveis e a
porta do imóvel, constituiria, em tese, a confirmação de uma hipótese ventilada
pela lei penal no art. 163 – dano, cujo teor do tipo objetivo (destruir,
inutilizar ou deteriorar coisa alheia) revela a descrição do que exatamente o
rapaz citado havia efetuado quando procedeu à ação elencada.
Existiria, neste contexto,
tipicidade, uma vez se concretizar a adequação entre o fato - verificado na
destruição de móveis e da porta da residência alheia - e a descrição prévia do
ar. 163, sendo a conduta do rapaz hipótese de incidência integral do comando
normativo contido no tipo penal ventilado.
Ao se prosseguir nesta
seara de avaliação, encontrar-se-á na ilicitude o segundo elemento de
confrontação, a fim de haurir a existência de crime. Neste particular, contudo,
queda a efetiva concretização do delito, já que inexoravelmente se está diante
da causa justificante elencada, in genere, no art. 23, I, delineado no
subseqüente artigo, representativo da figura do estado de necessidade.
A conduta, neste diapasão,
apesar de típica, não encontra antagonismo ao direito, pois, ad contrario,
encontra-se excepcionalmente autorizada pelo mesmo, ante à colidência de bens
jurídicos – vida, ou saúde e integridade e propriedade – diametralmente
díspares em uma escala de valor tutelado (BITENCOURT, 2002, p. 91). Por esta
razão, abre-se o manto de legitimação que o legislador previamente confere nas
mencionadas causas legais de justificação da conduta, já que não seria razoável
supor a exigência de respeito ao patrimônio alheio, ante ao conflito com a vida
humana naquele momento ameaçada.
Atesta-se, portanto, a
licitude da conduta em comento, segundo elemento constitutivo do crime, que, in
casu, tem o condão de eivar a consolidação do comportamento no efetivo delito
propalado no art. 163 do Código Penal.
O argumento da autonomia
entre tipo e ilicitude aparentemente encontra guarida, mormente em se
considerando sua coerência com a tripartição do crime em elementos
constitutivos, sendo certo que a teoria da independência, para Liszt e Beling, traz fidelidade ao contexto
de definição tipológica do crime.
Nesta seara de
argumentação, contudo, verifica-se importante ponto nodal no que se refere à
alegada independência do tipo em relação à ilicitude, materializado em uma
singela indagação de natureza apriorística: se o tipo não traz em si algum
juízo valorativo de ilicitude, como, então, justificar o critério com o qual o
legislador elenca condutas a servirem de modelos comportamentais[12]? Mais além,
como falar em reprovabilidade, quando se extrai – como pretende Beling – do
tipo seus elementos subjetivos (dolo e culpa)?
Eis o ataque à pretendida
neutralidade do tipo, já que o mesmo representa, em sua essência, a aglutinação
de descrição de condutas entendidas pelo legislador como sendo danosas ou
eticamente indesejadas pela sociedade, na esteira de argumentação do saudoso
professor Assis Toledo. Desta maneira, não há que se falar em autonomia, quando
o nascedouro do tipo penal encontra-se amalgamado às opções feitas pelo
legislador em sede de conduta não tolerada e, portanto, aparentemente próxima
de uma ilicitude.
Mais felicidade encontrou
em 1915 Max Ernst Mayer que, seguido por Hans Welzel e Maurach[13], encarou
o tipo como sendo um indício de ilicitude, sua ratio cognoscendi, presunção que
poderia ser elidida quando presente alguma causa de justificação. Assim sendo,
toda conduta que se adequasse a um tipo penal presumidamente seria tida também
como ilícita, por trazer o tipo a fumaça da contrariedade ao direito,
aperfeiçoando-se na completude com o segundo elemento constitutivo do delito,
quando inexistente causa de exclusão de ilicitude. Mas, a contrario sensu,
presente a dirimente, ter-se-ia a perfeita separação entre tipicidade e
ilicitude, de modo a guardar plena coerência com a definição de crime em sua
tripartição.
Por outro lado, não
pretende Mayer, com tal raciocínio,
descaracterizar a distinção entre o tipo e a ilicitude, uma vez que
assentados tais elementos em planos distintos de apreciação lógica, ocupando-se
o primeiro da delimitação ontológica da conduta, enquanto que segundo, de sua
confluência com postulados éticos-valorativos próprios. Para tanto, carreia
curiosos e clássicos exemplos do preso que se encontra cumprindo pena e foge do
estabelecimento prisional e dos engenheiros que destroem uma ponte que daria
passagem aos inimigos, os quais, segundo o entendimento do mestre
“(...) realiza un acto a
todas as luces antijurídico; sin embargo, no es un acto típico porque no cae
dentro de ninguno de los parágrafos del Código penal. En cambio, si ponemos el
caso de unos ingenieros que, com objeto de defender una determinada plaza,
cortan un puente por el que podría pasar el enemigo, nos encontramos com que
este caso es típico, y, sin embargo, carece de antijuridicidad.(...)” (apud
Asúa, Tratado de derecho penal. Buenos Aires: Losada, 1976, t. 3, p. 758)
Já a teoria da ratio
essendi desenvolvida por Mezger-Sauer em 1931 enfrenta a tipicidade e a
ilicitude como integrantes de uma mesma realidade, na qual a primeira é a ratio
essendi da segunda, dispostas em uma relação de implicação natural (SAUER,
1956, p. 111), donde se extrai a identidade comum entre tais elementos
descritivos do crime.
A teoria e comento
apresenta um grave inconveniente de acarretar em um paradoxo de identidade –
por ironia, identidade esta que caracteriza o pensamento em tela – uma vez que
um comportamento seria, ao mesmo tempo, lícito e ilícito, como se verifica no
exemplo em que um indivíduo, na iminência de receber um tiro a ser injustamente
desferido por outrem, antecipa-se e atira primeiro, em nítida atitude de
legítima defesa.
Ora, o fato em apreço é
“matar alguém”, amoldado, assim, ao tipo previsto no art. 121, caput (em
princípio). Em se considerando o próprio tipo como prius idêntico à ilicitude,
incorrer-se-ia na paradoxal visão de ser a conduta ilícita, por estar contida
no artigo em apreço, mas, ao mesmo tempo, lícita, por estar acobertada por uma
causa de exclusão de ilicitude. E, pelo princípio da identidade, algo não pode
ser, e ao mesmo tempo, não ser, lembrando da regra: se P é P é verdadeiro,
então P não pode ser P e não-P ao mesmo tempo, por completa negação de si mesmo[14].
Mais além, a redução feita
no modelo de Mezger-Sauer entende a ilicitude como defluência característica da
tipicidade, e não elemento constitutivo do delito, o que finda por acarretar
problema na definição jurídica tripartida de crime aceita doutrinariamente.
A teoria dos elementos
negativos do tipo (negativen Tatbestandmerkmalen) encontra nos trabalhos de
Merkel, Baumgarten, Radbruch e Frank sua projeção maior, ao se tratar das causa
excludentes de ilicitude como sendo meramente circunstâncias negativas do tipo,
uma vez que se antagonizariam à assertiva de consideração da conduta como
típica e, de forma justaposta, ilícita[15]. Neste
contexto, haveria um total desconhecimento de que as causas justificativas
seriam permissivas, e não apenas normas negativas, na visão dos mestres, que as
concebiam como mero expoente da tipicidade, de forma a lograr a ilicitude a
completude da tipicidade.
Coube à revisão de Beling,
já em 1930, uma alegada correção de sua percepção acerca do tipo, para
“finalmente” entendê-lo em sua função descritiva, de modo independente da
ilicitude. Neste sentido, pertinente a obra do professor Luiz Luisi, quando
remissiva ao trabalho do festejado doutrinador: “(...) Entendendo o Tatbestand
como eminentemente objetivo e descritivo, Beling diz que nele não se podem
conter quaisquer valorações de antijuridicidade. No Tatbestand a conduta é
apenas descrita em sua individualidade, e não é simultaneamente valorada como
antijurídica.” (LUIZI, 1987, p. 27). Como se percebe, mero retorno a uma idéia
já propalada na primeira fase de sua obra, com roupagem terminológica símile.
Com a opção de conformação
do tipo em elementos objetivos e subjetivos, trazendo, assim, para o plano da
tipicidade o dolo e a culpa outrora tratadas pelo causalismo como elementos da
culpabilidade, há de se empreender a uma necessária releitura dos conceitos
atinentes à essência da tipicidade, de modo a adequar a teoria indiciária de
Mayer à completude que informa a constituição de um conceito substancial de
crime, a partir da conjugação de elementos ou pressupostos de existência.
Por esta razão, cumpre evidenciar
não ser o tipo penal, sozinho, o próprio sentido e molde do crime, pois este
somente aperfeiçoar-se-á com a conjugação dos demais elementos constitutivos –
ilicitude e culpabilidade, sendo, antes de tudo, o início da análise acerca da
existência jurídico-penal do crime, constituindo uma expressão de alcance do
próprio princípio da legalidade – nullum crimen, nulla poena sine lege praevia,
scripta et stricta, que grava previamente, de modo formal e escrito, os
comandos de aplicação das conseqüências jurídicas ante à submissão do fato à
hipótese ventilada pela lei que, sem risco de erro, escalona bens jurídicos
para, a partir de tal, considerar, in abstracto, condutas antagônicas de ataque
aos mesmos.
Daí a razão pela qual se
encontra no tipo penal um indicativo apriorístico de ilicitude, mas não se
confundindo com a mesma, que deverá ser analisada sob o manto do fato concreto
em si, a fim de se extrair do mesmo sua contrariedade ao direito. Tal
raciocínio perfeitamente explica as denominadas causas de justificação
previstas tanto no art. 23 do Código Penal, como também as denominadas causas
supralegais de exclusão de ilicitude, que se apresentam como dispositivos
excepcionais, incidentes quando o exame in concreto exija o tratamento
diferenciado para a conduta, que encontra guarida no tocante à sua realização.
Desta feita, firma o tipo
penal uma relação de tendenciosidade unilateral com a ilicitude, na medida em
que o fato encaixado ao tipo previsto na lei penal tenda a ser, se confirmada a
hipótese, também ilícito, contanto que presente o antagonismo ao direito,
representativo do elemento ilicitude.
Mas, ao contrário, não se
pode falar em atributividade da ilicitude no tocante ao tipo penal, porquanto
possam existir fatos tidos como ilícitos, porém não abrigados por normas
descritivas tipológicas, a exemplo do que ocorre com a prostituição, o incesto
(ato em si), entre outros fatos interpretados como moralmente reprováveis,
ilicitamente considerados como tais por demais ramos do direito, mas que não
são tipificados pelo Direito Penal.
Delineada a essência do
tipo penal, comporta, pois, a avaliação de sua função na teoria do crime,
podendo ser carreadas as seguintes, coerentes com a linha de pensamento
adotada:
- consubstancia, como prius, um rol de condutas ético-valorativas não desejadas pelo legislador;
- materializa o conteúdo da norma penal subjacente – não matar, não ofender a integridade, etc., em uma lei penal;
- define, neste sentido, um dado preliminar acerca do injusto, de conformidade com a introdução do dolo e da culpa para o tipo;
- coloca-se como molde descritivo-comparativo para as condutas tidas como potencialmente delituosas, bastando que posteriormente presentes os demais elementos constitutivos;
- marca o limite temporal da constituição do delito, em termos de consumação e tentativa;
- manifesta-se como indício designativo da ilicitude, em termos unívocos, sendo esta, a posteriori, confirmada ou repudiada, pela existência de eximentes e, por fim,
- constitui-se, ao mesmo tempo, em limitação ao Poder Público e garantia ao status libertatis do cidadão, na medida e que represente primado do princípio da legalidade, apanágio da segurança e certeza que sustentam a construção da dogmática jurídico-penal.
Tecidas estas
considerações acerca da natureza do tipo penal, bem como suas funções, pode-se
adequar, de maneira escorreita, a terminologia empregada, para fins de não se
ponderar, de forma irrestrita, que todas as hipóteses reputadas tipos
incriminadores no Código Penal constituem, de plano, crime, confundindo-se,
desta feita, o conceito deste com o tipo penal que lhe é inerente como primeiro
elemento, por manifesto equívoco terminológico.
Assim, se presentes, após
minuciosa análise, as demais hipóteses – ilicitude e culpabilidade – é que se
poderá apurar a existência do delito. Esta pureza técnica se justifica, até
mesmo porque evita a mera responsabilidade penal objetiva, quando o autor
responde pela prática do fato, sem se perquirir acerca do conteúdo de vontade,
nuance essencial da figura dolosa e, portanto, contida no tipo.
Equívocos são cometidos ao
se entender pela mera adequação fato-tipo como total percepção de existência de
delito, sem se atentar para a construção jurídico-positiva do crime em seus
aspectos elementares de constituição, desprezando-se, assim, tanto a
complexidade que embala o tema, como também a liberdade do cidadão,
desprotegida pela precária hermenêutica de entendimento do tipo penal.
Neste
aspecto, poder-se-ia até mesmo - sob a escusa de imprimir à dogmática penal
maior informalidade – tornar a questão realmente menos complexa, posto que mais
fácil, cômoda e conveniente, restando saber, contudo, qual o preço a ser suportado
pelo cidadão em suas garantias à liberdade em face do Estado.
[1]
Entende-se por elemento constitutivo do crime seus pressupostos, ou seja,
requisitos ou fatores que devem preexistir ou serem concomitantes ao fato
material para que o mesmo se convole na hipótese de incidência da norma
descritiva do delito. (BETTIOL, 2000, p. 187)
[2]
Evita-se, ao menos neste primeiro momento de observação, a elucubração sobre as
distinções designativas de lei, norma, tipo e legalidade, posto que fogem do
objeto do presente trabalho.
[3] A
concepção terminológica sobre ilicitude e antijuridicidade não encontra maior
preocupação no presente trabalho, uma vez que o enfoque central destina-se mais
à avaliação do tipo, deixando-se o apelo semântico para o momento oportuno.
Pelo momento, prefere-se a denominação ilicitude, por se entender que o crime é
um fato jurídico, na medida em que é concebido como criação do direito,
guardando similitude ao pensamento do nobre professor Assis Toledo (TOLEDO,
1999, p. 159-160), bem como à dicção do Código.
[4] Não só Tatbestand, como também Typizit para os alemães, bem como fattispecie, como percebe Asúa, na obra
de referência, p. 750-752.
[5] Já
em 1805, Stübel fazia esta referência ao tipo penal como descrição do
comportamento, antes mesmo da teoria belingiana. Ver obra de referência em
Jimenez de Asúa, op. cit. p. 751.
[6] WELZEL,
Hans. Derecho penal alemán: parte general. 11 ed. Santiago: Juridica de Chile,
1970, p. 76-77.
[7]
Isto porque, como veremos a seguir, nem toda a conduta que é típica,
automaticamente tende a ser ilícita ou culpável, como se observa, por exemplo,
quando um cidadão, vendo que outrem está para desferir-lhe um tiro, saca
primeiro o revólver e mata o ofensor em legítima defesa. A conduta é típica,
pois se amolda no comando contido no art. 121 do Código. Falta-lhe, porém, o
sentido de ilicitude, ou seja, de contrariedade ao direito, pois a legítima
defesa constitui-se em uma das causas de exclusão de ilicitude.
[8]Para
o mestre Damásio, o tipo manifesta-se no
“conjunto dos elementos descritivos do crime contidos na lei penal”, sendo,
assim, um aspecto inicial da análise acerca da ontologia do crime (JESUS, 2001,
p. 271).
[9]
Régis Prado, seguindo a esteira de Luiz Luisi, encara o tipo penal como sendo
uma “descrição abstrata de um fato real que a lei proíbe (tipo incriminador)
(PRADO, 2000, p. 218).
[10]
Superada, pois, a distinção clássica entre lei e norma penal, na qual a lei
seria a materialização formal do conteúdo exarado pela norma, expoente de um
comando ético-valorativo, ou, como preferem os puristas, um enunciado
lógico-abstrato. Neste particular, distancia-se o tipo penal dos demais tipos
em outros ramos do direito, na medida em que o primeiro já, de antemão, prescreva
conexões de encaixe entre fatos tidos como ilícitos, incriminados, em
antagonismo ao tipo para a teoria geral, na qual há de se perquirir não mais um
critério de ilicitude, porém, meras prescrições avaloradas, quando se
visualiza, por exemplo, o preceito legal atinente à aquisição de personalidade.
Segundo Kelsen, ausente encontra-se, neste modelo, o preceito secundário, visto
que relacionado à sanção ante o descumprimento do postulado contido em termos
primários (Se A é, B deve ser).
[11] Não é
outra também a posição doutrinária do mestre Von Liszt em sua obra. Tratado de
derecho penal. Trad. L. de Asua. op. cit.
[12] É
de se ressaltar que o comportamento em questão pode ou não ser observado, ante
às relações de implicação lógica de ser e dever ser, guardando coerência com o
pensamento jurídico-positivo.
[13]
Apud. MEZGER, Tratado de Derecho Penal. Parte General. Trad. Conrado Finzi.
Buenos Aires: DNT, 1989.
[14]
BASTOS, Cleverson, KELLER, Vicente. Aprendendo Lógica. 4ed. Petrópolis: Vozes,
1995, p. 40
[15] WELZEL,
op. cit. p. 58-59.
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